Texto escrito por Ana de Medeiros Arnt, Tatyana de Almeida Tavella e Mellanie Fontes-Dutra
Publicado no dia 15 de Junho de 2021, o artigo de revisão The mechanisms of action of Ivermectin against SARS-CoV-2: An evidence-based clinical review article reacende o debate sobre o uso da Ivermectina em casos de infecção por COVID-19.
Neste post, estruturamos uma análise do artigo que levou a um pedido de retratação deste artigo. Para tanto, nos baseamos na fragilidade metodológica e nas escolhas de artigos e referências, feita pelos autores. Esta escrita é feita em tom de carta endereçada à revista, tendo nossa preocupação com o impacto e os possíveis danos às propostas de tratamento ineficazes, espalhamento e geração de desinformação em um momento crítico de saúde pública. Estudos com uma fragilidade teórico-metodológica como esta não deveriam ser considerados para revisão de pares. Muito menos, ter sua publicação viabilizada em um periódico que se pretende minimamente comprometido com estudos e análises científicas de fontes verificáveis e rigorosas.
A metodologia de artigos de revisão
Um artigo de revisão tem como premissa o levantamento de estudos cuja temática, desenho experimental, metodologias, hipóteses se aproximem, a partir de uma pergunta. A análise de artigos de revisão não se limitam a enumerar e sintetizar as ideias principais dos estudos que compõem a pesquisa.
Segundo Palmatier, Houston & Hulland (2017), um artigo de revisão podem ter diferentes propósitos e objetivos, mas em geral eles buscam:
“ – Resolve definitional ambiguities and outline the scope of the topic.
– Provide an integrated, synthesized overview of the current state of knowledge.
– Identify inconsistencies in prior results and potential explanations (e.g., moderators, mediators, measures, approaches).
– Evaluate existing methodological approaches and unique insights.
– Develop conceptual frameworks to reconcile and extend past research.
– Describe research insights, existing gaps, and future research directions.”
[tradução: – Resolver ambigüidades de definição e delinear o escopo do tópico.
– Fornecer uma visão geral, integrada e sintetizada, do estado atual do conhecimento.
– Identificar inconsistências em resultados anteriores e explicações potenciais (por exemplo, moderadores, mediadores, medidas, abordagens).
– Avaliar abordagens metodológicas existentes e percepções únicas.
– Desenvolver estruturas conceituais para reconciliar e estender pesquisas anteriores.
– Descrever percepções de pesquisa, lacunas existentes e direções de pesquisa futuras. ]
E o que isto quer dizer?
Mais do que apenas uma organização de estudos passados, o artigo de revisão tem um propósito de apresentar análises, sistematizar ideias, buscar inconsistências e articular teorias, práticas e debates de relevância acadêmica.
No caso do presente artigo, questionamos o uso da metodologia e do levantamento de estudos de análise – que não apresentam justificativas aparentes. Inicialmente, os artigos são levantados no repositório da Pubmed, desde 2008, com as palavras chave (stromectol OR Ivermectin OR “dihydroavermectin”) OR (22 AND 23-dihydroavermectin B) AND (antiviral OR virus OR COVID-19 OR SARS-CoV-2).
A justificativa para analisar Ivermectina, stromectol ou dihydroavermectin desde o ano de 2008 – ainda que vinculado a estudos antivirais – não tem embasamento aparente dentro da pergunta ou do escopo do artigo, tampouco há algo que indique as razões desta escolha de datas, na descrição metodológica ou objetivo do artigo.
Apontar as ações antivirais ou anti inflamatórias da ivermectina poderia fazer sentido em um trabalho de proposição de reposicionamento de fármaco – tal como foi executado e é estratégia em crises sanitárias como as que estamos vivenciando. Todavia, apontar como justificável para o uso contra SARS-CoV-2 por esta ação, em um estudo de revisão, pelo comportamento infeccioso do vírus como possível causa e efeito plausível não faz sentido algum em termos de metodologia de artigo revisão que busca sistematizar a ação entre o fármaco e o vírus a partir de estudos realizados com esta finalidade.
Entre o título e a conclusão
O artigo se propõe a debater – desde o título apresentado – The mechanisms of action of Ivermectin against SARS-CoV-2. Tal discussão seria feita a partir de An evidence-based clinical review article.
Espera-se encontrar estudos de evidência baseada em clínica em que se estudou os mecanismos de ação da ivermectina contra o SARS-CoV-2. O que encontramos foram apresentações de resultados sobre a ação da Ivermectina OU artigos de comportamento do SARS-CoV-2 ao infectar o nosso corpo.
