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O devorador de baleias ancestrais

Anteriormente falamos aqui sobre um incrível golfinho caçador que dominou as águas do Oligoceno no sul da Califórnia (E.U.A) e suas contribuições para a evolução dos cetáceos (grupo que inclui as baleias e golfinhos). Citamos algumas diferenças entre ele e um grupo de cetáceos muito mais antigo, que incluía também caçadores tão excepcionais quanto, os gigantescos basilossaurídeos. Mas afinal, quem são esses cetáceos com nome de dinossauro?

Basilossaurídeos. Ilustração por Artbyjrc.

Os fósseis mais antigos de basilossaurídeos são encontrados em rochas datadas do final do Eoceno Médio. Eles são encontrados em todo o mundo, incluindo África, Ásia, Europa, América do Norte e do Sul, Nova Zelândia e até mesmo na Antártica. De maneira geral, basilossaurídeos eram cetáceos com o corpo extremamente alongado, algumas espécies chegando a mais de 18 metros de comprimento. Foi por meio de fósseis desses cetáceos “arcaicos” que paleontólogos tiveram as primeiras pistas de que os golfinhos e baleias se originaram de mamíferos inicialmente terrestres.

O entendimento da ancestralidade terrestre só foi possível graças à preservação de ossos vestigiais das patas traseiras. Estas, eram pequenas e provavelmente semelhantes às nadadeiras peitorais dos golfinhos atuais, ou seja, não se conectavam/articulavam mais diretamente com a coluna. Isso demonstra que basilossaurídeos não conseguiriam mais sustentar o seu próprio corpo em terra e, portanto, seriam os primeiros cetáceos completamente adaptados à vida marinha. Também foram os cetáceos mais antigos a mostrar a migração das narinas da ponta do focinho para o topo da cabeça, como vemos hoje nas baleias e golfinhos modernos.

Esqueleto de Dorudon atrox evidenciando as patas traseiras rudimentares e desconexas da coluna vertebral. Foto do Repertório online de fósseis do Museu de Paleontologia da Universidade de Michigan.

Grandes répteis?

A primeira espécie de basilossaurídeo foi descrita em 1834 por Richard Harlan, que batizou-a de Basilosaurus, “Lagarto Rei” em grego antigo. Porém, Harlan havia interpretado aqueles fósseis erroneamente como sendo de um grande réptil marinho. Percebendo esse erro, Richard Owen, em 1839, reavaliou os fósseis do Basilosaurus associando-o aos cetáceos, e dando-lhe um novo nome, Zeuglodon, que significa “Dentes de Jugo”, também derivado do grego antigo.

Apesar dessa nova avaliação, o nome original dado por Harlan permaneceu devido às regras internacionais da nomenclatura zoológica, que definem que o primeiro nome dado a uma nova espécie é o que deve ser considerado válido.

Evidências de um grande caçador

Nos últimos anos, descobertas de novos fósseis de basilossaurídeos na região do Egito, no continente africano, revelaram relações nada amigáveis entre algumas espécies do grupo. Alguns fósseis indicam que o gigantesco Basilosaurus isis, um animal que atingia até 18 metros de comprimento, seria predador de uma espécie menor de basilosaurídeo conhecida como Dorudon atrox. Essa descoberta deu pistas sobre como os grandes basilossauros do Eoceno Médio e Final eram efetivamente os “reis” dos mares. 

Esqueletos de (A) Basilosaurus isis e (B) Dorudon atrox (VOSS et al., 2019).

Julia M. Fahlke relata em um trabalho publicado em 2012, que fósseis das duas espécies de basilossaurídeos foram encontrados no mesmo sítio fossilífero. Porém, havia algo estranho ali: na localidade eram encontrados fósseis tanto de juvenis quanto de adultos de Dorudon atrox e somente fósseis de adultos de Basilosaurus isis. No mesmo trabalho, Fahlke relata também, que alguns dos crânios de D. atrox possuíam grandes marcas de mordida, que depois de análise detalhada, puderam ser interpretadas como ferimentos letais, ou seja, elas eram a provável causa de morte desses organismos. Quem seriam os responsáveis pelas mordidas?

Isso levou a pesquisadora a propor a hipótese de que adultos de B. isis poderiam, no passado, ter invadido as áreas de parto de D. atrox para atacar seus filhotes. Não havia, no entanto, nenhuma evidência direta para apoiar essa hipótese. Fahlke, então, decidiu digitalizar os fósseis para testar a sua ideia. Ela aplicou técnicas de tomografia computadorizada e obteve modelos tridimensionais (3D) dos crânios fossilizados. Os modelos 3D dos espécimes juvenis de D. atrox foram colocados digitalmente na boca de um B. isis adulto e as marcas de mordidas comparadas com o tamanho e posicionamento dos dentes. Bingo! As marcas de mordida no crânio dos juvenis de D. atrox correspondiam exatamente à dentição de B. isis.

Modelo digital 3D do espécime juvenil de Dorudon atrox (azul) na boca de um Basilosaurus isis adulto (cinza) (FAHLKE, 2012).

O perfil do culpado

A pesquisadora também produziu modelos de argila dos dentes de B. isis e observou que as marcas nos crânios dos juvenis de D. atrox também se encaixavam com as características específicas dos dentes da espécie maior de basilossaurídeo. As marcas variavam ainda de acordo com qual dente fincou no crânio do animal, a posição do ataque, a força aplicada durante a mordida e o estado de desgaste natural dos dentes de B. isis

Foi proposto também, que algumas marcas poderiam ter sido causadas por outros animais como Crocodilus megarhinus, grandes crocodilos marinhos do final do Eoceno do Egito, ou Carcharocles sokolowi, um grande tubarão encontrado mesmo depósito, com dentes de até 9,5 cm. Porém, as marcas analisadas não se encaixavam com as características da arcada e dos dentes dessas espécies. O culpado realmente só poderia ser Basilosaurus isis.

Acreditava-se, até então, que a alimentação dos cetáceos primitivos era limitada a peixes, entretanto, com esse estudo, as primeiras evidências de uma predação mais ampla foram sugeridas. 

Um mundo onde baleia comia baleia (e também tubarão!)

Apesar do excelente trabalho feito por Fahlke, evidências diretas eram necessárias para comprovar definitivamente a relação de predação proposta pela autora. A preservação do conteúdo estomacal desses enormes predadores seria o ideal. 

