Biogeografia: um mundo de mudanças

Nossa colaboradora Lucy Souza, nessa sua segunda postagem no blog, explica conceitos básicos de “Biogeografia”, a ciência que estuda a distribuição espacial das espécies e ecossistemas ao longo do tempo. Com muito conhecimento da causa e um diálogo crítico e consciente, Lucy vai introduzir-lo a uma nova forma de enxergar o mundo:

Mapa do mundo retirado do livro "The geographical distribution of Animals", mostrando as seis regiões biogeográficas definidas por Alfred R. Wallace (1876).
Mapa do mundo retirado do livro “The geographical distribution of Animals”, mostrando as seis regiões biogeográficas definidas por Alfred R. Wallace (1876).

“Todos aqueles que se dedicam à natureza, de forma profissional ou passional, em algum momento já se perguntou como e por que os seres vivos apresentam a distribuição geográfica que observamos. Ao longo dos séculos, milhares de naturalistas, filósofos e até mesmo religiosos se dedicaram a registrar padrões de distribuição e entender os processos que as produziram. Crianças desde cedo já demonstram esse interesse: por exemplo, quem nunca se perguntou o porquê de só haver pingüins no pólo sul e ursos polares no pólo norte? A célebre frase “Terra e Vida evoluem juntos” de autoria do botânico Leon C. M. Croizat (1894-1982), famosa por seu grande impacto na ciência, pode nos ajudar a entender essas questões. Mas afinal o que ela quer dizer? O que existe de tão poderoso por trás dessa frase? O que ela esconde em termos de metodologias e proposições de hipóteses? A resposta para tal é bastante complexa e envolve muito mais que o simples acaso ou a vontade de uma entidade superior.

Esta cena é impossível em mais de um aspecto.
Sim, esta cena é impossível em mais de um aspecto.

Vamos nesse post desbravar um pouco sobre o misterioso universo da Biogeografia!

A base da Biogeografia foi bem fundamentada por diversos nomes famosos, como Alexander von Humboldt (1769–1859), Hewett Cottrell Watson (1804–1881), Alphonse de Candolle (1806–1893), Alfred Russel Wallace (1823–1913), Philip Lutley Sclater (1829–1913) e tantos outros nomes (para um melhor aprofundamento, sugiro a leitura do livro de Brown & Lomolino, 2006). A Biogeografia, para início da nossa conversa, é uma ciência que busca principalmente estudar a distribuição dos seres vivos no espaço e no tempo, e detectar os padrões deixados pelos mesmos. O estudo de processos como isolamento, colonização, especiação, extinção, etc, são importantes ferramentas. Como podemos perceber, trata-se de uma ciência multidisciplinar, integrativa – mas que infelizmente, possui uma grande perda de informações devido a sua essência visivelmente histórica.

Antes de tentarmos responder uma pergunta biogeográfica é fundamental que entendamos a sua origem e seu real significado, é necessário, portanto, o estudo dos aspectos filosóficos que regem tal pergunta.

A biogeografia é tradicionalmente subdividida em duas categorias (De Candolle, 1820): a Biogeografia Histórica e a Biogeografia Ecológica. A proposição de uma terceira, a Paleobiogeografia, originalmente proposta por Furon (1961) como um sinônimo da Biogeografia Histórica, porém foi rapidamente adotada por Paleontólogos, especialmente aqueles que trabalham com grupos que não tem nenhum representante atual. O termo Paleobiogegrafia foi brevemente difundindo por Lieberman (2003), num célebre trabalho que destaca a importância dos fósseis para a detecção e discussão de padrões biogeográficos. Em suma, as em três categorias se encontram melhor explicadas abaixo (sensu Brown & Lomolino, 2006):

– Biogeografia histórica: busca reconstruir a “origem” (entenda por: conquista de determinada região geográfica), dispersão e extinção dos seres vivos;

– Biogeografia ecológica: busca explicar a distribuição atual dos seres vivos levando em consideração suas interações entre organismos e ambiente;

– Paleobiogeografia: busca explicar a distribuição observada em organismos fósseis.

No entanto, hoje essas divisões são reconhecidas como claramente artificiais (Morrone, 1993, 2004; Crisci, 2001), pois sabemos que para qualquer padrão de distribuição atual, existiram fatores históricos responsáveis por moldá-los como são hoje. Assim, podemos classificar a biogeografia, incluindo todas suas subdivisões, como uma ciência que busca explicar os padrões atuais de distribuição das espécies com base em eventos históricos, que naturalmente não poderemos mais observar (bem ilustrado juntamente com seus processos na Figura 1).

biogeografia

Figura 1: Esquema exemplificando as possíveis hipóteses explanatórias para os padrões biogeográficos observados. Retirado de Myers & Giller, 1988.

