Todos os posts de Aline Ghilardi

Aline é bióloga, especialista em paleontologia de vertebrados e criadora da rede de divulgação científica "Colecionadores de Ossos". Atualmente é professora adjunta de Paleontologia do Departamento de Geologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em Natal, RN.

Sacos aéreos evoluíram múltiplas vezes!?

A espécie humana está na Terra há apenas 300 mil anos. Somos jovens nesse pequena planeta azul e dinâmico. Os dinossauros, por sua vez, estão por aqui há pelo menos 233 milhões de anos, desde o Período Triássico e, não custa lembrar, permanecem vivos até hoje na forma das aves. Esse grupo de animais tolerou e se adaptou a uma grande variedade de climas e mudanças dramáticas na configuração dos continentes ao longo do tempo. Por isso são um modelo excelente para estudarmos evolução biológica. Eles têm muito a nos ensinar sobre os segredos da sobrevivência.

Durante o auge do reinado dos dinossauros, na Era Mesozoica, o clima do nosso planeta era muito mais quente do que hoje. Uma das características que favoreceu este grupo de animais foi a evolução de sacos aéreos, um tipo de upgrade do sistema respiratório. Os sacos aéreos são estruturas conectadas aos pulmões, que se espalham por toda cavidade toráxica e abdominal desses animais, penetrando inclusive os ossos. Estão presentes nas aves atuais e não apenas tornam sua respiração mais eficiente, mas também ajudam a deixar os seus esqueletos mais leves, o que favorece, por exemplo, o voo. Apesar de muito característicos das aves, os sacos aéreos não são uma exclusividade dos delas. Eles também estavam presentes nos dinossauros não-avianos (todos os outros dinossauros, que não as aves) muito antes da evolução do voo.

Esquema mostrando os sacos aéreos em aves atuais. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sacos_a%C3%A9reos

Imagina-se que os sacos aéreos originalmente favoreceram os dinossauros por funcionarem como um sistema eficiente de captação de oxigênio e também por serem um sistema de refrigeração natural. Se você, hoje, fica ofegante fazendo exercícios no verão quente, saiba que os dinossauros eram (e são!) muito mais eficientes que você em captar oxigênio e se refrigerar. Não é à toa que eles saíram na frente na corrida evolutiva (enquanto nosso grupo, o dos mamíferos, ficou por quase 150 milhões de anos no banquinho de reservas evolutivo).

Já é bem sabido que dinossauros do Período Cretáceo, como o T. rex e alguns pescoçudos, como o Ibirania, tinham um extenso sistema de sacos aéreos pelo corpo. Inclusive, bem parecido com os das aves atuais. Só que a origem e evolução deste sistema tem sido um enigma por várias décadas. Será que os primeiros dinossauros, lá do período Triássico, já tinham sacos aéreos?

O que sabíamos era que a pneumaticidade do esqueleto relacionada a um sistema de sacos aéreos estava presente tanto em dinossauros derivados, ou seja, aqueles que viveram durante o Período Cretáceo, quanto em pterossauros, répteis voadores parentes próximos dos dinossauros. Ambos os grupos seguiram um caminho evolutivo independente a partir do Período Triássico. Uma explicação para a presença de sacos aéreos tanto em dinossauros quanto em pterossauros seria que a origem dessas estruturas se deu bem antes deles terem seguido seu caminho evolutivo independente, isto é, ainda em seus ancestrais.

Porém, a questão permaneceu em aberto. Faltavam estudos avaliando a presença dessas estruturas tanto em dinossauros mais antigos quanto em ancestrais dos pterossauros e dinossauros…

Para nossa sorte, o Brasil têm os fósseis dos mais antigos dinossauros e é aí que entra o estudo publicado agora em Dezembro de 2022 pelo nosso grupo de pesquisa, na revista Scientific Reports:

Para tentar solucionar este enigma, um grupo de pesquisadores brasileiros da Unicamp, UFRN, UFSCar e UFSM e um colaborador da Western University of Health Sciences, dos E.U.A., analisaram três fósseis de alguns dos mais antigos dinossauros do mundo, Buriolestes, Pampadromaeus e Gnathovorax, do Período Triássico do Rio Grande do Sul. Estes são alguns dos dinossauros mais antigos conhecidos até o momento, com 233 milhões de anos de idade!

Reconstrução do dinossauro herrerassaurídeo Gnathovorax. Arte por Márcio L. Castro.

Foi possível notar que os ossos da coluna vertebral (vértebras) desses animais apresentavam pequenos orifícios nas laterais. Sabemos que os sacos aéreos ingressam no esqueleto através de estruturas semelhantes a isso. Porém, os orifícios encontrados eram muito pequenos, o que talvez indicasse uma outra função.

Realizamos, então, tomografias de alta resolução (micro-tomografias) para investigar a estrutura interna dos fósseis. A análise revelou uma arquitetura bastante densa nas vértebras desses animais, bem diferente do que conhecemos em esqueletos permeados por sacos aéreos de dinossauros que viveram no Cretáceo ou mesmo as Aves. Porém, Buriolestes e Pampadromaeus mostraram uma vascularidade mais complexa no interior das vértebras, do que Gnathovorax. Uma vascularidade mais desenvolvida pode ter servido de alicerce para o surgimento das estruturas pneumáticas conhecidas como câmaras e camelas, típicas da invasão das vértebras por sacos aéreos.

Reconstrução do dinossauro Pampadromaeus. Arte por Márcio L. Castro.

A ausência de pneumaticidade no esqueleto pós-craniano desses dinossauros mais antigos contradiz a hipótese de que os sacos aéreos invasivos presentes em dinossauros e pterossauros são homólogos, ou seja, de que teriam surgido no ancestral comum desses animais. Isso indica que a pneumaticidade óssea associada à sacos aéreos evoluiu pelo menos três vezes independentemente em Avemetatarsalia, grupo que inclui dinossauros, pterossauros e seus parentes. Ou seja, evoluiu de forma independente em pterossauros, dinossauros terópodes (grupo dos dinossauros carnívoros) e sauropodomorfos (grupo dos dinossauros pescoçudos).

