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Um dinossauro no exílio e a luta contra o colonialismo científico

Poucos imaginariam que um dinossauro do tamanho de um ganso desencadearia uma das maiores polêmicas da Paleontologia nos últimos anos. Para bem ou para mal, “Ubirajara jubatus” tem chamado a atenção como poucos fósseis na história da Paleontologia.

Arte de Saulo Daniel, publicada no Twitter.

Quando foi revelado ao mundo no dia 13 de dezembro de 2020, “Ubirajara jubatus” deveria ter sido visto como uma descoberta interessante do ponto de pista científico, pois tratava-se do primeiro dinossauro não-aviano com penas do Hemisfério do Sul. Contudo, a sua importância foi rapidamente ofuscada por um emaranhado de problemas éticos e legais. O estudo de “Ubirajara” representa um típico caso de colonialismo científico: um fóssil brasileiro que foi parar de maneira suspeita num museu alemão (Museu Estadual de História Natural de Karlsruhe) e uma pesquisa feita exclusivamente por cientistas estrangeiros.

O conceito de colonialismo científico foi definido em 1967 por Johann Galtung como “o processo pelo qual o centro de adquisição do conhecimento sobre uma nação está fora a própria nação”. Isto se aplica ainda à Paleontologia de vários países, cujas pesquisas, em pleno século XXI, são predominantemente feitas por estrangeiros.

Além do Brasil, países como China, Mongólia, Marrocos, República Dominicana e Myanmar, têm estado na mira, tanto de traficantes de fósseis, como de pesquisadores sem escrúpulos. Os fósseis atraem a curiosidade do público e são um valioso recurso em muitos aspectos: científico, educacional, cultural e até econômico, gerando turismo e beneficiando o comércio local. Porém, todos estes benefícios ficam num país estrangeiro, quando os fósseis são levados (legal ou ilegalmente) ao exterior e terminam estudados por equipes de outros países, o que cria dependência científica e perpetua desigualdades sociais.

No Brasil, assim como em toda a América Latina e na maior parte dos países do mundo, os fósseis pertencem legalmente à Nação onde são encontrados. Durante décadas, contudo, milhares de fósseis têm saído ilegalmente da região do Araripe, no Nordeste do Brasil, região muito rica em termos paleontológicos, mas com um baixo índice de desenvolvimento humano. Estes fósseis são adquiridos a preços irrisórios por estrangeiros, chegam ilegalmente a feiras e leilões na Europa e terminam em coleções privadas ou em museus estrangeiros.

Centenas destes fósseis no exílio têm sido estudados por cientistas estrangeiros de maneira impune nas últimas décadas. Este problema é mais do que conhecido pela comunidade científica brasileira, porém estamos acostumados a que as nossas vozes não sejam escutadas no exterior. Problema que não enfrentam, por exemplo, os autores do estudo de “Ubirajara ” e de vários outros fósseis extraídos irregularmente do Brasil. Eberhard Frey (ex-curador da coleção de vertebrados do museu onde ainda hoje está “Ubirajara”) era, até 2021, nada menos que o presidente da Associação Europeia de Paleontologia de Vertebrados (EAVP, sigla em inglês), enquanto que David Martill, também autor do estudo de “Ubirajara”, publicou um artigo defendendo abertamente que os paleontólogos desrrespeitem as leis locais.

É uma luta que sempre tem sido desigual. Porém, desta vez foi diferente. Estamos na era das redes sociais, da comunicação científica online e das hashtags. O uso de hashtags como #BlackLivesMatter e #MeToo têm mostrado que as redes sociais podem unir esforços em torno de uma causa. #UbirajaraBelongstoBR (Ubirajara pertence ao Brasil), criada no Twitter pela paleontóloga e divulgadora científica Aline Ghilardi, se espalhou como fogo na internet, poucas horas após a notícia do novo dinossauro. No Youtube, foram feitas várias lives denunciando o caso, uma delas, pediu ao público pra desenhar “Ubirajara” e protestar nas redes usando a hashtag #UbirajaraBelongstoBR. Em poucos dias este era o dinossauro mais desenhado do mundo: artistas, crianças e público geral participavam da campanha. O ruído produzido foi tão alto que em duas semanas a revista Cretaceous Research retirou a pesquisa do ar e anunciou que investigava o caso.

Em setembro de 2021, o museu de Karlsruhe contra-atacou, publicando no Instagram um comunicado no qual afirmavam que o dinossauro Ubirajara era ‘propriedade do estado de Baden-Württemberg’ e que não seria devolvido ao Brasil. Em poucos dias acumularam-se mais de 10 mil comentários pouco amigáveis de brasileiros usando a hashtag #UbirajaraBelongstoBR. O museu teve que desativar a sua conta no Instagram. Poucos dias depois, a revista Science revelou que “Ubirajara” foi importado pela Alemanha em 2006 por uma empresa privada e, então, comprado pelo Museu Estadual de Historia Natural de Karlsruhe, em 2009, o que contradizia a alegação de Eberhard Frey, que afirmava tanto que ele mesmo tinha transportado o fóssil para Alemanha em 1995, portando uma suposta autorização do governo brasileiro.