Eis que, em 2019, Manja Voss e colegas publicaram um trabalho justamente com a peça faltante para a compreensão dessa relação entre presa e predador: o conteúdo estomacal de um B. isis foi encontrado e nele, partes de D. atrox. Voss e colegas relataram evidências de três espécies de vertebrados encontrados no conteúdo estomacal de B. isis. Haviam partes de dois juvenis de D. atrox, dentes de um pequeno peixe ósseo (Pycnodus mokattamensis) e dentes de um grande tubarão (Carcharocles sokolowi).

Fotomosaico de Basilosaurus isis encontrado com conteúdo estomacal preservado (VOSS et al., 2019).

Os autores sugeriram ainda que, devido ao grande tamanho de algumas presas encontradas, B. isis  não deveriam ser capazes de engoli-las inteiras. Considerando o comportamento de cetáceos atuais, eles também não deveriam consumir a carne de carcaças. Eles eram devidamente capazes de atacar animais de grande porte e abatê-los, além de terem dentes apropriados para cortá-los em pedaços. A cena deveria ser terrível.

Muito se comparou B. isis com as grandes orcas (Orcinus orca) da atualidade, pois estas também são de caçadores de topo de cadeia, que consomem animais, incluindo outros mamíferos marinhos e tubarões, às vezes muito maiores do que elas mesmas. A descoberta elucidou um pouco mais sobre a dinâmica dos predadores de topo dos oceanos do início da Era Cenozóica. 

As orcas também caçam filhotes de grandes baleias, assim como consomem parte das presas maiores, dando uma perspectiva sobre como B. isis faziam em sua época. Porém, as orcas caçam em grupo e esse tipo de interação não é possível de ser verificada no registro fossilífero de  B. isis. Pelo menos até o momento…

Restos cranianos de juvenil de Dorudon atrox (VOSS et al., 2019).

Pelas informações adquiridas a partir desses trabalhos, entende-se que B. Isis foram possivelmente os primeiros cetáceos a se alimentarem de outros cetáceos de sua época. Os trabalhos citados aqui também ampliam o conhecimento sobre a evolução da dieta desse grupo de animais, antes interpretados como consumidores exclusivos de peixes. Ainda há muito a se descobrir sobre a  paleoecologia dos cetáceos extintos. O registro fossilífero sempre guarda surpresas e é preciso uma atenção especial e, às vezes, até mesmo criatividade para se desvendar os mistérios guardados nos fósseis.

Referências:

FAHLKE, Julia M. Bite marks revisited — evidence for middle-to-late Eocene Basilosaurus isis predation on Dorudon atrox (both Cetacea, Basilosauridae). Palaeontologia Electronica, v. 15, n. 3, p. 32A, 2012.

MARX, Felix G.; LAMBERT, Olivier; UHEN, Mark D. Cetacean paleobiology. John Wiley & Sons, 2016.

VOSS, Manja., ANTAR, Mohammed Sameh., ZALMOUT, Iyad S., & GINGERICH, Philip D. Stomach contents of the archaeocete Basilosaurus isis: Apex predator in oceans of the late Eocene. PloS one, v. 14, n. 1, p. e0209021, 2019.

Um grande golfinho predador e a evolução dos cetáceos modernos

Golfinhos e baleias atuais, junto com os peixes-boi e dugongos (Sirênios), são mamíferos completamente adaptados ao ambiente aquático. Suas atividades como alimentação, locomoção, descanso e reprodução dependem inteiramente desse ambiente. Eles não precisam, por exemplo, retornar à terra para executarem essas ações, diferentemente do que ocorre em outros grupos de mamíferos aquáticos, como leões marinhos, focas ou lontras. Mas você já pensou em como esse processo aconteceu?

A origem dos primeiros cetáceos (grupo que inclui golfinhos e baleias) se deu a partir de animais completamente terrestres. Formas extintas aparentadas aos artiodáctilos (grande grupo que inclui cabras, bois, camelos, hipopótamos, etc.) começaram essa jornada há cerca de 50 milhões de anos atrás. Eles se adaptaram, com o passar do tempo, às diversas peculiaridades do ambiente aquático, como a maior viscosidade, densidade, empuxo e pressão hidrostática. Entre as principais adaptações desenvolvidas pelos cetáceos, modificações anatômicas associadas à natação foram algumas das mais fundamentais para sua sobrevivência nesse “novo” ambiente.

Indohyus major, um animal extinto do Eoceno, terrestre e herbívoro, relacionado aos primeiros cetáceos. Arte de Nobu Tamura CC BY 3.0.

Nos cetáceos modernos, diversas características anatômicas e comportamentais permitem manobras na água e facilitam o deslocamento desses animais nos oceano, mares e rios. A evolução de algumas características pode ser rastreada nos fósseis. Porém, há uma falta considerável de informações sobre uma parte delas. Uma relação ainda pouco compreendida, por exemplo, é como se deu a divergência entre os golfinhos (odontocetos) e as baleias (misticetos).

Cynthiacetus (esquerda), um cetáceo completamente aquático, e Ambulocetus natans, uma forma semi-aquática de cetáceo do Eoceno. Foto de Jean-Pierre Dalbéra.
Cynthiacetus (esquerda), um cetáceo extinto completamente aquático do fim do Eoceno, e Ambulocetus natans, uma forma semi-aquática de cetáceo do início do Eoceno. Foto de Jean-Pierre Dalbéra, CC BY 2.0.

Abundantes esqueletos de cetáceos do Eoceno ilustram a transição da vida semiaquática para a completamente aquática, incluindo o desenvolvimento de um corpo alongado, cilíndrico e com extremidades afiladas (corpo fusiforme). Fósseis do Eoceno também demonstram o gradual processo de redução das patas traseiras e a migração das narinas em direção ao topo da cabeça. Entretanto, há uma raridade excepcional de esqueletos de cetáceos em rochas do Oligoceno, o período geológico seguinte ao Eoceno, e isso tem dificultado muito os esforços para compreender a evolução da força de natação dos cetáceos. No Eoceno, a natação ainda era controlada parcialmente pelas patas traseiras, mas com o tempo ela passa a ser exercida exclusivamente pela cauda robusta.