Uma árvore simplificada dos dinossauros e seus parentes mostrando a evolução independente dos sacos aéreos em pterossauros, dinossauros terópodes e sauropodomorfos.

Essa descoberta muda a forma como compreendíamos os dinossauros e seus parentes. Passo a passo estamos entendendo melhor a sua evolução e o segredo do seu sucesso. É possível que algum fator ambiental tenha sido o gatilho para a evolução desse sistema sacos aéreos em diferentes grupos de avemetatarsalianos, mas isso são cenas para os próximos capítulos!

Gostaríamos de agradecer as agências de fomento que tornaram possível esta pesquisa: o CNPq, a FAPESP e a FAPERGS.

Acesse o artigo completo: Aureliano et al. 2022. The absence of an invasive air sac system in the earliest dinosaurs suggests multiple origins of vertebral pneumaticity. Scientific Reports. https://www.nature.com/articles/s41598-022-25067-8

E assista o vídeo de divulgação: https://youtu.be/8XenPxROthY

Um dinossauro pescoçudo nanico é o mais novo dinossauro brasileiro

Os maiores animais a caminharem em terra firme foram os dinossauros saurópodes, apelidados de pescoçudos. Algumas espécies de pescoçudos,  como o Argentinosaurus ou o Patagotitan, encontrados na Argentina, podiam ultrapassar 30 metros de comprimento. Verdadeiros colossos capazes de fazer a terra tremer! Mas nem todos os saurópodes eram assim… Existiram centenas de espécies desses dinossauros em quase todos os continentes e, apesar da maioria ser conhecida pelo seu grande tamanho, algumas formas adotaram uma tendência contrária. Existem alguns casos de pescoçudos anões, formas com a altura de um cavalo ou de um camelo, como Magyarosaurus ou Europasaurus, encontrados em ambientes de ilhas antigas. Via de regra, essas formas anãs são encontradas em ambientes de ilhas, pois devido a restrição de área e recursos, a miniaturização do corpo pode ser uma vantagem. Porém, para nossa surpresa, fósseis de uma nova espécie de dinossauro pescoçudo anão foram encontradas aqui no interior do Brasil, em um lugar que esteve bem longe do mar durante toda a Era dos Dinossauros. Essa espécie de dinossauro foi descoberta na cidade de Ibirá, no interior de São Paulo, e se tornou uma das menores espécies de dinossauros pescoçudos conhecidas do mundo!

Reconstituição da nova espécie de dinossauro anão de Ibirá. Arte por Matheus Gadelha.

Por mais de 15 anos o Prof. Marcelo Fernandes (UFSCar) e seu grupo de pesquisa, eu inclusa, têm coletado fósseis no Noroeste Paulista, em uma localidade onde são encontrados abundantes fósseis de dinossauros. As rochas e fósseis dessa localidade datam do Período Cretáceo e têm aproximadamente 80 milhões de anos. Dentre os fósseis recuperados estão restos de dinossauros carnívoros, crocodilos, tartarugas e vários outros animais da “Era dos Dinossauros”. Muitos restos de dinossauros herbívoros foram encontrados na localidade, mas até o momento nenhuma espécie de pescoçudo havia sido nomeada para a região.

Eu procurando por fósseis no sítio onde foram encontrados fósseis do pequeno pescoçudo em Ibirá, SP. Foto por Tito Aureliano.

Fui eu quem trabalhou pela primeira vez, durante a minha graduação, com os fósseis do pequeno dinossauro pescoçudo de Ibirá. Àquela época, o dinossauro não ganhou nome, mas foi reconhecido como diferente das outras espécies descritas para o Brasil até então. Muito tempo se passou, mais fósseis desse pequeno dinossauro foram encontrados e, finalmente, alguns anos atrás, a missão de liderar a descrição da espécie desse misterioso dinossauro nanico foi dada ao paleontólogo Bruno Navarro, atualmente estudante de doutorado no Museu de Zoologia da USP, e especialista em dinossauros saurópodes. Bruno, Marcelo e eu contamos com a ajuda de uma excelente equipe de colaboradores nesse processo e, no último dia 15 de setembro, apresentamos formalmente essa nova espécie de dinossauro ao mundo científico.

O colega Bruno Navarro em Ibirá, SP, procurando por fósseis. Foto do arquivo pessoal de Bruno.

Comparando os fósseis do pequeno dinossauro de Ibirá com materiais de outros animais do mesmo grupo encontrados no Brasil e no mundo, foi possível concluir que ele pertencia à família dos saltassauros, um grupo de titanossauros que inclui algumas espécies de já de tamanho bastante reduzido. Além disso, o pequeno dinossauro de Ibirá apresentava várias características únicas, não compartilhadas com seus parentes mais próximos, logo, uma nova espécie poderia ser batizada. O nome escolhido foi Ibirania parva. Ibirania é a junção das palavras Ibirá – cidade onde a espécie foi encontrada – e ania que em grego significa “caminhante, peregrino”. Já parva é o latim para ‘pequeno’. Como a palavra Ibirá vem do Tupi para “Árvore” – é possível traduzir o nome desse dinossauro como “o pequeno peregrino das árvores”.

Reconstituição artística de Ibirania parva por Hugo Cafasso.

Desde o princípio era possível notar que os fósseis desse pescoçudo de Ibirá eram muito pequenos quando comparado a outros titanossauros, mas ao estimar o tamanho aproximado de um dos espécimes analisados, nos surpreendemos. Ele teria entre 5 e 6 metros de comprimento e seria da altura de uma vaca, o que o colocaria entre as menores espécies de saurópodes já descritas do mundo! Para checar se o tamanho reduzido seria porque o  espécime era apenas um jovem quando morreu, resolvemos analisar o tecido ósseo fossilizado do dinossauro ao microscópio. Essas amostras foram analisadas pelo paleontólogo Tito Aureliano, atualmente estudante de doutorado da Unicamp. A partir da análise do tecido ósseo foi possível concluir que Ibirania realmente era uma espécie de titanossauro anão, já que os fósseis pertenciam a um animal adulto no momento de sua morte, ou seja, ele não cresceria mais ao longo de sua vida.