No 15 de novembro de 2021, publicamos uma carta na revista Nature Ecology and Evolution, na qual explicamos os problemas legais e éticos envolvendo não só “Ubirajara”, mas vários outros fósseis que encontravam-se no museu de Karlsruhe e em outros museus do país. Enviamos essa carta à ministra de Ciência e Cultura do estado alemão de Baden-Württemberg e, um mês depois, ela nos respondeu prometendo investigar o caso e tomar ações contra os responsáveis.

Em março de 2022 publicamos, então, um amplo estudo onde denunciamos o colonialismo científico em centenas de estudos sobre fósseis do Brasil e do México. E, finalmente, em julho de 2022, o Ministério de Ciência e Cultura de Baden-Württemberg anunciou que o Museu Estadual de Historia Natural de Karlsruhe tinha atuado de maneira desonesta e ordenou a devolução do fóssil ao Brasil. Além disso, solicitou ao museu que informasse sobre todos os fósseis que se encontram irregularmente na sua coleção.

Eberhard Frey aposentou-se prematuramente em 2022 e Norbert Lenz, também autor do estudo e diretor do museu, foi removido do seu cargo em julho de 2022.

Devido à repercussão gerada pelo caso, algumas revistas acadêmicas têm adaptado políticas mais rígidas sobre a origem legal dos fósseis nas suas publicações. Adicionalmente, alguns países começaram a retornar voluntariamente fósseis ao Brasil, como em outubro de 2021, quando uma universidade dos EUA entregou 36 aranhas fósseis ao Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, e em fevereiro de 2022, quando a Bélgica devolveu ao Brasil um pterossauro.

No momento em que estas linhas são escritas, seguimos esperando pela repatriação, não só do dinossauro “Ubirajara”, mas de centenas de outros fósseis que se encontram irregularmente em Karlsruhe e em outros museus da Alemanha. Aconteça o que acontecer, a Ciência não será a mesma após este caso. “Ubirajara” está já no salão da fama dos maus exemplos na Paleontologia, junto a Archaeoraptor e ao Homem de Piltdown.

*Este texto foi originalmente publicado em espanhol em http://saberesyciencias.com.mx/2023/02/10/dinosaurio-exilio-la-lucha-colonialismo-cientifico/

Referências:

Smyth, R.S.H. et al. 2020. WITHDRAWN: A maned theropod dinosaur from Gondwana with elaborate integumentary structures. Cretaceous Research.

Martill, D. 2018. Why palaeontologists must break the law: a polemic from an apologist. The Geological Curator 10: 641-649.

Padilha, P. K. 2020. ROUBARAM mais um DINOSSAURO DO BRASIL #UbirajarabelongstoBR. https://youtu.be/Uf_QjXwbEDU

Pérez Ortega, R. 2021. Retraction is ‘second extinction’ for rare dinosaur. Science 374: 14-15.

Cisneros, J.C. 2021. The moral and legal imperative to return illegally exported fossils. Nature Ecology & Evolution, 6:2-3.

Cisneros, J.C. 2022. Digging deeper into colonial palaeontological practices in modern day Mexico and Brazil. Royal Society Open Science 9:210898.

Sacos aéreos evoluíram múltiplas vezes!?

A espécie humana está na Terra há apenas 300 mil anos. Somos jovens nesse pequena planeta azul e dinâmico. Os dinossauros, por sua vez, estão por aqui há pelo menos 233 milhões de anos, desde o Período Triássico e, não custa lembrar, permanecem vivos até hoje na forma das aves. Esse grupo de animais tolerou e se adaptou a uma grande variedade de climas e mudanças dramáticas na configuração dos continentes ao longo do tempo. Por isso são um modelo excelente para estudarmos evolução biológica. Eles têm muito a nos ensinar sobre os segredos da sobrevivência.

Durante o auge do reinado dos dinossauros, na Era Mesozoica, o clima do nosso planeta era muito mais quente do que hoje. Uma das características que favoreceu este grupo de animais foi a evolução de sacos aéreos, um tipo de upgrade do sistema respiratório. Os sacos aéreos são estruturas conectadas aos pulmões, que se espalham por toda cavidade toráxica e abdominal desses animais, penetrando inclusive os ossos. Estão presentes nas aves atuais e não apenas tornam sua respiração mais eficiente, mas também ajudam a deixar os seus esqueletos mais leves, o que favorece, por exemplo, o voo. Apesar de muito característicos das aves, os sacos aéreos não são uma exclusividade dos delas. Eles também estavam presentes nos dinossauros não-avianos (todos os outros dinossauros, que não as aves) muito antes da evolução do voo.

Esquema mostrando os sacos aéreos em aves atuais. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sacos_a%C3%A9reos

Imagina-se que os sacos aéreos originalmente favoreceram os dinossauros por funcionarem como um sistema eficiente de captação de oxigênio e também por serem um sistema de refrigeração natural. Se você, hoje, fica ofegante fazendo exercícios no verão quente, saiba que os dinossauros eram (e são!) muito mais eficientes que você em captar oxigênio e se refrigerar. Não é à toa que eles saíram na frente na corrida evolutiva (enquanto nosso grupo, o dos mamíferos, ficou por quase 150 milhões de anos no banquinho de reservas evolutivo).

Já é bem sabido que dinossauros do Período Cretáceo, como o T. rex e alguns pescoçudos, como o Ibirania, tinham um extenso sistema de sacos aéreos pelo corpo. Inclusive, bem parecido com os das aves atuais. Só que a origem e evolução deste sistema tem sido um enigma por várias décadas. Será que os primeiros dinossauros, lá do período Triássico, já tinham sacos aéreos?