Em 2020 o pesquisador Robert W. Boessenecker, junto com outros colegas, publicaram a descrição de uma nova espécie de um raro golfinho fóssil de grande porte, encontrado em estratos do Oligoceno do sul da Califórnia (E.U.A). Materiais deste animal já eram conhecidos desde o século 19, mas eram muito fragmentados, o que impedia que pesquisadores conhecessem melhor a espécie. Boessenecker e colegas descobriram, na década de 1990, um espécime surpreendentemente bem preservado, ainda que parcial, que permitiu não só batizarem adequadamente o animal (Ankylorhiza tiedemani), como também estudarem a evolução de algumas características transicionais pouco conhecidas dos cetáceos.

Ankylorhiza tiedemani possuía diversas características compartilhadas entre as baleias e golfinhos, o que deu aos cientistas pistas preciosas sobre a evolução destes grupos. O tamanho e outras características do corpo animal indicam que ele era um predador ativo, de natação rápida, que dominou as águas do seu tempo, ocupando um nicho semelhante aos das grandes orcas atuais.

Esqueleto de Ankylorhiza tiedemani (BOESSENECKER et al., 2020).

O primeiro material descrito para essa espécie foi um crânio muito incompleto recuperado por volta de 1880, que, na época, foi atribuído ao gênero Squalodon. Com a descoberta do esqueleto mais completo, descrito por Boessenecker e colegas em 2020, novas análises foram feitas e descobriu-se que, na verdade, o material pertencia a um novo gênero, batizado de Ankylorhiza. A. tiedemani é considerado, até o momento, o maior Odontoceto do Oligoceno, com aproximadamente 4,8m de comprimento, tamanho não superado até o Mioceno, quando aparecem no registro fossilífero os primeiros grandes cachalotes.

A. tiedemani possui o crânio e mandíbula robustos, com uma dentição simplificada quando comparada com os basilossaurídeos, grupo de cetáceos mais antigos, que tinham os dentes cheios de cristas e pequenas pontas acessórias. As características dentárias de A. tiedemani indicavam que ele se tratava de um caçador com elevada força de mordida, semelhante às encontradas nos primeiros cachalotes. Seus dentes da parte frontal são um mistério, pois possuem um ângulo estranho de inserção no crânio. Eles apontam para frente, o que indica que podem ter sido utilizados para competição entre indivíduos do mesmo sexo, como fazem as baleias-bicudas atuais, ou empregados na captura e abate de presas.

Baleia-bicuda (Ziphius cavirostris). Nos machos adultos podem ver-se dois dentes na ponta do maxilar inferior que estão orientados para a frente. Foto de Eveha CC BY 3.0.

As nadadeiras peitorais de A. tiedemani possuem várias características derivadas, incluindo ossos longos (úmero, rádio e ulna) mais curtos quando comparados com os basilossaurídeos, porém, mais alongados quando comparados com os Odontocetos atuais. Suas nadadeiras e coluna vertebral também possuem características intermediárias, a maioria mais próxima de outros odontocetos basais, mas com algumas correlações com os misticetos. Isso coloca a espécie próxima à base da árvore evolutiva dos odontocetos. 

Relações filogenéticas de Ankylorhiza tiedemani (BOESSENECKER et al., 2020).

A mobilidade de A. tiedemani seria semelhante à das falsas-orcas e orcas atuais, indicando uma natação reforçada, mais poderosa do que a dos basilossaurídeos (formas mais basais) de porte semelhante. Isso sugere que a espécie tinha velocidade suficiente para perseguir outros cetáceos, sirênios, tartarugas, aves marinhas, tubarões e outros peixes contemporâneos, incluindo esses organismos em sua dieta potencial.

A. tiedemani, finalmente, trouxe um pouco de luz sobre como diversas adaptações convergentes estavam presentes em odontocetos e misticetos basais, principalmente no que diz respeito a sua mobilidade. Futuras descobertas de espécimes mais completos ou ainda de novas espécies provenientes dos mesmos estratos geológicos podem ser chave na compreensão da evolução de mais aspectos da locomoção dos cetáceos modernos. Essas descobertas também podem auxiliar na elucidação de mais detalhes sobre como se deu a divergência entre baleias e golfinhos, um evento evolutivo fascinante e ainda pouco compreendido, que se deu nos mares do final do Eoceno e do início do Oligoceno.

Referência:

BOESSENECKER, Robert W. et al. Convergent evolution of swimming adaptations in modern whales revealed by a large macrophagous dolphin from the Oligocene of South Carolina. Current Biology, v. 30, n. 16, p. 3267-3273. e2, 2020.

Cara de Mamífero

Texto por Pedro H. Morais e Maurício Rodrigo Schmitt

Você já se perguntou “como era a cara dos nossos ancestrais, antes deles serem o que somos”? Por exemplo, que cara teria o primeiro hominídeo? Ou o primeiro primata?

Essa pergunta habita o nosso imaginário, principalmente quando diz respeito aos nosso ancestrais e, na maioria das vezes, quem pode nos ajudar a obter essas respostas são os pesquisadores que trabalham com o passado, como os paleontólogos.

Onde sua imaginação te levaria se eu te perguntasse: que cara tinha o primeiro mamífero? Muitos talvez tenham pensado nos grandes mamíferos do passado, como os mastodontes (como Stegomastodon waringi), ou os poderosos tigres-dentes-de-sabre (como Smilodon), ou ainda nas preguiças enormes (como Eremotherium laurillardi) e tatus gigantes (como Glyptodon clavipes). Porém, sinto lhe informar, que você viajou pouco no tempo. 

Uma preguiça gigante (Scelidodon sp.) e um tatu gigante (Doedicurus sp.), ambos encontrados na América do Sul em rochas datadas do Pleistoceno, entre 2,5 milhões e 11,7 mil anos atrás. Artes de Jorge Blanco (Forasiepi, Martinelli, 2007).

Quando pensamos em um mamífero, o grande grupo de animais ao qual nós, os seres humanos, pertencemos, fica difícil escolher um modelo que represente o todo. Vemos hoje em dia, a enorme diversidade do grupo, que foi capaz de ocupar praticamente todos os ambientes do nosso planeta, das savanas quentes do Brasil e da África, às geleiras mais frias do pólo-norte, das montanhas mais altas do Himalaia, às profundezas do oceano, dos céus, ao interior de cavernas e do solo. Em todos esses ambientes você encontra um exemplo diferente de mamífero. Este grupo de animais se diversificou de tal forma e foi tão moldado pelos ambientes que colonizaram, que é difícil considerar que um elefante, um morcego e um golfinho pertençam ao mesmo grupo e sejam parentes. Talvez, isso se deva ao fato de que a diversidade de formas dos mamíferos hoje é maior em relação aos outros grupos de tetrápodes viventes. Pense nas aves ou nos lagartos ou nos crocodilos, que apresentam, na atualidade, uma variedade bem menor de formas e tamanhos do que os mamíferos (no passado não foi assim, mas esta é outra história). Pensando em tudo isso, qual animal você escolheria para representar os mamíferos? Que mamífero vivo hoje você diria que se assemelha mais ao ancestral de todos os mamíferos, ao primeiro mamífero?