Tamanho estimado de Ibirania parva comparado a um humano de 1,80m. Em destaque as partes descobertas do esqueleto.

Vértebra dorsal de Ibirania parva. Imagem de Navarro et al. (2022). Escala = 10cm.

No interior de São Paulo, durante o final do Período Cretáceo, há 80 milhões de anos, caminharam muitos dinossauros pescoçudos de grande tamanho, e até gigantes, como o Austroposeidon. Mas havia algo de especial na região de Ibirá, que favoreceu a existência de pescoçudos nanicos. Diferente de outros anões que viviam em ilhas tropicais onde hoje é a Europa, como Magyarosaurus ou Europasaurus, Ibirania vivia no interior do Brasil, em um ambiente semi-árido com períodos chuvosos intercalados por secas intensas. Foi esse ambiente hostil, com recursos limitados periodicamente, que selecionou esses pequenos dinossaurinhos herbívoros, que ao invés de migrar, provavelmente permaneciam residentes na região.

Ibirania é a primeira espécie comprovadamente anã das Américas e viveu em um contexto muito diferente dos outros dinossauros pescoçudos anões já encontrados. Ela acrescenta novas informações sobre a evolução dos titanossauros e também sobre a ocorrência de nanismo em dinossauros saurópodes. Ibirania recebeu o apelido carinhoso de “Bilbo”, em referência ao hobbit de “O Senhor dos Anéis”, por ser um nanico entre gigantes. Se você quiser saber todas as descobertas que este ‘dinossauro-Hobbit’ já forneceu, assista à playlist: https://www.youtube.com/watch?v=_kH96sPGjfg&list=PLHPifkNwYyYYNFP-wvUXNti7NGkfNQ8hz.

O estudo foi publicado na revista Ameghiniana e pode ser acessado AQUI.

Assista também ao vídeo de divulgação:

Referência:

A. Navarro, B., M. Ghilardi, A. ., Aureliano, T., Díez Díaz, V., N. Bandeira, K. L., S. Cattaruzzi, A. G., V. Iori, F., M. Martine, A., B. Carvalho, A., Anelli, L. E., A. Fernandes, M., & Zaher, H. (2022). A NEW NANOID TITANOSAUR (DINOSAURIA: SAUROPODA) FROM THE UPPER CRETACEOUS OF BRAZIL. Ameghiniana, 59(5), 317-354. https://doi.org/10.5710/AMGH.25.08.2022.3477

Cetáceos e seus “modos à mesa”: um guia de como filtrar sua comida

Nas últimas postagens você teve a oportunidade de conhecer alguns grandes cetáceos fósseis predadores, como Basilosaurus isis e Ankylorhiza tiedemani. Mas não só de caçadas sanguinolentas vivem esses animais. Bom, isso se você não for um cardume de lulas, peixes ou crustáceos...

Na postagem de hoje, vamos contar sobre como as baleias foram por um caminho um pouco diferente e se tornaram alguns dos maiores seres viventes do planeta, alimentando-se por filtração. Caso você seja parte do cardápio, é bom por sebo nas canelas, ou melhor, nas nadadeiras, porque a fome aqui é gigantesca.

Um balaio de baleia

Antes de qualquer coisa, é importante entender quem são as baleias filtradoras:

Em inglês, o termo whale (baleia) pode ser usado popularmente para se referir a qualquer espécie de cetáceo, seja este pequeno ou grande, com dentes ou não. Porém, também existe uma palavra para se referir especificamente às baleias filtradoras : baleen (algo como “barbas” ou “barbatanas”, em português).

Baleen” refere-se particularmente aos Mysticeti ou “misticetos“, no bom português. Misticetos são os cetáceos dos grupos Balaenopteridae, Balaenidae, Eschrichtiidae, Neobalaeninae e alguns outros grupos fósseis. Estes grupos possuem barbatanas (ou barbas) no lugar dos dentes, que servem para filtração, e é por isso, que esses cetáceos são chamados de “baleias filtradoras” ou “baleias de barbatana” aqui no Brasil.

Também há nomes populares específicos para diferenciar certos grupos. Rorqual, por exemplo, refere-se somente às baleias da família Balaenopteridae, que incluem baleias-azuis, baleias-fin, baleias-sei, baleias-de-bryde, baleias-de-rice, baleias-minke e baleias-jubarte. Baleias verdadeiras, por sua vez, é o nome usado para denominar as Balaenidae, representas pelas baleias-francas-austrais, baleias-francas-do-atlântico-norte, baleias-francas-do-pacífico, e as baleias-da-groenlândia.

As outras duas famílias, Eschrichtiidae e Neobalaeninae, não ocorrem no Brasil, e normalmente são chamadas pelos nomes das espécies que as representam: baleia-cinzenta (Eschrichtiidae) e a rara baleia-franca-pigméia (Neobalaeninae).

Algumas espécies de baleias filtradoras (CASTRO & HUBER, 2012).

Modos à mesa 

Cada grupo de baleia filtradora possui características anatômicas diferentes que refletem modos únicos de filtrar a água para se alimentar. Porém, pelo menos uma coisa é comum entre elas: as barbatanas, estruturas compridas e enfileiradas, feitas de queratina (mesmo material que forma nossos cabelos e unhas), presentes na boca desses animais. Tais barbatanas acabaram por substituir os dentes dos misticetos ao longo de sua evolução.

File:Humpback whale baleen.jpg
Barbatanas. Imagem de Randall Wade (Rand) Grant, sob licença CC BY 2.0.

As barbatanas funcionam como uma escumadeira ou peneira, que permite que a água abocanhada durante a alimentação seja expulsa da boca, com a ajuda da língua, e que o alimento fique preso enquanto a água sai.

As rorquais possuem pregas na região ventral, que se expandem como o papo de um pelicano, permitindo com que elas possam abocanhar (engolfar) grandes quantidades de água com cardumes inteiros de pequenos peixes ou krill (um tipo de camarãozinho). Já as baleias-verdadeiras, são mais corpulentas, não possuem pregas ventrais e a sua boca é em forma de arco. Elas basicamente se alimentam filtrando a água enquanto nadam com a boca aberta.