Destrinchando um pouco mais sobre o que comentei acima e o que está ilustrado na Figura 1 podemos dizer que as ciências de modo geral (Biogeografia inclusa) buscam detectar padrões, além de explica-los por meio de processos – ou seja, a criação de hipóteses. Tais hipóteses, em geral, são divulgadas a outros cientistas que as sujeitarão a testes buscando corroborá-las ou falseá-las. Essa linha de pensamento é conhecida como raciocínio hipotético-dedutivo e foi fortemente defendida por Karl Popper (brevemente discutido em Brown & Lomolino, 2006). Embora ela seja aceita na maioria das Ciências, alguns autores como Rosen (1988) levantaram discussões acerca de sua influência na Biogeografia.

Os padrões biogeográficos observados nos indivíduos de uma determinada espécie tendem a ser explicados por uma das seguintes hipóteses explanatórias abaixo. Vale ressaltar que a compreensão e adoção de uma das formas de se designar uma espécie seja feita e explicitada antes da inferência de qualquer hipótese biogeográfica, para tal recomendo a leitura de minha postagem anterior.

400px-I'm_a_mammal!Todos os indivíduos de uma espécie estão sujeitos a expressarem variações entre si que podem ou não ser passadas para seus descendentes. Quando uma população de uma determinada espécie começa a acumular em seus descendentes uma ou mais característica (origem e fixação de uma ou mais características) dizemos que tal espécie sofreu um processo anagenético de especiação, sendo, portanto, possível identificar um conjunto de indivíduos que eram caracterizados por uma característica X e chamados por espécie A e um conjunto de indivíduos que ocupam o espaço previamente ocupado pela espécie A que são caracterizados pela característica contrastiva Y e chamados por espécie B. Esse evento biogeográfico de “sucessão” de uma determinada área por espécies que se originaram via anagenese é conhecida como simpatria ou paripatria. Uma característica desse tipo de hipótese biogeográfica é que o fator preponderante não é a colonização de novas áreas e sim o efeito tempo que pode ou não ter modificado a área, mas que modificou os indivíduos de uma determinada espécie que ali residia.

Quando uma tocogenia de uma espécie, por algum motivo, se separa em duas novas e cada uma dessas tocogenias representa uma ou mais tocogenias de no mínimo uma espécie diferente, chamamos tal evento de Cladogenese, representada por uma dicotomia em um cladograma. Em geral, os principais eventos que levam a tal separação na tocogenia são eventos externos a espécie e geralmente estão associados à processos físicos, como o surgimento de uma barreira (qualquer estrutura física ou climática que impeça a dispersão de indivíduos da espécie em questão). Na biogeografia o surgimento de tais barreiras é formalmente conhecido como eventos vicariantes, representados na Figura 1. Então diferente da simpatria/paripatria, a vicariância tem um grande componente espacial e também conta com o fator temporal. O fator temporal esta relacionado com o tempo de existência/permanência de tal barreira e se ela foi capaz de selecionar de forma diferenciada as populações isoladas, justificando a designação de nova(s) espécie(s).

Se os indivíduos de uma espécie possuem sua distribuição limitada por barreiras, sejam elas físicas ou não, mas que durante algum momento na história evolutiva dessa espécie essa barreira torna-se momentaneamente transponível possibilitando que uma porção desses indivíduos dispersem por tais fronteiras e colonizem novos espaços, chamamos tal processo na biogeografia de dispersão (Figura 1). Eventos dispersivos em geral são mal vistos pelos cientistas devido à dificuldade de se encontrar evidências que suportem tais hipóteses explanatórias. Portanto, são consideradas respostas chave para perguntas biogeográficas quando não se há evidências favoráveis a outros tipos de eventos, como a vicariância. Um ótimo exemplo da utilização de dispersão quando nenhuma outra hipótese parece favorável são os eventos dispersivos propostos para os macacos e roedores presentes na América do Sul. Estes teriam aqui chegado via balsas naturais que atravessaram o oceano Atlântico sul provenientes da África.

Por fim, um fator um tanto quanto negligenciado são os eventos de extinção de populações. Quando uma espécie apresenta indivíduos colonizando uma região vasta com diferentes ecossistemas e por algum motivo parte dessas populações são extintas, você cria um novo padrão distribucional e que pode levar a separação das tocogenias dessa espécie. A depender do tempo e da capacidade de re-colonização dos indivíduos dessa espécie você pode ser capaz de criar um evento de “especiação” nessas populações muito similar ao criado por eventos vicariantes. Outro padrão bastante comum causado por eventos de extinção são as distribuições disruptivas causadas por processos similares ao descrito anteriormente, só que sem a diferenciação entre as populações ou com a manutenção parcial de sua tocogenias.