O que sabíamos era que a pneumaticidade do esqueleto relacionada a um sistema de sacos aéreos estava presente tanto em dinossauros derivados, ou seja, aqueles que viveram durante o Período Cretáceo, quanto em pterossauros, répteis voadores parentes próximos dos dinossauros. Ambos os grupos seguiram um caminho evolutivo independente a partir do Período Triássico. Uma explicação para a presença de sacos aéreos tanto em dinossauros quanto em pterossauros seria que a origem dessas estruturas se deu bem antes deles terem seguido seu caminho evolutivo independente, isto é, ainda em seus ancestrais.

Porém, a questão permaneceu em aberto. Faltavam estudos avaliando a presença dessas estruturas tanto em dinossauros mais antigos quanto em ancestrais dos pterossauros e dinossauros…

Para nossa sorte, o Brasil têm os fósseis dos mais antigos dinossauros e é aí que entra o estudo publicado agora em Dezembro de 2022 pelo nosso grupo de pesquisa, na revista Scientific Reports:

Para tentar solucionar este enigma, um grupo de pesquisadores brasileiros da Unicamp, UFRN, UFSCar e UFSM e um colaborador da Western University of Health Sciences, dos E.U.A., analisaram três fósseis de alguns dos mais antigos dinossauros do mundo, Buriolestes, Pampadromaeus e Gnathovorax, do Período Triássico do Rio Grande do Sul. Estes são alguns dos dinossauros mais antigos conhecidos até o momento, com 233 milhões de anos de idade!

Reconstrução do dinossauro herrerassaurídeo Gnathovorax. Arte por Márcio L. Castro.

Foi possível notar que os ossos da coluna vertebral (vértebras) desses animais apresentavam pequenos orifícios nas laterais. Sabemos que os sacos aéreos ingressam no esqueleto através de estruturas semelhantes a isso. Porém, os orifícios encontrados eram muito pequenos, o que talvez indicasse uma outra função.

Realizamos, então, tomografias de alta resolução (micro-tomografias) para investigar a estrutura interna dos fósseis. A análise revelou uma arquitetura bastante densa nas vértebras desses animais, bem diferente do que conhecemos em esqueletos permeados por sacos aéreos de dinossauros que viveram no Cretáceo ou mesmo as Aves. Porém, Buriolestes e Pampadromaeus mostraram uma vascularidade mais complexa no interior das vértebras, do que Gnathovorax. Uma vascularidade mais desenvolvida pode ter servido de alicerce para o surgimento das estruturas pneumáticas conhecidas como câmaras e camelas, típicas da invasão das vértebras por sacos aéreos.

Reconstrução do dinossauro Pampadromaeus. Arte por Márcio L. Castro.

A ausência de pneumaticidade no esqueleto pós-craniano desses dinossauros mais antigos contradiz a hipótese de que os sacos aéreos invasivos presentes em dinossauros e pterossauros são homólogos, ou seja, de que teriam surgido no ancestral comum desses animais. Isso indica que a pneumaticidade óssea associada à sacos aéreos evoluiu pelo menos três vezes independentemente em Avemetatarsalia, grupo que inclui dinossauros, pterossauros e seus parentes. Ou seja, evoluiu de forma independente em pterossauros, dinossauros terópodes (grupo dos dinossauros carnívoros) e sauropodomorfos (grupo dos dinossauros pescoçudos).

Uma árvore simplificada dos dinossauros e seus parentes mostrando a evolução independente dos sacos aéreos em pterossauros, dinossauros terópodes e sauropodomorfos.

Essa descoberta muda a forma como compreendíamos os dinossauros e seus parentes. Passo a passo estamos entendendo melhor a sua evolução e o segredo do seu sucesso. É possível que algum fator ambiental tenha sido o gatilho para a evolução desse sistema sacos aéreos em diferentes grupos de avemetatarsalianos, mas isso são cenas para os próximos capítulos!

Gostaríamos de agradecer as agências de fomento que tornaram possível esta pesquisa: o CNPq, a FAPESP e a FAPERGS.

Acesse o artigo completo: Aureliano et al. 2022. The absence of an invasive air sac system in the earliest dinosaurs suggests multiple origins of vertebral pneumaticity. Scientific Reports. https://www.nature.com/articles/s41598-022-25067-8

E assista o vídeo de divulgação: https://youtu.be/8XenPxROthY

Prehistoric Planet: um (baita) exercício de especulação

A semana é boa quando você acaba sendo agraciado com 40 minutos diários de Mesozóico. Agora que terminamos de ver Prehistoric Planet, a série mais do que hypada da Apple TV+, que tal refletirmos sobre a origem do estilo especulativo da série?

Quando saíram os primeiros sinais do que era Prehistoric Planet, escrevi um texto a respeito de como a nova série de documental viera para repaginar (e talvez até substituir) a clássica ‘Caminhando com Dinossauros’. Era uma aposta óbvia: em mais de 20 anos, nenhuma outra produção sobre dinossauros conseguiu atingir o mesmo nível e impacto, e Prehistoric Planet parecia estar aqui exatamente para isso. E, embora muita gente siga comparando as duas séries, percebi que a grande inspiração da produção da Apple TV+ não era o clássico de 1999, mas sim um… livro.

Capa do livro “All Yesterdays” – A melhor dica de livro que você vai receber hoje.