Temos certeza que sua imaginação te deu várias opções, mas, sem querer te decepcionar, a cara do primeiro mamífero seria mais parecida com a de um musaranho ou de uma cuíca (não, não estamos falando do instrumento! Estamos falando do marsupial… Colocamos uma foto abaixo pra ajudar). 

Filhote de cuíca (Didelphimorphia) – Foto dos autores.

O primeiro mamífero era um bicho pequeno, mais ou menos do tamanho de um pequeno gambá, correndo por entre as folhagens de uma floresta, durante uma noite quente do Jurássico (sim, a história dos mamíferos começa no Jurássico).

Atualmente, por consenso, o táxon apontado como o ‘primeiro mamífero’ é Morganucodon, um organismo fóssil encontrado nos EUA, Europa e China. Queremos chamar a atenção aqui para a expressão “atualmente apontado”, porque estes consensos taxonômicos podem mudar a luz de novos estudos, fósseis e evidências.

Reconstrução artísitica de Morganucodon. Seus fósseis são encontrados principalmente em Wales (Reino Unido) e na China, além de outras partes da Europa e América do Norte, em afloramentos Jurássicos. Imagem de FunkMonk (Michael B. H.).

O grupo chamado de ‘Mammalia’ (ou “mamíferos”, em bom português), é definido por um conjunto de características morfológicas compartilhadas por todos os seus membros. Colocando de forma mais simples: pra você ser um mamífero, você tem que ter, ou ter tido, um conjunto de características físicas apontadas como “coisa de mamíferos”. Mas tem um problema aqui. Vários organismos fósseis, muito próximos dos mamíferos já tinham algumas dessas “características típicas de mamíferos”. Isso é um pesadelo para muitos pesquisadores, que acabam por discutir e rediscutir definições…

A definição mais atual e com maior consenso, é a definição filogenética de mamífero, que englobaria Morganucodon e todas as espécies viventes de mamíferos (placentários, marsupiais e monotremados). Nessa definição, varias espécies de mamíferos extintos, que viveram durante a era Mesozoica, estão inclusas no grupo. Basicamente, isso significa que todos os animais que são agrupados numa árvore filogenética entre Morganucodon e os mamíferos atuais, são considerados mamíferos (calma, calma, a gente coloca uma figura, só olhar aí embaixo). Mas, essa definição também é bastante discutida, principalmente porque Morganucodon foi “eleito” como o primeiro mamífero, ou seja, essa é uma escolha arbitrária. Essa problemática de “eleger um primeiro” não é exclusiva dos mamíferos, esse é um conflito constante nos estudos sistemáticos e evolutivos, já que as formas biológicas formam um contínuo, quem tenta classificá-las em grupos artificiais somos nós.

No fim, cada novo achado acrescenta uma nova peça a esse quebra cabeça da evolução e as definições se atualizam com o tempo.

Filogenia simplificada dos cinodontes. Aqui estão apenas algumas poucas espécies da grande diversidade de cinodontes. Note que o grupo que Morganucodon é considerado o início do grupo dos mamíferos, portanto, todos que vierem depois deste grupo na árvore filogenética são considerados mamíferos. E um destaque para Brasilitherium, um fóssil brasileiro que é hoje tido como o fóssil mais relacionado ao grupo dos mamíferos. Modificado de Lautenschlager et al. 2016.

Quais são características presentes hoje nos mamíferos que definem o grupo como tal? Certamente você já ouviu que são as glândulas mamárias, os três ossículos do ouvido, entre outras. Mas para saber mais sobre elas, precisamos voltar no tempo. Mais precisamente, até os períodos Permiano e Triássico (entre cerca de 298 a 201 milhões de anos atrás), quando tais “características de mamífero” começam a ser observadas, gradualmente, em formas mais basais de animais aparentados dos mamíferos.

Durante a transição entre o Permiano e o Triássico, a Terra passou pelo seu maior evento de extinção, conhecido como a Extinção Permo-Triássica. Este evento foi bem maior do que a famosa extinção que dizimou os dinossauros. Essa tal Extinção Permo-Triássica foi tão grande, que causou um “reset” na fauna e na flora do planeta. Durante o final do Permiano (cerca de 255 milhões de anos atrás), os primeiros fósseis de criaturas conhecidas como cinodontes são registrados. Porém, é durante o Triássico que esses animais começam a brilhar no cenário biológico. Infelizmente, todos os holofotes acabam por se voltar para os dinossauros no final deste período, mas, o mundo dá voltas, como vocês verão.

Os cinodontes apresentavam uma grande diversidade de formas e tamanhos durante o Triássico e alguns já apresentavam algumas das tais “características mamalianas”. O curioso é que essas características não estavam presentes somente na linhagem que deu origem aos mamíferos. Alguns grupos de cinodontes completamente extintos, de uma linhagem paralela a nossa (mammaliana), também apresentavam algumas dessas características, que hoje, são consideradas como “coisa de mamífero”. Essa é a razão pela qual o debate sobre a origem dos mamíferos está sempre se modificando atualmente… Uma vez que vários grupos paralelos apresentam características mamalianas, é difícil associar com segurança, que determinado grupo de cinodontes deu origem aos mamíferos ou não. 

Voltando para o assunto “que cara teria o primeiro mamífero?”, você deve estar se perguntando agora “que cara teriam os cinodontes?”. Se você pensou no musaranho ali em cima… você não está de todo errado, porém se você prestou atenção neste texto, você já sacou que eles têm uma grande diversidade de formas, e pasmem, em termos fósseis, o Brasil é um dos países que apresentam a maior diversidade de cinodontes do mundo! Todos eles provenientes do Rio Grande do Sul, o local que apresenta as formações de idade triássica mais fossilíferas do país. O Brasil trouxe ao mundo, por exemplo, os Brasilodontideos, o atual grupo apontado como o clado de origem dos mamíferos. 