As barbatanas das baleias-verdadeiras podem ter entre 2 metros de altura, até 5,2 metros de altura!

As baleias-cinzentas, por sua vez, abocanham a areia do fundo marinho filtrando-a em busca de crustáceos enterrados. Elas possuem sulcos na garganta em vez de pregas ventrais. As baleias-franca-pigméia, por fim, possuem uma mistura de características: boca em forma de arco como a das baleias verdadeiras, sulcos ventrais na garganta como as baleias-cinzentas e estilo de alimentação como as rorquais.

Diferenças entre as formas de filtração das rorquais (baleia-azul) e das baleias verdadeiras (baleia-franca). A água entra na boca e depois é expulsa com a ajuda da língua ao pressionar o céu da boca, fazendo a água passar pelas barbatanas (CASTRO & HUBER, 2012).

Mas sempre foi assim? Como será que as barbatanas surgiram? As formas de alimentação sempre foram as mesmas desde o começo da evolução dos misticetos? Como as espécies transicionais se alimentavam? Essas são perguntas que o registro fossilífero pode ajudar a responder…

Comendo com hashi, os “palitinhos japoneses

Os basilossaurídeos foram os primeiros cetáceos totalmente aquáticos. Eles eram grandes caçadores, inclusive de outros cetáceos, e tinham a boca cheia de dentes diferentões, como já citamos AQUI. A pergunta inevitável é: como essas “baleias primitivas” foram de caçadoras dentadas para as banguelas filtradoras que temos na atualidade? Bom, alguns achados fósseis das últimas décadas possibilitaram entender parte desse processo: 

Em 2016, Felix G. Marx junto com outros colegas, analisaram estranhas ranhuras encontradas em dentes fósseis de um grupo de baleias “primitivas” chamadas de Aetiocetidae, comuns no Oligoceno.

Crânio de aetiocetídeo (MARX et al., 2016).

Eles analisaram um fóssil específico, encontrado em rochas da região de Washington, EUA. O espécime, datado do Oligoceno Superior demonstrou afinidade aos misticetos, mas possuía um padrão de desgaste nos dentes muito diferente, não compatível com a presença de barbatanas. Felix e colegas, depois de muitas análises, associaram os desgastes horizontais nos dentes a uma alimentação por sucção, sugerindo que as barbatanas dos misticetos teriam surgido mais tarde, próximo à origem das baleias filtradoras modernas. O que isso significa? Que antes de filtrar, os misticetos provavelmente teriam se alimentado sugando o alimento, como se faz quando comemos macarrão com hashi!

Figura 5. Padrões de desgaste em dentes, sugerindo alimentação por sucção em um aetiocetídeo (MARX et al., 2016).

As ranhuras horizontais observadas nos dentes foram comparadas com outros animais que também se alimentam por sucção na atualidade, como belugas, algumas baleias-bicudas, morsas e certas espécies de focas. Pelo padrão de desgaste, a língua deveria funcionar como um pistão, fazendo pressão para que a água e a(s) presa(s) fossem sugados rapidamente para dentro da boca, o que deveria causar estes desgastes.

Etapas de sucção mostrando a língua de um Aetiocetidae funcionando como um pistão. Ilustração por David Hocking.

Também foram observadas marcas em alguns dentes, relacionadas com a expulsão da água e sedimentos que eventualmente eram sugados junto com o alimento. Os Aetiocetidae deveriam ficar com a boca meio aberta enquanto expulsavam tudo aquilo que não era alimento. Essas marcas são semelhantes às encontradas em certas espécies de mamíferos marinhos citados anteriormente, que também se alimentam por sucção.

Mas e agora? Onde as barbatanas aparecem nessa história, se os primeiros misticetos ainda tinham dentes e sugavam a comida, ao invés de morder tudo que passava pela frente? Mais uma vez, o registro fossilífero pode nos ajudar a entender essa história, mas agora vamos contar com a ajuda de análises em animais atuais para entender outra parte dessa saga evolutiva única.

Comendo com garfo e colher

Alguns autores sustentam que as barbatanas teriam aparecido em alguns misticetos extintos que ainda possuíam dentes. Eles descrevem que essa teria sido uma “fase de transição” evolutiva, em que esses cetáceos teriam exibido uma alimentação mista: de predadores ativo por sucção, que também seriam capazes de realizar filtragem. Achados fósseis do Oligoceno Superior, publicados em 2008, por Thomas A. Deméré e colegas, permitiram o reconhecimento de marcas no céu da boca de espécies fósseis de Aetiocetidae, que indicariam uma alimentação por filtração.

Aetiocetus weltoni, um Aetiocetidae mostrando a hipótese de ocorrência simultânea de dentes e barbatanas (Ilustração de Carl Buell) (DEMÉRÉ et al., 2008).

O material descrito por Thomas pertence a uma espécie denominada Aetiocetus weltoni. Nos fósseis foram encontradas ranhuras de inervação no palato (céu da boca) semelhantes àquelas observadas nas baleias filtradoras atuais. As inervações saem da região dos alvéolos dentários (local onde se encaixam os dentes) exatamente como nos misticetos atuais. Segundo os autores, isso seria uma evidência de que a espécie fóssil teria tido barbatanas.

Palato de baleia atual sem dentes, mostrando os sulcos de inervações (a-b) e palato de Aetiocetus weltoni mostrando os sulcos de inervações junto com a dentição (MARX et al., 2016).

Inicialmente achava-se que as barbatanas poderiam ter surgido a partir de estruturas rígidas no céu da boca dos misticetos basais, chamadas de “cristas córneas palatinas”, também presentes nos artiodáctilos (cabras, bois, camelos, hipopótamos, etc.), grupo no qual os cetáceos são aparentados. Porém, as inervações encontradas nos fósseis observados por Thomas e colegas reforçaria outra hipótese.