All Yesterdays é um livrinho simpático e aparentemente inofensivo. Creditado aos paleoartistas John Conway e C.M. Kosemen e ao paleontólogo Darren Naish. A proposta da obra é realizar uma releitura das representações paleoartísticas do Mesozoico, assumindo dinossauros como seres vivos e não gigantes sanguinários com tendência a berrar e mostrar os dentes 24 horas por dia. Sentiu uma semelhança com Prehistoric Planet? Calma que é só metade da história.

Um Allosaurus e um Camptosaurus apenas se encarando, sem segundas intenções. Porque o predador não precisa estar caçando e a presa não precisa estar fugindo 100% do tempo.

Desde o chamado “Renascimento dos Dinossauros”, nos anos 1970-80, uma tendência dos paleoartistas foi representar esses animais como organismos complexos e atléticos, mas magrelões secos, verdadeiros sacos de ossos. Isso não é de se surpreender, uma vez que tecidos moles raramente são preservados, restando aos paleoartistas reimaginar essas criaturas tendo apenas os ossos como base.

Greg Paul é um dos maiores nomes da paleoarte e do Renascimento dos Dinossauros, e suas representações hiper-atléticas e zero gordura destes animais seguem sendo uma das mais influentes e reproduzidas nos últimos 40 anos. Por esse motivo que dinossauros magros são tão comuns na paleoarte. Aqui, um Tyrannosaurus apelão apostando corrida.

Em All Yesterdays, os autores reforçam que os dados científicos publicados devem ser utilizados ao máximo na reconstrução de tecidos moles, incluindo aí músculos, tecidos conjuntivos, penas, chifres e escamas. Com isso, temos uma nova interpretação dessas criaturas, reforçando ainda mais a visão dos mesmos como animais, e não monstros. Um exemplo que ilustra bem o caso é o dos bracinhos dos abelissaurídeos.

Um Majungasaurus agita seus bracinhos num claro sinal de comunicação. Já viu um abelissaurídeo fazendo isso em algum lugar?

Se existem evidências de que os diminutos braços dos abelissaurídeos possuem uma articulação que permite a rotação do membro em vários ângulos e, ainda por cima, cicatrizes musculares que indicam uma alta possibilidade de movimentos, por que não imaginá-los como órgãos de comunicação? E, seguindo essa lógica, porque não reconstruí-los com cores chamativas? Esse é o espírito de All Yesterdays, que foi muito bem encarnado em Prehistoric Planet

O jeito Carnotaurus de dizer “Oi gata, tá afim de ver uma Netflix?”. Cena do episódio 5.

Aliás, qualquer semelhança entre essas obras está longe de ser coincidência: o já citado paleontólogo Darren Naish é o principal consultor científico da série, e John Conway e outros paleontólogos/paleoartistas fortemente ligados ao “movimento” também deram assistência em sua criação.

Confia.

E é exatamente por isso, por conta dessa pegada “especulativa mas baseada no maior número possível de trabalhos científicos”, que Prehistoric Planet está sendo considerada a produção mais fidedigna sobre a vida no Mesozoico (e essa constatação não é apenas minha, mas a de muitos paleontólogos de respeito). Nada de dinossauros se matando como kaijus saídos do quinto dos infernos, mas sim animais bem adaptados ao seu ambiente.

Inclua no balaio da especulação mosassauros utilizando “estações de limpeza” em recifes de corais, Dreadnoughtus disputando direitos reprodutivos com sacos infláveis a la fragata, Quetzalcoatlus fazendo voos intercontinentais, um “Troodon” ateando fogo na floresta para tirar suas presas de seus esconderijos, Triceratops buscando minerais dentro de cavernas, e por aí vai.

Outro momento All Yesterdays: elasmossaurídeos fazendo display com o pescoço fora d’água, presente tanto na série como no livro. Cena do episódio 1.

Nenhum comportamento exibido na série “veio do nada”: com uma equipe de consultores tão grande e experiente, tais suposições foram baseadas ou em evidências fósseis ou por “phylogenetic bracketing“, um maneira de inferir traços em organismos a partir de sua posição num cladograma. Um assunto muito interessante que renderia horas e horas de discussão e, no mínimo, um novo post sobre.

Um exemplo resumido de phylogenetic bracketing: é de se assumir que cuidado parental seja uma condição ancestral em dinossauros, uma vez que tanto as aves (dinossauros modernos) quanto os crocodilos (parentes vivos mais próximos) possuem esse traço. Cena do episódio 4.

Pra cimentar esse jeitão “tão real que parece até de verdade”, temos o estilo documental. Cinegrafistas gravaram as tomadas de paisagens nos quatro cantos do planeta, para então inserirem os dinosauros de CGI nelas (e que CGI, senhoras e senhores… os efeitos são, no mínimo, ABSURDOS). Esse trabalho de câmera (que, inclusive, foi utilizado 23 anos atrás em Caminhando com Dinossauros) resultou numa abordagem muito mais realista, sem os maneirismos permitidos e artificiais de produções 100% animadas (como o caso de Planet Dinosaur).

Dinossauros de CGI em meio a cavalinhas de CGI fugindo de pterossauros de CGI. Ao fundo, nuvens de CGI. Planet Dinosaur pode parecer ser tudo, menos realista.