A Diversidade de Cinodontes Brasileiros

Antes de tudo, a gente precisa entender como são separados os cinodontes. Basicamente, existem dois grandes grupos dentro do grande grupo Cynodontia, os Cynognathia e os Probainognathia. Calma, a gente vai explicar um pouquinho de cada grupo abaixo: 

Cynognathia inclui organismos completamente extintos. Eles eram em sua maioria herbívoros/onívoros, com exceção de apenas uma espécie, que era carnívora. Eram bichos relativamente grandes, variando do tamanho de um cachorro pequeno até o maior de todos, que podia ter mais de 2 metros de comprimento e pesar cerca de 200kg. Neste grupo existem organismos que já apresentavam algumas características que podem ser interpretadas como “coisa de mamífero”, por exemplo, uma das principais características do grupo (e que pode ser comparável a mamíferos), é a enorme complexidade dos dentes pós-caninos. Os mamíferos possuem um padrão dentário altamente especializado, chamado de tribosfênico. Os Cynognathia, embora não tivessem padrão tribosfênico, possuíam especializações dentária até então não encontradas em outros grupos de Synapsidas. Além da grande especialização dos dentes, recentemente foi encontrado em um cinodonte Cynognathia, chamado de Menadon, com um padrão de dente hipsodonte, de crescimento contínuo, tipo os encontrado hoje em mamíferos como o cavalo e roedores (se você não sabia disso, aqui vai mais uma curiosidade, o dente do seu ratinho cresce pra sempre…por isso ele está sempre roendo algo. Não só ele, como vários outros animais). Essa ocorrência de dente hipsodonte no Menadon é única, e este é o único gênero além dos mamíferos com esse padrão de dente. O mais interessante, é que o grupo de Menadon foi completamente extinto, então a característica que era tida como exclusiva de mamíferos, já tinha aparecido na história dos cinodontes muito tempo antes! Infelizmente, toda a linhagem de Cynognathia foi extinta, então nunca teremos a oportunidade de ver um vivo e verificar como eles realmente seriam. 

Cynognathia, os fósseis desse grupo são muito abundantes na Argentina, como o Massetognathus pascuali, e no Brasil, onde encontramos várias espécies em abundância, como Menadon e Santacruzodon. Abaixo a reconstrução de duas espécies de Cynognathia em um típico ambiente do Triássico, com destaque pra aparência que já lembraria muito a de um mamífero atual. Imagens: Massetognathus (foto do autor) Menadon (Melo et al. 2019) e a reconstrução artística por Voltaire D. P. Neto.

O segundo grupo, Probainognathia, abrange uma variedade de formas gigantesca, já que Mammalia está inclusa neste grupo. Mas, levando apenas os fósseis em consideração, o grupo apresentava mesmo assim uma diversidade de tamanho e de hábitos enorme, variando de um bicho com o tamanho de um cachorro grande (como o Aleodon, que podia ter mais de 1,5 metros), até os Brasilodontídeos (que tinham o tamanho de um pequeno gambá, com cerca de 15cm). Os animais desse grupo são, em sua maioria, classificados como insetívoros ou seja, eles comiam insetos, porém, alguns pesquisadores apontam que eles poderiam ser oportunistas (onívoros, assim como os gambás atualmente), com alguns exclusivamente carnívoros, como o Trucidocynodon. Neste grupo estão incluídos os Brasilodontidae, atualmente tido como grupo irmão de mamíferos, mas que pode ter sido o grupo de cinodontes que deu origem a nós, os mamíferos. 

Probainognathia. Artes de Jorge Blanco (Martinelli et al. 2016; Guignard et al. 2019).

A parte mais fantástica disso tudo, é que muitos desses bichos faziam parte da fauna triássica do Brasil. Eles estão entre os achados fósseis do Rio Grande do Sul, onde é encontrada a maior diversidade de Cynognathia do mundo, além de alguns dos registros mais importantes de Probainognathia, como os já mencionados Brasilodontideos. Talvez, devido ao pequeno tamanho, os cinodontes acabem por perder espaço para os grandes dinossauros na mídia e também no imaginário das pessoas… Apesar disso, imaginar um “pequeno musaranho”, correndo de um dinossauro, numa noite quente do Triássico, está carregado de informações sobre como nós, os mamíferos, conseguimos nos tornar o que somos hoje. Enfim, agora você sabe como era “a cara dos primeiros mamíferos” e também como os fósseis do Brasil são importantes para contar essa história.

Referências

Forasiepi A, Martinelli A. Bestiario fósil: mamíferos del pleistoceno de la Argentina. Albatros; 2007.

Guignard ML, Martinelli AG, Soares MB. The postcranial anatomy of Brasilodon quadrangularis and the acquisition of mammaliaform traits among non-mammaliaform cynodonts. PloS one. 2019 May 10;14(5):e0216672.

Lautenschlager S, Gill PG, Luo ZX, Fagan MJ, Rayfield EJ. The role of miniaturization in the evolution of the mammalian jaw and middle ear. Nature. 2018 Sep;561(7724):533-7.

Martinelli AG, Soares MB, Schwanke C. Two new cynodonts (Therapsida) from the Middle-Early Late Triassic of Brazil and comments on South American probainognathians. PloS one. 2016 Oct 5;11(10):e0162945.

Melo TP, Ribeiro AM, Martinelli AG, Soares MB. Early evidence of molariform hypsodonty in a Triassic stem-mammal. Nature communications. 2019 Jun 28;10(1):1-8.

Finalmente, o mamífero do Cretáceo do Brasil!

Brasilestes stardusti é o seu nome, em alusão ao Brasil e a Ziggy Stardust, um personagem criado pelo músico britânico David Bowie, falecido em 2016, ano em que o fóssil foi descoberto.

Brasilestes

O fóssil em questão tem apenas 3,5mm e trata-se de um único dente pré-molar. Pode não parecer grande coisa, mas é uma descoberta há muito tempo esperada. Tanto que, apesar de não escrever há muito tempo no blog, achei que isto, particularmente, merecia uma comemoração!

A publicação do material foi feita hoje, na revista científica Royal Society Open Science e conta com a participação de pesquisadores brasileiros da UFG, USP e Unicamp, além de paleontólogos argentinos e estadunidenses. O estudo foi liderado pela Dra. Mariela Castro (UFG), especialista em mamíferos fósseis e, com certeza, uma grande fã de Bowie.