Thomas e colegas observaram fetos de baleias filtradoras atuais e notaram que, apesar de “banguelas” quando adultas, a sua sequência de dentes se desenvolve em sua fase fetal. O seu crescimento é que é interrompido pela ação de alguns genes. Quando tais genes se ativam, os dentes são reabsorvidos pelo organismo, mantendo somente as inervações no palato geradas durante o seu crescimento inicial.

Vista lateral de um feto baleia-fin (Balaenoptera physalus) com corte mostrando botões de dente na mandíbula superior (MARX et al., 2016).

Durante a reabsorção dentária, queratina é secretada e é isso que forma as placas de barbatana no lugar dos dentes reabsorvidos. Essas placas crescem constantemente enquanto o filhote se desenvolve e, ao longo da vida, são desgastadas e desfiadas, ficando com a aparência que conhecemos.

A ordem dos talheres

Alguns autores, todavia, alertam: assim como a origem das penas em dinossauros não-avianos não marca a origem do vôo, o aparecimento dos canais de inervação no palaro dos misticetos não necessariamente indicaria a presença de barbatanas. Em vez disso, esses sulcos inervados em alguns aetiocetídeos fóssei poderiam, por exemplo, ter fornecido condições anatômicas e fisiológicas iniciais para o aparecimento posterior das barbatanas. 

Felix G. Marx e colegas, em seu trabalho de 2016, apontam que a presença de dentes alternados, como os observados no fóssil descrito por Thomas e colaboradores em 2008, acabariam danificando as barbatanas, se essas estivessem presentes. Os mesmos autores também observam que a mandíbula das baleias filtradoras atuais é mais larga, o que permite com que as barbatanas não sejam danificadas durante o fechamento da boca do animal. Além disso, misticetos atuais também possuem uma adaptação muscular especial que permite com que a mandíbula rotacione levemente durante a oclusão, o que também dificulta o dano às barbatanas.  Em aetiocetídeos, por sua vez, o tamanho da mandíbula e sua forma de abertura indicam que, qualquer barbatana, se presente, seria danificada durante o fechamento da boca.

Esquema de fechamento da boca e a acomodação das barbatanas nas baleias verdadeiras (Balaenidae) e nas rorquais (Balaenopteridae) em comparação com o fechamento da boca dos Aetiocetidae possivelmente sem barbatanas (MARX et al., 2016).

Felix e demais colegas até tentam dar uma chance ao modelo de barbatanas+dentes. Eles sugerem um cenário em que as barbatanas poderiam estar entre os dentes do animal e que, com o fechamento da boca, elas se dobrariam para dentro, similar ao que ocorre com as baleias-da-groenlândia. Todavia, ainda sim, a presença dos dentes alternados atrapalharia o dobramento e danificaria significativamente as estruturas. Os autores concluem, que as barbatanas não teriam surgido dessa forma. Talvez elas tenham surgido em outros grupos que tivessem uma mandíbula mais larga e/ou uma dentição reduzida ou inexistente.

Um jeito alternativo de comer

A capacidade de gerar sucção é fundamental para a maioria dos vertebrados aquáticos e é amplamente observada entre os mamíferos marinhos atuais. No entanto, até o trabalho de Felix e colegas, ela raramente havia sido associada à evolução dos misticetos. A sucção é muito útil na alimentação subaquática, pois facilita o transporte do alimento até o fundo da boca, onde ele será deglutido. Essa forma de adquirir alimentos provavelmente já estava presente em cetáceos basais, muito antes dos misticetos, mas esse é um comportamento relativamente difícil de se interpretar por meio de fósseis.

O uso de sucção na alimentação e provável ausência de barbatanas nos misticetos basais sugeriria um modelo diferente de evolução da alimentação por filtragem em baleias:

(1) Misticetos basais, incluindo aetiocetídeos, tinham tanto a dentição funcional, quanto a habilidade de usar sucção, herdada de cetáceos anteriores;

(2) A água ingerida por eles, como resultado da sucção, era expelida fundamentalmente com auxílio dos dentes;

(3) algum grupo de misticeto ancestral aprimorou suas capacidades de sucção ao longo do tempo, com o desenvolvimento de mandíbulas mais largas e tecidos moles associados (“calos” ou dobras na gengiva, lábios expandidos, etc.). O aperfeiçoamento desta capacidade teria favorecido a perda da dentição com o tempo;

(4) Com a perda da dentição, as barbatanas teriam evoluído e, gradualmente, sido selecionadas.

Esquema evolutivo das baleias filtradoras. (MARX et al., 2016).

Este cenário seria mais plausível, pois exclui problemas potenciais de interferência entre uma dentição ativa e barbatanas. Ele explica também como os dentes poderiam ter sido perdidos, sem afetar o sucesso da alimentação. Além disso, ele está de acordo com a evidência observada no desenvolvimento de fetos de misticetos atuais, que mostra que o crescimento das barbatanas só se dá quando os dentes são reabsorvidos.

A sucção seguida de filtragem é uma forma de alimentação que pode limitar bastante o tamanho máximo da presa a ser capturada. O aperfeiçoamento dos tecidos moles associados à dentição, em especial a gengiva, é uma forma de lidar com este problema. Primeiro, um mecanismo para prensar a presa deve ter surgido nos misticetos basais e, depois disso, um aparato apropriado de filtragem – isto é, as barbatanas.

Uma adaptação observada nos botos-de-dall (Phocoenoides dalli), espécie vivente de cetáceo, pode ajudar a imaginar como o processo teria acontecido. Esses cetáceos odontocetos (não diretamente aparentados às baleias filtradoras) têm dentes rudimentares e possuem em sua boca, também, pequenos “dentes na gengiva”, semelhantes aos brotos iniciais das barbatanas dos misticetos. Essas estruturas ajudam os botos-de-dall a capturarem suas presas. Pode ser que essa adaptação seja uma pista de como se deu a perda gradual da dentição em misticetos e posterior surgimento das barbatanas.