E, por fim, temos o estilo narrativo. Cada episódio é focado num ecossistema, com vinhetas que mostram como bicho X lida com a vida no ambiente Y: no fim das contas, um episódio se resume a sequências dramáticas sem muita conexão umas com as outras. Essa pegada tornou-se meio que um padrão nas produções recentes, como Planeta Terra II e Nosso Planeta, para citar apenas dois exemplos.

E é exatamente aqui que encontro o calcanhar de Aquiles de Prehistoric Planet (e devo ressaltar que essa é apenas a minha opinião). Ao assistir a série, notei que não existem praticamente nenhuma explicação de como as especulações foram feitas: elas simplesmente estão lá, assumidas como verdade absoluta. Isso é uma falha grave num documentário cuja intenção é transmitir conhecimento. Para entender melhor qualquer comportamento exibido, você ou deve ter conhecimento prévio sobre o assunto ou precisa pesquisar um bocado na internet.

Existe evidência fóssil da língua-pegajosa-armadilha-de-cupim do Mononychus? Não, embora a gente pode supor sua existência por outros detalhes anatômicos. Sei disso por ter visto o documentário? Não. É porque dei um Google depois de assistir. Cena do episódio 2.

O jeitão polido que Prehistoric Planet emula das outras séries de peso da BBC impede um maior teor científico ou mesmo um jargão mais pesado em cada episódio. Isso podia ter sido evitado se houvessem maiores explicações ao longo da narração, ou no mínimo um episódio especial apenas sobre a “ciência da série”. Ou ainda, imitando outros documentários modernos, colocando um “making of” de 10 minutos após a exibição, para deixar claro como foi feita a reconstrução. Infelizmente, o mais próximo disso foram vídeos de 4-5 minutos, lançados como bônus no serviço de streaming e também no canal da Apple TV+, explicando um único caso por episódio. Complicado.

Mesmo com essa ressalva (que considero bem relevante), estou com a maioria: Prehistoric Planet é uma obra excepcional, digna de ser considerada uma das maiores, senão a maior, produção do tipo já feita. O simples fato de trazer essas especulações tão bem baseadas em evidências ao público amplo através de uma produção de altíssimo nível já é louvável e garante um destaque. Na verdade, eu gostei tanto que já estou me preparando para reassisti-la e trabalhar em análises de cada episódio, porque tem pano pra gente discutir aqui!

Porque não é todo dia que somos brindados com Tarbosaurus tirando uma sonequinha <3 Cena do episódio 2.

Link para meu texto anterior: https://www.blogs.unicamp.br/colecionadores/2022/04/20/de-caminhando-com-dinossauros-ate-prehistoric-planet/

Prehistoric Planet está na Apple TV+: https://tv.apple.com/us/show/prehistoric-planet/umc.cmc.4lh4bmztauvkooqz400akxav

O conteúdo bônus da série pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=FIeCzBCLJww&list=PLx-VtE7KiW8zKg7VkRGBV5gguBncOPe-a

Você pode adquirir o ebook de All Yesterdays na amazon.com.br por R$ 20,00: https://www.amazon.com.br/All-Yesterdays-Speculative-Dinosaurs-Prehistoric-ebook/dp/B00A2VS55O/ref=sr_1_1?keywords=all+yesterdays&qid=1653761942&sprefix=all+yester%2Caps%2C227&sr=8-1&ufe=app_do%3Aamzn1.fos.4bb5663b-6f7d-4772-84fa-7c7f565ec65b

Cara de Mamífero

Texto por Pedro H. Morais e Maurício Rodrigo Schmitt

Você já se perguntou “como era a cara dos nossos ancestrais, antes deles serem o que somos”? Por exemplo, que cara teria o primeiro hominídeo? Ou o primeiro primata?

Essa pergunta habita o nosso imaginário, principalmente quando diz respeito aos nosso ancestrais e, na maioria das vezes, quem pode nos ajudar a obter essas respostas são os pesquisadores que trabalham com o passado, como os paleontólogos.

Onde sua imaginação te levaria se eu te perguntasse: que cara tinha o primeiro mamífero? Muitos talvez tenham pensado nos grandes mamíferos do passado, como os mastodontes (como Stegomastodon waringi), ou os poderosos tigres-dentes-de-sabre (como Smilodon), ou ainda nas preguiças enormes (como Eremotherium laurillardi) e tatus gigantes (como Glyptodon clavipes). Porém, sinto lhe informar, que você viajou pouco no tempo. 

Uma preguiça gigante (Scelidodon sp.) e um tatu gigante (Doedicurus sp.), ambos encontrados na América do Sul em rochas datadas do Pleistoceno, entre 2,5 milhões e 11,7 mil anos atrás. Artes de Jorge Blanco (Forasiepi, Martinelli, 2007).

Quando pensamos em um mamífero, o grande grupo de animais ao qual nós, os seres humanos, pertencemos, fica difícil escolher um modelo que represente o todo. Vemos hoje em dia, a enorme diversidade do grupo, que foi capaz de ocupar praticamente todos os ambientes do nosso planeta, das savanas quentes do Brasil e da África, às geleiras mais frias do pólo-norte, das montanhas mais altas do Himalaia, às profundezas do oceano, dos céus, ao interior de cavernas e do solo. Em todos esses ambientes você encontra um exemplo diferente de mamífero. Este grupo de animais se diversificou de tal forma e foi tão moldado pelos ambientes que colonizaram, que é difícil considerar que um elefante, um morcego e um golfinho pertençam ao mesmo grupo e sejam parentes. Talvez, isso se deva ao fato de que a diversidade de formas dos mamíferos hoje é maior em relação aos outros grupos de tetrápodes viventes. Pense nas aves ou nos lagartos ou nos crocodilos, que apresentam, na atualidade, uma variedade bem menor de formas e tamanhos do que os mamíferos (no passado não foi assim, mas esta é outra história). Pensando em tudo isso, qual animal você escolheria para representar os mamíferos? Que mamífero vivo hoje você diria que se assemelha mais ao ancestral de todos os mamíferos, ao primeiro mamífero?