O pequeno dente, tão importante, foi encontrado nas rochas ricas em fósseis do interior do estado de São Paulo, mais especificamente, no município de General Salgado, oeste paulista. Estas rochas datam do final Período Cretáceo, entre 80 e 75 milhões de anos, época em que os dinossauros ainda reinavam soberanos nos ecossistemas terrestres. Isso torna Brasilestes o mais antigo mamífero conhecido para o Brasil.

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Com um tamanho reconstituído aproximado do de um gambá atual (cerca de 50cm de comprimento), Brasilestes certamente se esquivou das passadas de gigantes pescoçudos herbívoros e fugiu das ferozes mandíbulas de uma miríade de crocodilos terrestres, uma pequena amostra da paleofauna que habitava o interior de São Paulo no final do Cretáceo.

Até a presente data, nenhum vestígio corporal de mamífero fóssil havia sido apropriadamente descrito para as rochas cretácicas do Brasil. Na verdade, para todas as rochas da Era Mesozoica brasileira. O fóssil “do tal mamífero”, sempre havia sido o “Santo Graal” da paleontologia brasileira, buscado incansavelmente por vários grupos de pesquisadores. Por isso, é uma alegria ele ter sido finalmente encontrado.

Para não dizer que este é realmente o primeiro registro corporal de mamífero cretácico do Brasil, o fóssil de um pequeno pedaço de mandíbula com um único dente inserido havia sido encontrado em rochas do mesmo contexto geológico na década 1990. Apesar de publicado há tempos, o material não foi descrito apropriadamente na época, e encontra-se, até hoje, inacessível para a grande maioria dos paleontólogos brasileiros.

O outro registro fossilífero atribuído a mamíferos mesozoicos do Brasil ou, pelo menos, de organismos “mamaliformes”, são as pegadas fósseis da chamada Formação Botucatu, uma unidade geológica que representa um antigo deserto que existiu no interior de São Paulo há  pelo menos 130 milhões de anos. Estas pegadas (assista um vídeo nosso falando sobre isto aqui) são mais antigas do que Brasilestes, mas, infelizmente, nunca puderam ser atribuídas com certeza a um mamífero verdadeiro.

Brasilestes é muito importante, porque fornece a primeira identificação mais precisa sobre um mamífero do Cretáceo do Brasil. A morfologia do dente encontrado indica que o mesmo pertencia a um mamífero Tribosphenida, ou seja, um mamífero do grupo que reúne os placentários e marsupiais.

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Os mamíferos tribosfênidos contam com diversos registros no Cretáceo do hemisfério norte. Porém, no hemisfério sul, apenas haviam sido encontrados na Índia, em Madagascar e no norte da América do Sul. A descrição de Brasilestes stardusti veio preencher uma lacuna importante no registro de mamíferos mesozoicos, ressaltando a importância do Brasil para a compreensão da história evolutiva do grupo.

Por mais absurdo que possa parecer descrever uma nova espécie com base em um único dente, essa é uma situação muito comum para mamíferos fósseis. O registro fossilífero desse grupo é relativamente raro e, majoritariamente baseado na ocorrência de dentes isolados, lembrando que dentes são elementos muito resistentes e preservam-se com maior facilidade do que ossos. Por esta razão, para mamíferos fósseis, características da dentição são muito utilizadas como caracteres diagnósticos de espécies

A equipe envolvida no trabalho também realizou outras análises no fóssil para ajudar em sua identificação, como a avaliação da microestrutura do esmalte dentário.

A cobertura de esmalte encontrada, com cerca de 20 mícrons, é bem mais fina do que a dos dentes de outros mamíferos mesozoicos (entre 100 e 300 mícrons). Além disso, poucas espécies de mamíferos atuais têm característica semelhante, entre eles, alguns Xenarthra (ordem que inclui os tatus, tamanduás e preguiças). Esta observação suscita uma possível relação entre Brasilestes e este grupo de mamíferos. A divergência (ou origem) dos xenartros, calculada por meio da técnica chamada de “relógio molecular”, teria se de dado exatamente nessa época, há pelo menos 85 milhões de anos.

Os mamíferos eram elementos relativamente raros em ecossistemas da Era Mesozoica. Ocupavam nichos secundários, eram, via de regra, pequenos e predominantemente generalistas. A maioria, talvez tivesse hábitos noturnos e fosse arborícola ou fossorial. Essas são algumas razões para os fósseis de Brasilestes serem tão raros. Provavelmente estes organismos eram entidades pouco abundantes em seu paleoecossistema e/ou tinham tamanhos muito pequenos para que seus elementos ósseos delicados fossem preservados e/ou vivessem longe da área favorável para preservação de fósseis.

Tenho certeza de que esta publicação traz novas esperanças aos paleontólogos brasileiros. Que mais fósseis sejam encontrados em breve e ajudem a responder as questões que Brasilestes trouxe à tona (veja mais aqui). Para fechar, vale sempre a pena lembrar, que os mortos têm muita história para contar. Este, especificamente, marcou seu nome na “calçada da fama” da paleontologia nacional, tal qual o grande artista David Bowie deixou sua marca no famoso passadiço hollywoodiano.

Referência:

Castro MC, Goin FJ, Ortiz-Jaureguizar E, Vieytes EC, Tsukui K, Ramezani J, Batezelli A, Marsola JCA, Langer MC. 2018 A late Cretaceous mammal from Brazil and the first radioisotopic age for the Bauru Group. R. Soc. open sci. 5: 180482.  http://dx.doi.org/10.1098/rsos.180482