A origem das barbatanas, adaptação chave das baleias filtradoras modernas (Mysticeti), marca uma transição profunda e única na história evolutiva dos vertebrados. Hoje, ela é um pouco melhor compreendida, porém, como vocês viram, ainda restam detalhes a serem desvendados sobre como esta belíssima crônica evolutiva se desenrolou. A compreensão da evolução dos “modos à mesa” das baleias pode estar, não só nos fósseis, mas em uma combinação entre estudos paleontológicos, genéticos e do desenvolvimento.

Referências:

CASTRO, Peter; HUBER, Michael E. Biologia marinha. AMGH Editora, 2012.

DEMÉRÉ, Thomas A.; MCGOWEN, Michael R.; BERTA, Annalisa; GATESY, John. Morphological and molecular evidence for a stepwise evolutionary transition from teeth to baleen in mysticete whales. Systematic biology, v. 57, n. 1, p. 15-37, 2008.

MARX, Felix G.; HOCKING, David P.; PARK, Travis; ZIEGLER, Tim; EVANS, Alistair R.; FITZGERALD, Erich M. G. Suction feeding preceded filtering in baleen whale evolution. Memoirs of Museum Victoria, v. 75, 2016.

O devorador de baleias ancestrais

Anteriormente falamos aqui sobre um incrível golfinho caçador que dominou as águas do Oligoceno no sul da Califórnia (E.U.A) e suas contribuições para a evolução dos cetáceos (grupo que inclui as baleias e golfinhos). Citamos algumas diferenças entre ele e um grupo de cetáceos muito mais antigo, que incluía também caçadores tão excepcionais quanto, os gigantescos basilossaurídeos. Mas afinal, quem são esses cetáceos com nome de dinossauro?

Basilossaurídeos. Ilustração por Artbyjrc.

Os fósseis mais antigos de basilossaurídeos são encontrados em rochas datadas do final do Eoceno Médio. Eles são encontrados em todo o mundo, incluindo África, Ásia, Europa, América do Norte e do Sul, Nova Zelândia e até mesmo na Antártica. De maneira geral, basilossaurídeos eram cetáceos com o corpo extremamente alongado, algumas espécies chegando a mais de 18 metros de comprimento. Foi por meio de fósseis desses cetáceos “arcaicos” que paleontólogos tiveram as primeiras pistas de que os golfinhos e baleias se originaram de mamíferos inicialmente terrestres.

O entendimento da ancestralidade terrestre só foi possível graças à preservação de ossos vestigiais das patas traseiras. Estas, eram pequenas e provavelmente semelhantes às nadadeiras peitorais dos golfinhos atuais, ou seja, não se conectavam/articulavam mais diretamente com a coluna. Isso demonstra que basilossaurídeos não conseguiriam mais sustentar o seu próprio corpo em terra e, portanto, seriam os primeiros cetáceos completamente adaptados à vida marinha. Também foram os cetáceos mais antigos a mostrar a migração das narinas da ponta do focinho para o topo da cabeça, como vemos hoje nas baleias e golfinhos modernos.

Esqueleto de Dorudon atrox evidenciando as patas traseiras rudimentares e desconexas da coluna vertebral. Foto do Repertório online de fósseis do Museu de Paleontologia da Universidade de Michigan.

Grandes répteis?

A primeira espécie de basilossaurídeo foi descrita em 1834 por Richard Harlan, que batizou-a de Basilosaurus, “Lagarto Rei” em grego antigo. Porém, Harlan havia interpretado aqueles fósseis erroneamente como sendo de um grande réptil marinho. Percebendo esse erro, Richard Owen, em 1839, reavaliou os fósseis do Basilosaurus associando-o aos cetáceos, e dando-lhe um novo nome, Zeuglodon, que significa “Dentes de Jugo”, também derivado do grego antigo.

Apesar dessa nova avaliação, o nome original dado por Harlan permaneceu devido às regras internacionais da nomenclatura zoológica, que definem que o primeiro nome dado a uma nova espécie é o que deve ser considerado válido.

Evidências de um grande caçador

Nos últimos anos, descobertas de novos fósseis de basilossaurídeos na região do Egito, no continente africano, revelaram relações nada amigáveis entre algumas espécies do grupo. Alguns fósseis indicam que o gigantesco Basilosaurus isis, um animal que atingia até 18 metros de comprimento, seria predador de uma espécie menor de basilosaurídeo conhecida como Dorudon atrox. Essa descoberta deu pistas sobre como os grandes basilossauros do Eoceno Médio e Final eram efetivamente os “reis” dos mares. 

Esqueletos de (A) Basilosaurus isis e (B) Dorudon atrox (VOSS et al., 2019).

Julia M. Fahlke relata em um trabalho publicado em 2012, que fósseis das duas espécies de basilossaurídeos foram encontrados no mesmo sítio fossilífero. Porém, havia algo estranho ali: na localidade eram encontrados fósseis tanto de juvenis quanto de adultos de Dorudon atrox e somente fósseis de adultos de Basilosaurus isis. No mesmo trabalho, Fahlke relata também, que alguns dos crânios de D. atrox possuíam grandes marcas de mordida, que depois de análise detalhada, puderam ser interpretadas como ferimentos letais, ou seja, elas eram a provável causa de morte desses organismos. Quem seriam os responsáveis pelas mordidas?

Isso levou a pesquisadora a propor a hipótese de que adultos de B. isis poderiam, no passado, ter invadido as áreas de parto de D. atrox para atacar seus filhotes. Não havia, no entanto, nenhuma evidência direta para apoiar essa hipótese. Fahlke, então, decidiu digitalizar os fósseis para testar a sua ideia. Ela aplicou técnicas de tomografia computadorizada e obteve modelos tridimensionais (3D) dos crânios fossilizados. Os modelos 3D dos espécimes juvenis de D. atrox foram colocados digitalmente na boca de um B. isis adulto e as marcas de mordidas comparadas com o tamanho e posicionamento dos dentes. Bingo! As marcas de mordida no crânio dos juvenis de D. atrox correspondiam exatamente à dentição de B. isis.

Modelo digital 3D do espécime juvenil de Dorudon atrox (azul) na boca de um Basilosaurus isis adulto (cinza) (FAHLKE, 2012).