Temos certeza que sua imaginação te deu várias opções, mas, sem querer te decepcionar, a cara do primeiro mamífero seria mais parecida com a de um musaranho ou de uma cuíca (não, não estamos falando do instrumento! Estamos falando do marsupial… Colocamos uma foto abaixo pra ajudar). 

Filhote de cuíca (Didelphimorphia) – Foto dos autores.

O primeiro mamífero era um bicho pequeno, mais ou menos do tamanho de um pequeno gambá, correndo por entre as folhagens de uma floresta, durante uma noite quente do Jurássico (sim, a história dos mamíferos começa no Jurássico).

Atualmente, por consenso, o táxon apontado como o ‘primeiro mamífero’ é Morganucodon, um organismo fóssil encontrado nos EUA, Europa e China. Queremos chamar a atenção aqui para a expressão “atualmente apontado”, porque estes consensos taxonômicos podem mudar a luz de novos estudos, fósseis e evidências.

Reconstrução artísitica de Morganucodon. Seus fósseis são encontrados principalmente em Wales (Reino Unido) e na China, além de outras partes da Europa e América do Norte, em afloramentos Jurássicos. Imagem de FunkMonk (Michael B. H.).

O grupo chamado de ‘Mammalia’ (ou “mamíferos”, em bom português), é definido por um conjunto de características morfológicas compartilhadas por todos os seus membros. Colocando de forma mais simples: pra você ser um mamífero, você tem que ter, ou ter tido, um conjunto de características físicas apontadas como “coisa de mamíferos”. Mas tem um problema aqui. Vários organismos fósseis, muito próximos dos mamíferos já tinham algumas dessas “características típicas de mamíferos”. Isso é um pesadelo para muitos pesquisadores, que acabam por discutir e rediscutir definições…

A definição mais atual e com maior consenso, é a definição filogenética de mamífero, que englobaria Morganucodon e todas as espécies viventes de mamíferos (placentários, marsupiais e monotremados). Nessa definição, varias espécies de mamíferos extintos, que viveram durante a era Mesozoica, estão inclusas no grupo. Basicamente, isso significa que todos os animais que são agrupados numa árvore filogenética entre Morganucodon e os mamíferos atuais, são considerados mamíferos (calma, calma, a gente coloca uma figura, só olhar aí embaixo). Mas, essa definição também é bastante discutida, principalmente porque Morganucodon foi “eleito” como o primeiro mamífero, ou seja, essa é uma escolha arbitrária. Essa problemática de “eleger um primeiro” não é exclusiva dos mamíferos, esse é um conflito constante nos estudos sistemáticos e evolutivos, já que as formas biológicas formam um contínuo, quem tenta classificá-las em grupos artificiais somos nós.

No fim, cada novo achado acrescenta uma nova peça a esse quebra cabeça da evolução e as definições se atualizam com o tempo.

Filogenia simplificada dos cinodontes. Aqui estão apenas algumas poucas espécies da grande diversidade de cinodontes. Note que o grupo que Morganucodon é considerado o início do grupo dos mamíferos, portanto, todos que vierem depois deste grupo na árvore filogenética são considerados mamíferos. E um destaque para Brasilitherium, um fóssil brasileiro que é hoje tido como o fóssil mais relacionado ao grupo dos mamíferos. Modificado de Lautenschlager et al. 2016.

Quais são características presentes hoje nos mamíferos que definem o grupo como tal? Certamente você já ouviu que são as glândulas mamárias, os três ossículos do ouvido, entre outras. Mas para saber mais sobre elas, precisamos voltar no tempo. Mais precisamente, até os períodos Permiano e Triássico (entre cerca de 298 a 201 milhões de anos atrás), quando tais “características de mamífero” começam a ser observadas, gradualmente, em formas mais basais de animais aparentados dos mamíferos.

Durante a transição entre o Permiano e o Triássico, a Terra passou pelo seu maior evento de extinção, conhecido como a Extinção Permo-Triássica. Este evento foi bem maior do que a famosa extinção que dizimou os dinossauros. Essa tal Extinção Permo-Triássica foi tão grande, que causou um “reset” na fauna e na flora do planeta. Durante o final do Permiano (cerca de 255 milhões de anos atrás), os primeiros fósseis de criaturas conhecidas como cinodontes são registrados. Porém, é durante o Triássico que esses animais começam a brilhar no cenário biológico. Infelizmente, todos os holofotes acabam por se voltar para os dinossauros no final deste período, mas, o mundo dá voltas, como vocês verão.