Com as possíveis hipóteses explanatórias explicadas agora fica fácil entender o que Croizat quis dizer com “Terra e Vida evoluem juntos”. Como podemos observar todas explicações estão de alguma forma diretamente relacionadas a evolução dos ambientes (Terra) e o impacto que estas mudanças podem gerar nas populações. Como por exemplo, o surgimento de montanhas via tectonismo podem ser ótimos produtores de efeitos vicariantes, mas mudanças em menor escala, como a mudança de percurso de um grande rio também pode servir como barreira para inúmeras espécies. Além disso, mudanças climáticas são fatores que podem ser diretamente relacionados e eventos de extinção local ou “forçar” que tais populações se dispersem em busca de novos ambientes favoráveis. Então como Croizat bem disse a Terra esta evoluindo e influenciando diretamente à vida. O impacto dessas mudanças e as reações tomadas pelos indivíduos dessas espécies para se adaptarem as novas condições foi explicada por outra renomado pesquisador Charles R. Darwin (1809-1882) e ficou conhecida como Teoria da Seleção Natural.

Sendo assim, quando buscamos entender um padrão biogeográfico, procuramos por todos os eventos que teriam potencial para produzir o padrão de distribuição observado em determinada área. Cada espécie presente em uma área específica apresentará uma hipótese explanatória independente. No entanto, cada hipótese explanatória está relacionada a uma mesma teoria e deve ser respondida em conjunto devido ao efeito de causa comum e a capacidade de influência que cada uma delas tem para com a outra. Sendo assim, quando tentamos desvendar as causas de uma determinada distribuição em uma área X precisamos utilizar o máximo de dados possível, pois as hipóteses geradas para cada espécie individualmente é relevante para responder a pergunta feita, sejam essas favoráveis ou não as nossas respostas. Dessa forma estaremos atendendo o requerimento da evidência total e teremos mais suporte (um maior número de hipóteses relevantes) para nossas respostas.

Além disso, é fundamental que haja mais conversa entre as pessoas interessadas em desvendar tais padrões, principalmente àqueles que se consideram biogeógrafos. O desenvolvimento de novas metodologias é importante para a aquisição de novas respostas. No entanto, respostas se tornam vazias quando não há uma boa compreensão do que está sendo perguntado. Portanto, faz-se necessário que tais pesquisadores discutam mais sobre as bases filosóficas de suas ciências e entendam e discutam as formas mais corretas de se perguntar o que anseiam descobrir, para somente depois buscarem metodologias que os auxiliem na aquisição de novas respostas.

Por fim, gostaria de agradecer a minha parceira de vida Kamila L. N. Bandeira pelas idéias, discussões e revisões feitas no texto.”

Lucy Gomes de Souza

Graduada em licenciatura e bacharelado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Uberlândia e mestre em Zoologia pelo Museu Nacional/UFRJ. Desenvolve pesquisas na área de sistemática e paleontologia, principalmente com crocodilianos fósseis e aspectos filosóficos da sistemática.

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REFERÊNCIAS:
BROWN, J. H. & LOMOLINO, M. V. 2006. Biogeografia. FUNPEC – editora, 2ºed, p. 692.
Crisci, J.V. 2001. The voice of historical biogeography. Journal of Biogeography, 28: 157–168.
DE CANDOLLE, A.P. 1820. Géographie botanique. in: CUVIER, Frédéric (ed.). Dictionnaire des Sciences Naturelles. Paris: Levrault, Vol. 18, Pp. 359-422.
Furon, R. La Distribuicíon de los Seres. 1961. Trad. R. Brito. Buenos Aires – Barcelona, Nueva Col. Labor, 163 p.
Lieberman, B. S. 2003. Paleobiogeography: The Relevance of Fossils to Biogeography. Annu. Rev. Ecol. Evol. Syst., 34:51–69
MYERS, A. A. & GILLER, P. S. 1988. Analytical biogeography: an integrated approach to the study of animal and plant distributions. Chapman and Hall, London and New York, p. 576.
Morrone, J.J. 1993. Beyond binary oppositions. Cladistics, 9: 437–438.
Morrone, J.J. 2004.  Homología biogeográfica: las coordenadas espaciales de la vida. Cuadernos del  Instituto de Biología 37, Instituto de Biología, UNAM, México D.F.
ROSEN, B.R. 1988. Biogeographic patterns: a perceptual overview. In: MYERS, A. A. & Giller, P. S. (editors), Analytical biogeography: an integrated approach to the study of animal and plant distributions. Chapman and Hall, London and New York, p. 23–56.