O perfil do culpado

A pesquisadora também produziu modelos de argila dos dentes de B. isis e observou que as marcas nos crânios dos juvenis de D. atrox também se encaixavam com as características específicas dos dentes da espécie maior de basilossaurídeo. As marcas variavam ainda de acordo com qual dente fincou no crânio do animal, a posição do ataque, a força aplicada durante a mordida e o estado de desgaste natural dos dentes de B. isis

Foi proposto também, que algumas marcas poderiam ter sido causadas por outros animais como Crocodilus megarhinus, grandes crocodilos marinhos do final do Eoceno do Egito, ou Carcharocles sokolowi, um grande tubarão encontrado mesmo depósito, com dentes de até 9,5 cm. Porém, as marcas analisadas não se encaixavam com as características da arcada e dos dentes dessas espécies. O culpado realmente só poderia ser Basilosaurus isis.

Acreditava-se, até então, que a alimentação dos cetáceos primitivos era limitada a peixes, entretanto, com esse estudo, as primeiras evidências de uma predação mais ampla foram sugeridas. 

Um mundo onde baleia comia baleia (e também tubarão!)

Apesar do excelente trabalho feito por Fahlke, evidências diretas eram necessárias para comprovar definitivamente a relação de predação proposta pela autora. A preservação do conteúdo estomacal desses enormes predadores seria o ideal. 

Eis que, em 2019, Manja Voss e colegas publicaram um trabalho justamente com a peça faltante para a compreensão dessa relação entre presa e predador: o conteúdo estomacal de um B. isis foi encontrado e nele, partes de D. atrox. Voss e colegas relataram evidências de três espécies de vertebrados encontrados no conteúdo estomacal de B. isis. Haviam partes de dois juvenis de D. atrox, dentes de um pequeno peixe ósseo (Pycnodus mokattamensis) e dentes de um grande tubarão (Carcharocles sokolowi).

Fotomosaico de Basilosaurus isis encontrado com conteúdo estomacal preservado (VOSS et al., 2019).

Os autores sugeriram ainda que, devido ao grande tamanho de algumas presas encontradas, B. isis  não deveriam ser capazes de engoli-las inteiras. Considerando o comportamento de cetáceos atuais, eles também não deveriam consumir a carne de carcaças. Eles eram devidamente capazes de atacar animais de grande porte e abatê-los, além de terem dentes apropriados para cortá-los em pedaços. A cena deveria ser terrível.

Muito se comparou B. isis com as grandes orcas (Orcinus orca) da atualidade, pois estas também são de caçadores de topo de cadeia, que consomem animais, incluindo outros mamíferos marinhos e tubarões, às vezes muito maiores do que elas mesmas. A descoberta elucidou um pouco mais sobre a dinâmica dos predadores de topo dos oceanos do início da Era Cenozóica. 

As orcas também caçam filhotes de grandes baleias, assim como consomem parte das presas maiores, dando uma perspectiva sobre como B. isis faziam em sua época. Porém, as orcas caçam em grupo e esse tipo de interação não é possível de ser verificada no registro fossilífero de  B. isis. Pelo menos até o momento…

Restos cranianos de juvenil de Dorudon atrox (VOSS et al., 2019).

Pelas informações adquiridas a partir desses trabalhos, entende-se que B. Isis foram possivelmente os primeiros cetáceos a se alimentarem de outros cetáceos de sua época. Os trabalhos citados aqui também ampliam o conhecimento sobre a evolução da dieta desse grupo de animais, antes interpretados como consumidores exclusivos de peixes. Ainda há muito a se descobrir sobre a  paleoecologia dos cetáceos extintos. O registro fossilífero sempre guarda surpresas e é preciso uma atenção especial e, às vezes, até mesmo criatividade para se desvendar os mistérios guardados nos fósseis.

Referências:

FAHLKE, Julia M. Bite marks revisited — evidence for middle-to-late Eocene Basilosaurus isis predation on Dorudon atrox (both Cetacea, Basilosauridae). Palaeontologia Electronica, v. 15, n. 3, p. 32A, 2012.

MARX, Felix G.; LAMBERT, Olivier; UHEN, Mark D. Cetacean paleobiology. John Wiley & Sons, 2016.

VOSS, Manja., ANTAR, Mohammed Sameh., ZALMOUT, Iyad S., & GINGERICH, Philip D. Stomach contents of the archaeocete Basilosaurus isis: Apex predator in oceans of the late Eocene. PloS one, v. 14, n. 1, p. e0209021, 2019.

Um grande golfinho predador e a evolução dos cetáceos modernos

Golfinhos e baleias atuais, junto com os peixes-boi e dugongos (Sirênios), são mamíferos completamente adaptados ao ambiente aquático. Suas atividades como alimentação, locomoção, descanso e reprodução dependem inteiramente desse ambiente. Eles não precisam, por exemplo, retornar à terra para executarem essas ações, diferentemente do que ocorre em outros grupos de mamíferos aquáticos, como leões marinhos, focas ou lontras. Mas você já pensou em como esse processo aconteceu?

A origem dos primeiros cetáceos (grupo que inclui golfinhos e baleias) se deu a partir de animais completamente terrestres. Formas extintas aparentadas aos artiodáctilos (grande grupo que inclui cabras, bois, camelos, hipopótamos, etc.) começaram essa jornada há cerca de 50 milhões de anos atrás. Eles se adaptaram, com o passar do tempo, às diversas peculiaridades do ambiente aquático, como a maior viscosidade, densidade, empuxo e pressão hidrostática. Entre as principais adaptações desenvolvidas pelos cetáceos, modificações anatômicas associadas à natação foram algumas das mais fundamentais para sua sobrevivência nesse “novo” ambiente.

Indohyus major, um animal extinto do Eoceno, terrestre e herbívoro, relacionado aos primeiros cetáceos. Arte de Nobu Tamura CC BY 3.0.