Os cinodontes apresentavam uma grande diversidade de formas e tamanhos durante o Triássico e alguns já apresentavam algumas das tais “características mamalianas”. O curioso é que essas características não estavam presentes somente na linhagem que deu origem aos mamíferos. Alguns grupos de cinodontes completamente extintos, de uma linhagem paralela a nossa (mammaliana), também apresentavam algumas dessas características, que hoje, são consideradas como “coisa de mamífero”. Essa é a razão pela qual o debate sobre a origem dos mamíferos está sempre se modificando atualmente… Uma vez que vários grupos paralelos apresentam características mamalianas, é difícil associar com segurança, que determinado grupo de cinodontes deu origem aos mamíferos ou não. 

Voltando para o assunto “que cara teria o primeiro mamífero?”, você deve estar se perguntando agora “que cara teriam os cinodontes?”. Se você pensou no musaranho ali em cima… você não está de todo errado, porém se você prestou atenção neste texto, você já sacou que eles têm uma grande diversidade de formas, e pasmem, em termos fósseis, o Brasil é um dos países que apresentam a maior diversidade de cinodontes do mundo! Todos eles provenientes do Rio Grande do Sul, o local que apresenta as formações de idade triássica mais fossilíferas do país. O Brasil trouxe ao mundo, por exemplo, os Brasilodontideos, o atual grupo apontado como o clado de origem dos mamíferos. 

A Diversidade de Cinodontes Brasileiros

Antes de tudo, a gente precisa entender como são separados os cinodontes. Basicamente, existem dois grandes grupos dentro do grande grupo Cynodontia, os Cynognathia e os Probainognathia. Calma, a gente vai explicar um pouquinho de cada grupo abaixo: 

Cynognathia inclui organismos completamente extintos. Eles eram em sua maioria herbívoros/onívoros, com exceção de apenas uma espécie, que era carnívora. Eram bichos relativamente grandes, variando do tamanho de um cachorro pequeno até o maior de todos, que podia ter mais de 2 metros de comprimento e pesar cerca de 200kg. Neste grupo existem organismos que já apresentavam algumas características que podem ser interpretadas como “coisa de mamífero”, por exemplo, uma das principais características do grupo (e que pode ser comparável a mamíferos), é a enorme complexidade dos dentes pós-caninos. Os mamíferos possuem um padrão dentário altamente especializado, chamado de tribosfênico. Os Cynognathia, embora não tivessem padrão tribosfênico, possuíam especializações dentária até então não encontradas em outros grupos de Synapsidas. Além da grande especialização dos dentes, recentemente foi encontrado em um cinodonte Cynognathia, chamado de Menadon, com um padrão de dente hipsodonte, de crescimento contínuo, tipo os encontrado hoje em mamíferos como o cavalo e roedores (se você não sabia disso, aqui vai mais uma curiosidade, o dente do seu ratinho cresce pra sempre…por isso ele está sempre roendo algo. Não só ele, como vários outros animais). Essa ocorrência de dente hipsodonte no Menadon é única, e este é o único gênero além dos mamíferos com esse padrão de dente. O mais interessante, é que o grupo de Menadon foi completamente extinto, então a característica que era tida como exclusiva de mamíferos, já tinha aparecido na história dos cinodontes muito tempo antes! Infelizmente, toda a linhagem de Cynognathia foi extinta, então nunca teremos a oportunidade de ver um vivo e verificar como eles realmente seriam. 

Cynognathia, os fósseis desse grupo são muito abundantes na Argentina, como o Massetognathus pascuali, e no Brasil, onde encontramos várias espécies em abundância, como Menadon e Santacruzodon. Abaixo a reconstrução de duas espécies de Cynognathia em um típico ambiente do Triássico, com destaque pra aparência que já lembraria muito a de um mamífero atual. Imagens: Massetognathus (foto do autor) Menadon (Melo et al. 2019) e a reconstrução artística por Voltaire D. P. Neto.

O segundo grupo, Probainognathia, abrange uma variedade de formas gigantesca, já que Mammalia está inclusa neste grupo. Mas, levando apenas os fósseis em consideração, o grupo apresentava mesmo assim uma diversidade de tamanho e de hábitos enorme, variando de um bicho com o tamanho de um cachorro grande (como o Aleodon, que podia ter mais de 1,5 metros), até os Brasilodontídeos (que tinham o tamanho de um pequeno gambá, com cerca de 15cm). Os animais desse grupo são, em sua maioria, classificados como insetívoros ou seja, eles comiam insetos, porém, alguns pesquisadores apontam que eles poderiam ser oportunistas (onívoros, assim como os gambás atualmente), com alguns exclusivamente carnívoros, como o Trucidocynodon. Neste grupo estão incluídos os Brasilodontidae, atualmente tido como grupo irmão de mamíferos, mas que pode ter sido o grupo de cinodontes que deu origem a nós, os mamíferos. 

Probainognathia. Artes de Jorge Blanco (Martinelli et al. 2016; Guignard et al. 2019).

A parte mais fantástica disso tudo, é que muitos desses bichos faziam parte da fauna triássica do Brasil. Eles estão entre os achados fósseis do Rio Grande do Sul, onde é encontrada a maior diversidade de Cynognathia do mundo, além de alguns dos registros mais importantes de Probainognathia, como os já mencionados Brasilodontideos. Talvez, devido ao pequeno tamanho, os cinodontes acabem por perder espaço para os grandes dinossauros na mídia e também no imaginário das pessoas… Apesar disso, imaginar um “pequeno musaranho”, correndo de um dinossauro, numa noite quente do Triássico, está carregado de informações sobre como nós, os mamíferos, conseguimos nos tornar o que somos hoje. Enfim, agora você sabe como era “a cara dos primeiros mamíferos” e também como os fósseis do Brasil são importantes para contar essa história.