Uma fauna muito, muito grande, que chamamos de Mega

Texto por Thaís Pansani

Quando se fala de Paleontologia, muitos associam na sua imaginação automaticamente os dinossauros – não os culpo, pois muitas das indústrias (especialmente a cinematográfica) apostam, tradicionalmente, na imagem do T. Rex e dos pescoçudos pra vender seus produtos e conquistar o público. Quantas histórias contadas vocês já ouviram sobre dinos na televisão? Quantos desenhos com alguns mais coloridos, outros mais assustadores, nos cinemas? Quantas camisetas, canecas e até mesmo bichinhos de pelúcia? Até o nome estegossauro é familiar. Agora, tente se lembrar de quantos filmes sobre preguiças-gigantes você já viu no cinema? Essa é mais fácil, porque temos o “Era do Gelo” (pra alegria dos pesquisadores). Mas e se eu te perguntar quantas pessoas na rua você já viu com uma camiseta de tigre-dentes-de-sabre ou quantos bichinhos de pelúcias de gliptodontes (um tipo de tatu gigante com armadura) você já viu? Aposto que não vai ser tão fácil agora. E se eu disser que o nome toxodonte não é tão familiar assim (você provavelmente nunca ouviu falar nele, não é mesmo?). Acontece que há uma história cheia de animais incríveis que existiram (e infelizmente hoje não existem mais), que vai muito além dos dinossauros. Nossos queridos dinos, tão popularmente conhecidos, viveram apenas uma fraçãozinha de tempo no nosso registro geológico da Terra, ocupando a Era Mesozóica, apenas. Eles viveram durante os períodos Triássico, Jurássico (esse é famoso!) e Cretáceo, entre aproximadamente 230 e 66 milhões de anos atrás. Antes e depois desse período de tempo, temos outras eras, divididas entre muitos outros períodos, os quais tinham as mais diversas espécies e em que ocorreram os mais diversos eventos ecológicos, geográficos, geológicos e ambientais. Sinto que o que falta na Ciência, são mais pesquisadores com desejo de difundir informações sobre as espécies que estudam para o público geral. Quem sabe assim, quando se falasse de Paleontologia, aqueles (ainda uma porção pequena) que conhecem essa ciência passariam a ter uma visão mais ampla sobre diversidade e evolução da vida ao longo do tempo geológico. Não desmerecendo a importância dos dinos – nem paleontológica nem na divulgação científica – , mas quero falar aqui de uma outra fauna. Com alguns animais tão grandes e impressionantes quanto os dinossauros e, o mais fascinante, tão recentes, que alguns co-existiram com as primeiras populações humanas.

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Na Era Cenozoica (era atual em que vivemos), a linhagem dos mamíferos se diversificou. Muito do seu sucesso evolutivo se deu devido à extinção dos dinossauros, no final do período Cretáceo (período que encerra a era anterior, a Mesozoica). Os animais que vamos tratar aqui, são especificamente do período Quaternário, a última subdivisão da Era Cenozóica, que se estende até a atualidade. Porém, essa fauna incrível, que vocês estão para conhecer, apenas permaneceu viva até o final do Pleistoceno (cerca de 11 mil anos atrás), extinta por alguns fatores que vamos apresentar no desenrolar dessa história.

Considera-se megafauna todo conjunto de grandes animais. E quando digo grande, são grandes mesmo! Animais com mais de 50 kg, 100 kg, alguns com mais de 1000 kg. Ao longo da Era Cenozóica, uma distinta megafauna de mamíferos evoluiu independentemente em vários cantos do planeta, ocupando os espaços ecológicos deixados vagos pelos dinossauros. São centenas de organismos fascinantes, mas dessa vez, eu vou apresentar um pouco sobre a  fantástica megafauna sul-americana:

1-smithsoniansA América do Sul permaneceu muito tempo isolada ao longo da Era Cenozoica, e isso permitiu com que animais muito estranhos e únicos evoluíssem por aqui nesse intervalo de tempo. A megafauna endêmica de mamíferos da America do Sul é muito específica e alguns dos seus principais representantes foram as preguiças-gigantes, os litopternos, os gliptodontes e os pampaterídeos (vamos conhecer mais sobre eles já já). Assim que o Ístimo do Panamá foi formado, houve um intercâmbio de animais entre América do Norte e do Sul, evento conhecido como “O Grande Intercâmbio Biótico Americano” ou GIBA, para os íntimos. Durante o GIBA, alguns animais típicos da megafauna de mamíferos endêmica norte-americana como os tigres-dente-de-sabre, os ursos, os cavalos e os poderosos proboscídeos vieram parar por aqui. Assim como alguns dos nossos megamamíferos migraram para lá. Terminou, que no Pleistoceno estavam todos juntos… e algumas espécies se perderam nesse contexto, mas isso é história para outra postagem. Vamos nos ater à megafauna endêmica da América do Sul:

As maiores espécies de preguiça-gigante que existiram na América do Sul podiam chegar a ter 6 metros de comprimento e alcançar até 4 metros de altura, quando sobre duas patas. Elas tinham garras enormes que, entre outras coisas, ajudavam na sua proteção. Além disso, apresentavam uma pelagem espessa com pequenos ossículos embebidos na pele, formando uma espécie de armadura. O tamanho e o peso das preguiças-gigantes variava muito entre os gêneros. Nothrotherium, por exemplo, podia ser considerada uma preguiça-gigante “nanica”, mas te garanto que eram muito grandes se comparadas as ‘preguicinhas’ atuais, que vemos em cima das árvores. Falando nisso, as preguiças gigantes eram todas terrícolas, não arborícolas! Nada de ficar de galho em galho descansando (conseguem imaginar o tamanho de uma árvore pra conseguir isso?). As preguiças-gigantes perambulavam pelas vegetações abertas e podiam até fazer tocas com suas garras, seja pra descanso temporário ou habitação. As preguiças-gigantes foram os mamíferos mais diversificados da América do Sul (considerando tamanho, peso, preferências alimentares, etc.), além de o grupo mais amplamente distribuído geograficamente. Uma espécie específica, Eremotherium laurillardi, conseguiu alcançar do sul da América do Sul ao norte da América do Norte, sendo considerada uma espécie “pan-americana”. Pensa no sucesso para se estabelecer em todo canto das Américas!

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Eremotherium, arte de Jorge Blanco.

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Algumas preguiças-gigante em escala.

Os Litopternos são bem menos conhecidos, mas não menos interessantes. Eles eram de tamanho semelhante ao de um camelo e pesavam cerca de 1 tonelada. Tinham o pescoço comprido, pernas longas com três dedos e uma estranha narina entre os olhos, que levou pesquisadores à sugerirem a existência de uma tromba, semelhante à da anta.

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Macrauchenia, um litopterno, arte de Kobrina Olga.

Sabe aquele fusca azul, que a gente não resiste e dá um soco no coleguinha por conta de uma brincadeira clássica? (espero que ainda conheçam essa brincadeira e eu não esteja ficando tão velha). Ele é do tamanho de um glitptodonte, um bicho parecido com um tatu, com uma carapaça alta, cheias de osteodermos ornamentados, caudas robustas e garras capazes de cavar tocas que podiam servir como abrigo, proteção contra o frio ou até mesmo esconderijo de predadores. Na verdade, assim como as pregiças-gigantes, existiram diversas espécies de gliptodontes!