Nos cetáceos modernos, diversas características anatômicas e comportamentais permitem manobras na água e facilitam o deslocamento desses animais nos oceano, mares e rios. A evolução de algumas características pode ser rastreada nos fósseis. Porém, há uma falta considerável de informações sobre uma parte delas. Uma relação ainda pouco compreendida, por exemplo, é como se deu a divergência entre os golfinhos (odontocetos) e as baleias (misticetos).

Cynthiacetus (esquerda), um cetáceo completamente aquático, e Ambulocetus natans, uma forma semi-aquática de cetáceo do Eoceno. Foto de Jean-Pierre Dalbéra.
Cynthiacetus (esquerda), um cetáceo extinto completamente aquático do fim do Eoceno, e Ambulocetus natans, uma forma semi-aquática de cetáceo do início do Eoceno. Foto de Jean-Pierre Dalbéra, CC BY 2.0.

Abundantes esqueletos de cetáceos do Eoceno ilustram a transição da vida semiaquática para a completamente aquática, incluindo o desenvolvimento de um corpo alongado, cilíndrico e com extremidades afiladas (corpo fusiforme). Fósseis do Eoceno também demonstram o gradual processo de redução das patas traseiras e a migração das narinas em direção ao topo da cabeça. Entretanto, há uma raridade excepcional de esqueletos de cetáceos em rochas do Oligoceno, o período geológico seguinte ao Eoceno, e isso tem dificultado muito os esforços para compreender a evolução da força de natação dos cetáceos. No Eoceno, a natação ainda era controlada parcialmente pelas patas traseiras, mas com o tempo ela passa a ser exercida exclusivamente pela cauda robusta.

Em 2020 o pesquisador Robert W. Boessenecker, junto com outros colegas, publicaram a descrição de uma nova espécie de um raro golfinho fóssil de grande porte, encontrado em estratos do Oligoceno do sul da Califórnia (E.U.A). Materiais deste animal já eram conhecidos desde o século 19, mas eram muito fragmentados, o que impedia que pesquisadores conhecessem melhor a espécie. Boessenecker e colegas descobriram, na década de 1990, um espécime surpreendentemente bem preservado, ainda que parcial, que permitiu não só batizarem adequadamente o animal (Ankylorhiza tiedemani), como também estudarem a evolução de algumas características transicionais pouco conhecidas dos cetáceos.

Ankylorhiza tiedemani possuía diversas características compartilhadas entre as baleias e golfinhos, o que deu aos cientistas pistas preciosas sobre a evolução destes grupos. O tamanho e outras características do corpo animal indicam que ele era um predador ativo, de natação rápida, que dominou as águas do seu tempo, ocupando um nicho semelhante aos das grandes orcas atuais.

Esqueleto de Ankylorhiza tiedemani (BOESSENECKER et al., 2020).

O primeiro material descrito para essa espécie foi um crânio muito incompleto recuperado por volta de 1880, que, na época, foi atribuído ao gênero Squalodon. Com a descoberta do esqueleto mais completo, descrito por Boessenecker e colegas em 2020, novas análises foram feitas e descobriu-se que, na verdade, o material pertencia a um novo gênero, batizado de Ankylorhiza. A. tiedemani é considerado, até o momento, o maior Odontoceto do Oligoceno, com aproximadamente 4,8m de comprimento, tamanho não superado até o Mioceno, quando aparecem no registro fossilífero os primeiros grandes cachalotes.

A. tiedemani possui o crânio e mandíbula robustos, com uma dentição simplificada quando comparada com os basilossaurídeos, grupo de cetáceos mais antigos, que tinham os dentes cheios de cristas e pequenas pontas acessórias. As características dentárias de A. tiedemani indicavam que ele se tratava de um caçador com elevada força de mordida, semelhante às encontradas nos primeiros cachalotes. Seus dentes da parte frontal são um mistério, pois possuem um ângulo estranho de inserção no crânio. Eles apontam para frente, o que indica que podem ter sido utilizados para competição entre indivíduos do mesmo sexo, como fazem as baleias-bicudas atuais, ou empregados na captura e abate de presas.

Baleia-bicuda (Ziphius cavirostris). Nos machos adultos podem ver-se dois dentes na ponta do maxilar inferior que estão orientados para a frente. Foto de Eveha CC BY 3.0.

As nadadeiras peitorais de A. tiedemani possuem várias características derivadas, incluindo ossos longos (úmero, rádio e ulna) mais curtos quando comparados com os basilossaurídeos, porém, mais alongados quando comparados com os Odontocetos atuais. Suas nadadeiras e coluna vertebral também possuem características intermediárias, a maioria mais próxima de outros odontocetos basais, mas com algumas correlações com os misticetos. Isso coloca a espécie próxima à base da árvore evolutiva dos odontocetos. 

Relações filogenéticas de Ankylorhiza tiedemani (BOESSENECKER et al., 2020).

A mobilidade de A. tiedemani seria semelhante à das falsas-orcas e orcas atuais, indicando uma natação reforçada, mais poderosa do que a dos basilossaurídeos (formas mais basais) de porte semelhante. Isso sugere que a espécie tinha velocidade suficiente para perseguir outros cetáceos, sirênios, tartarugas, aves marinhas, tubarões e outros peixes contemporâneos, incluindo esses organismos em sua dieta potencial.

A. tiedemani, finalmente, trouxe um pouco de luz sobre como diversas adaptações convergentes estavam presentes em odontocetos e misticetos basais, principalmente no que diz respeito a sua mobilidade. Futuras descobertas de espécimes mais completos ou ainda de novas espécies provenientes dos mesmos estratos geológicos podem ser chave na compreensão da evolução de mais aspectos da locomoção dos cetáceos modernos. Essas descobertas também podem auxiliar na elucidação de mais detalhes sobre como se deu a divergência entre baleias e golfinhos, um evento evolutivo fascinante e ainda pouco compreendido, que se deu nos mares do final do Eoceno e do início do Oligoceno.

Referência:

BOESSENECKER, Robert W. et al. Convergent evolution of swimming adaptations in modern whales revealed by a large macrophagous dolphin from the Oligocene of South Carolina. Current Biology, v. 30, n. 16, p. 3267-3273. e2, 2020.