Nas primeiras semanas de junho, após quase dois meses de isolamento social, muitas cidades optaram por implementar planos de flexibilização do isolamento social com reabertura gradual do comércio e demais serviços ditos não essenciais. Em meio a um cenário ainda crescente do número de casos da COVID-19 e sem qualquer certeza de termos atingido o “pico da curva”, uma pergunta torna-se inquietante: qual a lógica por trás dessas ações? As medidas certamente têm por objetivo a retomada gradual da “normalidade” com foco no fortalecimento econômico. Mas, de fato, quais as consequências possíveis de tais ações? Com base nos dados expostos pelo plano São Paulo1 tentamos aqui costurar interpretações para entender a lógica que levou estados e municípios a adotarem medidas de flexibilização do isolamento social.

Muitos devem lembrar do tal achatamento da curva, amplamente comentado no início da pandemia. A tentativa de “achatar a curva” dos casos da COVID-19 consistia em promover ações de isolamento social de modo que, ao ficarmos em casa, pudéssemos retardar a taxa de contaminação. Tínhamos que ter em mente que, enquanto não houvesse (e ainda não há) uma vacina, todos, hora ou outra, seríamos contaminados pelo corona vírus. A ideia é que isso ocorresse gradualmente de modo que o número de doentes não ultrapassasse o número de leitos disponíveis no sistema de saúde. Ou seja, imaginemos que uma determinada cidade dispõe de 100 leitos de UTI. Se tivermos 101 pacientes, 1 deles ficará sem atendimento adequado e correrá um risco maior de vir a óbito.

Em diversas cidades, tais ações têm logrado êxito, considerando os números oficiais. 

Mas o que mudou para que fosse possível nos libertarmos das amarras do isolamento social? Todos já se contaminaram, certo? ERRADO! Chegamos ao pico da curva? ERRADO! Descobrimos o tratamento ou a vacina? ERRADO. Então o que fez o governo flexibilizar o isolamento? Vamos tentar compreender a razão olhando os dados disponibilizados pelo governo do estado de São Paulo, que se assemelham a de outros estados da federação.

O que é o plano SP?

O Plano propõe que os municípios ou regiões sejam classificados em termos de “fases”. Cada fase implica um maior ou menor grau de liberação de atividades sociais e econômicas como mostrado na figura abaixo1.

Fonte: Plano São Paulo.

Para que uma região seja classificada em uma das fases, o governo propôs que cinco indicadores devem ser analisados: Taxa de ocupação dos leitos de UTI COVID, leitos de UTI para cada 100.000 habitantes, evolução no número de casos; evolução no número de internações e evolução no número de mortes. Desta forma, uma região que atinja a pontuação mínima para os indicadores pode adotar medidas de flexibilização do isolamento, conforme ilustra a figura abaixo1.

Fonte: Plano São Paulo.

Compreendido o sistema e os indicadores, a questão que nos fazemos é: o que mudou do início da quarentena até aqui?

Dentre as ações propostas pelos governos, a construção de hospitais de campanha e a aquisição de respiradores foi, sem dúvida, a que demandou grandes esforços, culminando no aumento do número de leitos de UTI. Ou seja, não significa que o número de casos diários diminuiu ou que o número de casos tem estabilizado. Isso pode ser constatado pelos dados disponibilizados pelo próprio sistema de gerenciamento do governo2.

A consequência do aumento do número de leitos é que com isso se consegue um menor índice de ocupação dos mesmos. Por exemplo, se temos 80 casos para 100 leitos a taxa de ocupação é de 80%. Se dobramos o número de leitos e mantermos o mesmo número de casos teremos 80 casos para 200 leitos, implicando uma taxa de ocupação de 40%. É exatamente aqui que reside o problema. Se o aumento semanal no número de casos durante o isolamento social já está sendo verificado, ao promover a reabertura obviamente este índice irá disparar, como aconteceu em todos os lugares que não implementaram o isolamento ou como tem ocorrido em regiões do BRASIL que já adotaram a flexibilização3,4.

Então, qual a mensagem que o governo (neste caso o de São Paulo) está passando?

Podemos dizer que, de certo modo, os gestores optaram nesse momento por contaminar mais rápido as pessoas mas tentando garantir que as mesmas tenham atendimento caso isso ocorra. Essa é a opção. Esse é o risco. Deixou-se um pouco de lado o achatamento da curva ou, como preferem alguns, foram acrescentados novos números ao estado.

Vale ressaltar que, ocorrendo o óbvio (o aumento abrupto no número de casos), o governo pretende implementar um novo isolamento ou o retorno a fase 1. Apenas nos questionamos o quão viável seria, neste momento, aumentar a contaminação por meio da flexibilização do isolamento social? Conseguiremos retomar novamente o isolamento, caso o plano não de certo? O resultado parece poder ser visualizado desde já. Mas veremos, de fato, verificaremos as consequências nas próximas duas semanas. 

Para saber mais

1. Plano São Paulo. Disponível em https://www.saopaulo.sp.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/PlanoSP-apresentacao.pdf

2. Boletim CIVID-19 São Paulo. Disponível em: https://www.seade.gov.br/coronavirus/

3. Folha de Pernambuco: Pernambuco freia avanço da retomada gradual em 85 cidades. Disponível em: https://www.folhape.com.br/noticias/coronavirus/pernambuco-freia-avanco-da-retomada-gradual-em-85-cidades-veja-lista/143619/

4. Portal G1: Prefeitura de Campinas publica decreto com prorrogação da quarentena. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2020/06/12/ultimas-noticias-de-coronavirus-na-regiao-de-campinas-em-12-de-junho.ghtml

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Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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