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Dois gliptodontes lutando. Arte de Peter Schouten.

Toxodontes, por sua vez, possuíam um tamanho semelhante ao de um hipopótamo, podendo chegar a 2 metros de altura. Tinham um crânio grande, pescoço achatado, pernas curtas, com patas dianteiras menores que as posteriores e ouvidos na região acima da cabeça. Viviam por vezes associados a cursos de água e, supostamente, tinham hábito semi-aquático. Pelo que se sabe por meio do registro fossilífero, não chegaram na América do Norte, mas conseguiam sobreviver graças a seu hábito generalista, alimentando-se de acordo com a sua localização geográfica.

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Toxodonte. Arte de Jorge Blanco.

É incrível imaginar como a evolução selecionou organismos tão grandes e é tão incrível que ainda se discute na academia o que os levaram à extinção. Algumas das sugestões são: doenças; alterações climáticas e ambientais; a relação com os seres humanos primitivos, afetando direta (ex: pela caça) ou indiretamente (ex: queimada e derrubada de árvores afetando seus habitats) suas populações; ou junção de um ou mais desses fatores. Para cada continente, atribui-se um motivo mais provável para a extinção desses animais. No caso do sul-americano, por falta de evidências substanciais da interação entre ser humano/megafauna no registro paleontológico (diferente de na América do Norte, que esses indícios são bem mais comuns), é pressuposto que variações climáticas e na dinâmica da vegetação tenham sido os principais fatores que levaram esses organismos à extinção. Entretanto, vale salientar que a Paleontologia é uma ciência relativamente nova, principalmente no continente sul-americano. Há a possibilidade de que existam evidências que ainda não investigamos ou encontramos, por falta de cientistas trabalhando com o tema ou por falta de exploração de novas áreas, coletas e/ou organização de dados.

Estudar a megafauna pleistocênica possui uma série de importâncias. A começar pela compreensão da grandiosidade que esse termo “megafauna” carrega. Estamos falando de animais de grande porte que viveram espalhados pelo mundo todo até muito recentemente. Esses organismos passaram por evento de extinção significativo, que concentrou os seus únicos remanescentes atuais nas savanas africanas. Atualmente estamos passando por um processo muito semelhante de perda de espécies, o que significa, que estudar os efeitos da extinção desses animais no passado pode ser muito importante. Além disso, entender a diversidade e como eles se organizavam em comunidades pode nos ajudar a reconstruir todo um cenário ambiental de uma determinada época e/ou de um determinado local. Tente fechar os olhos e imaginar como era a sua cidade há 30 anos atrás. Agora, volte um pouco mais no tempo e tente imaginar há 300 anos atrás. 3 mil anos atrás. 30 mil anos atrás. Expanda sua imaginação para todo seu estado ou a região. Será que o Brasil era desse exato jeitinho, caracterizado pelas mesmas florestas e cursos de rios e sensação térmica há 40 mil anos atrás? Um dos maiores desafios dos paleoecólogos é reconstituir um ambiente do passado com as informações presenteadas pelos fósseis. A partir da dieta inferida pela análise dos dentes da maioria dos animais da megafauna, por exemplo, conseguimos deduzir qual o tipo de vegetação que predominava no ambiente em que este animal viveu, do que ele se alimentava, quão generalista ele era, etc. Fechamos os olhos e conseguimos imaginar um palco em que as cortinas se abrem e temos campos de matas abertas e clima muito mais seco do que o atual, algo completamente diferente do que existe hoje na Mata Atlântica, por exemplo. Onde preguiças terrícolas andavam tranquilamente por uma vegetação mais aberta e menos úmidas e alguns tatus-gigantes migravam em busca de comida e temperaturas mais amenas. Conseguimos também imaginar a dinâmica das populações desses animais, como se reproduziam ou interagiam com as outras espécies. Além disso, conseguimos associar fatores que tenham contribuído para com que o espetáculo de diversidade deste palco imaginário tenha sido encerrado e estabelecer associações com o que ocorre atualmente em nossa biodiversidade, nossas taxas de extinções e as consequências ambientais e ecológicas que o nosso modo de vida pode e já está acarretando. Afinal, vivemos em um constante conflito de uma nova época, que alguns cientistas já denominam como “Antropoceno”. E que talvez possa ter um desfecho diferente, se conseguirmos aprender com o passado.

Há muito a ser descoberto em nossas cavernas mineiras, nossos tanques nordestinos e demais sitios fossilíferos espalhados pelo Brasil – muitos ainda desconhecidos. Acredito que há ainda muitas espécies a serem descritas, muitos paradigmas a serem derrubados e conclusões que nem sequer começamos a imaginar. Não é preciso uma distância de 100 ou mais milhões de anos para nos sensibilizarmos com a maravilha que é um mundo que não existe mais. Parece que foi ontem (em escalas de tempo geológico), mas o panorama que configurava a megafauna sul-americana há pouco mais de 10 mil anos atrás foi completamente diferente do que temos hoje. E isso não é tão apaixonante quanto imaginar grandes dinossauros? Espero que, ao final deste texto, a resposta seja sim, e que só não se tinha esse sentimento ainda por culpa nossa – de nós, paleontólogos, que nos esquecemos de enaltecer as outras facetas da Paleontologia.

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Sobre a autora:

Thaís Pansani é bióloga formada pela UFSCar Sorocaba, atualmente é mestranda em Ecologia e Recursos Naturais pela UFSCar São Carlos e trabalha com megafauna pleistocênica sul-americana e suas relações ecológicas e paleobiogeográficas.


Referências:

Cartelle, 1994. Tempo Passado.

Cartelle, 2000. Preguiças terrícolas, essas desconhecidas.

Ghilardi et al. 2011. Megafauna from the Late Pleistocene-Holocene deposits of the Upper Ribeira karst area, southeast Brazil. Quaternary International, 245: 369-378.

Oliveira et al. 2017. Quaternary mammals from central Brazil (Serra da Bodoquena, Mato Grosso do Sul) and comments on paleobiogeography and paleoenvironments. Revista Brasileira de Paleontologia, 20(1):31-44.

O mastodonte e a macrauquênia