Referências

Forasiepi A, Martinelli A. Bestiario fósil: mamíferos del pleistoceno de la Argentina. Albatros; 2007.

Guignard ML, Martinelli AG, Soares MB. The postcranial anatomy of Brasilodon quadrangularis and the acquisition of mammaliaform traits among non-mammaliaform cynodonts. PloS one. 2019 May 10;14(5):e0216672.

Lautenschlager S, Gill PG, Luo ZX, Fagan MJ, Rayfield EJ. The role of miniaturization in the evolution of the mammalian jaw and middle ear. Nature. 2018 Sep;561(7724):533-7.

Martinelli AG, Soares MB, Schwanke C. Two new cynodonts (Therapsida) from the Middle-Early Late Triassic of Brazil and comments on South American probainognathians. PloS one. 2016 Oct 5;11(10):e0162945.

Melo TP, Ribeiro AM, Martinelli AG, Soares MB. Early evidence of molariform hypsodonty in a Triassic stem-mammal. Nature communications. 2019 Jun 28;10(1):1-8.

Melanina é encontrada em fóssil de pterossauro brasileiro

Molécula biológica responsável pela pigmentação de seres vivos foi encontrada preservada em um fóssil brasileiro de cerca de 110 milhões de anos, da região do Ceará! O fóssil em questão é de um pterossauro, um tipo de réptil voador da “Era dos Dinossauros”.

Reconstituição em vida de Tupandactylus, arte de Márcio Castro.
Reconstituição em vida de Tupandactylus, arte de Márcio Castro.

O estudo foi publicado hoje em uma das revistas científicas do prestigioso grupo Nature, a Scientific Reports, e inclui pesquisadores diversos países, liderados pelos paleontólogos brasileiros Felipe Pinheiro, da Universidade Federal do Pampa (Unipampa, Rio Grande do Sul) e o doutorando Gustavo Prado, da Universidade de São Paulo (USP, São Paulo).

“Isso ainda é muito distante Jurassic Park”, lembram os pesquisadores, mas o fato de encontrar uma molécula biológica tão bem preservada já é uma grande descoberta, que nos possibilita entender melhor como eram esses organismos do passado.

O fóssil de réptil voador analisado pertence a um Tupandactylus, um pterossauro de tamanho médio, com cerca de 3 metros de envergadura e que tinha uma crista bem alta na cabeça. Ele viveu no sul do Ceará, na região do Araripe, quando toda essa área era coberta por uma extensa laguna, durante a primeira metade do Período Cretáceo, há cerca de 110 milhões de anos.

O estudo também contou com a participação de pesquisadores do Japão e dos Estados Unidos. Trata-se da mais completa caracterização química de uma biomolécula fossilizada em um réptil.

“Embora sempre soubéssemos que os fósseis encontrados na região da Chapada do Araripe eram especiais em termos de preservação, foi uma surpresa quando as análises químicas mostraram que a melanina do bicho ainda estava lá. Parece que o pterossauro morreu ontem”, relata Felipe Pinheiro, paleontólogo da Unipampa.

Vários fósseis de Tupandactylus já foram descobertos na Chapada do Araripe. Porém, este preservou muito bem a crista do animal, o que levou os pesquisadores a quererem analisá-la mais de perto. A crista enorme, em forma de vela, provavelmente era utilizada, entre outras coisas, para atrair parceiros. Foi dela que os cientistas extraíram o pigmento.

Imagem do artigo monstrando os pontos amostrados no fóssil.

“A melanina é uma das moléculas mais resistentes aos processos de fossilização. Enquanto os outros compostos são degradados com o passar do tempo, esse pigmento resiste de forma mais ou menos intacta”, explica Gustavo Prado, que é especialista em pigmentos fossilizados.

Imagem do artigo, mostrando os corpúsculos esféricos presentes no fóssil, que conteriam a melanina.
Imagem do artigo, mostrando os corpúsculos esféricos presentes no fóssil, que conteriam a melanina.

Agora, a pergunta que não quer calar: Com essa molécula preservada, foi possível identificar a cor do animal?

Os cientistas que assinam o estudo são bastante céticos: “É complicado”, diz Pinheiro. “São muitos fatores envolvidos na coloração de um animal, e a melanina é só um deles”. Estudos anteriores reconstruíram a cor de aves e dinossauros com base na forma dos melanossomos, organelas responsáveis por armazenar melanina. A ideia é que o formato dos melanossomos poderia indicar a coloração. A caracterização química da melanina do Tupandactylus mostrou que não é bem assim. “Não encontramos correlação entre o formato dos melanossomos e o tipo de melanina identificada no pterossauro”, diz Gustavo Prado.

O novo estudo, portanto, desafia as inferências de coloração realizadas para organismos fósseis até então. Será necessário rever essa possibilidade e, à luz das novas descobertas, aperfeiçoá-la.

O grupo de pesquisadores continua investigando a preservação excepcional de fósseis da Chapada do Araripe, e afirmam que várias novidades ainda estão por vir. “Aos poucos ficamos cada vez mais próximos desses animais incríveis”, diz Pinheiro.

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O trabalho completo está disponível em www.nature.com/articles/s41598-019-52318-y

O estudo foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).