Não há nenhuma evidência nos artigos selecionados que aponte este caminho. Além disso, os resultados não apresentam análises sistematizadas (ou mesmo articuladas) em relação ao título ou ao objetivo do trabalho. A metodologia não apresenta uma justificativa plausível para a escolha do banco de dados, do intervalo de datas e não indica como a análise ocorrerá. Por fim, como conclusão, os autores apontam que:
“Considering the urgency of the ongoing COVID-19 pandemic, simultaneous detection of various new mutant strains and future potential re-emergence of novel coronaviruses, repurposing of approved drugs such as Ivermectin could be worthy of attention.”
[tradução: “Considerando a urgência da pandemia de COVID-19 em andamento, a detecção simultânea de várias novas cepas mutantes e a potencial reemergência futura de novos coronavírus, o reaproveitamento de medicamentos aprovados, como a ivermectina, pode ser digno de atenção.”]
Em crises sanitárias como as que estamos vivendo, o reposicionamento de fármacos é uma prática comum e emergencial. Esta prática científica visa sanar ou minimizar o problema, economizando recursos, tempo e, potencialmente, vidas. Prestar a atenção em fármacos promissores é o comportamento usual da ciência em momentos assim. Isto não é uma conclusão, é uma premissa de estudos e indicação de fármacos candidatos à reposicionamento.
Esta conclusão não indica nada em termos científicos. Bem como, não se relaciona com os resultados, não sistematiza e aponta caminhos vinculados ao título do trabalho ou a seu objetivo. Não responde a absolutamente nada.
Por fim, nosso posicionamento
Como cientistas e comunicadores de ciência brasileiros, temos enfrentado a crise da COVID-19 com particular dificuldade. Tendo em vista os posicionamentos negacionistas do governo. Temos visto que, dentre outras questões, há apoio para o uso do chamado “tratamento precoce” como proposta milagrosa para a cura da doença. Isto segue acontecendo sem qualquer base científica sólida ou qualquer respaldo técnico.
Nos depararmos com este artigo, que apresenta uma metodologia frágil. Sua proposta não faz sentido sentido e não possui um debate cientificamente robusto. Ou seja, depois de um ano das propostas iniciais de reposicionamento da ivermectina, sem que se tenha chegado a conclusões efetivas de sua eficácia na cura da COVID-19, este artigo foi um duro golpe nesta trágica situação que dá sustento às desinformações.
Destaques e apontamentos
Destacamos, de modo específico, a citação do estudo de meta análise Ivermectin for COVID-19: real-time meta analysis of 52 studies [Internet]. Este estudo não possui autoria, nem vínculo institucional. Além disso, está depositado em um site anônimo, sem qualquer informação adicional sobre a pesquisa, sem revisão de pares. Esta suposta meta-análise tem sido fonte de desinformação em nosso país, legitimando a continuidade de tratamentos ineficazes, com prejuízos sérios à saúde de brasileiros.
Este site está ligado a uma conta de twitter que foi excluída pela própria plataforma por propagar desinformação. Incluímos aqui o questionamento pois o único respaldo de veracidade de suas informações é a indicação de censura da rede social com o perfil do nosso Ministério de Saúde brasileiro, que também teve tweets excluídos ou que receberam notificação de informações falsas.
O Artigo de revisão publicado no Journal of Antibiotics cita esta pesquisa, que já foi indicada como desinformação, apontando que
“The consistency of positive results across a wide variety of cases has been remarkable. It is extremely unlikely that the observed results could have occurred by chance”,
[tradução] “A consistência dos resultados positivos em uma ampla variedade de casos tem sido notável. É extremamente improvável que os resultados observados possam ter ocorrido por acaso ”,
O artigo de revisão, portanto, endossa a meta-análise que não tem qualquer fonte confiável e verificável de seus dados, metodologias e autores (para debates acerca das informações que ali estão)
Sobre a revisão proposta
É importante ressaltar que, dos 67 trabalhos citados no artigo, apenas 15 avaliam a ivermectina no contexto da COVID-19. Desses 15, cinco não foram publicados em revistas científicas, portanto, não passaram por revisão por pares. Dos 10 artigos restantes, sete não apoiam o uso da ivermectina no tratamento da COVID-19. Alguns destes ainda frisam a importância da realização de Ensaios Clínicos Randomizados para avaliar se esse medicamento de fato é eficaz na COVID-19.
Por último, das 67 referências, apenas três trabalhos que apoiam o uso da ivermectina na COVID-19 foram publicados em revistas científicas com fator de impacto: Referência (24), publicado em março de 2021 (Fator de Impacto = 0.9); Referência (28), publicado no início da pandemia, em maio de 2020; e Referência (32), trabalho do ganhador do Nobel pela descoberta da ivermectina, Satoshi Omura, publicado em revista japonesa (Fator de Impacto = 4).
Por fim
Nos estarrece, como cientistas, que transcorridos 15 meses do início oficial da Pandemia causada pela COVID-19, tenhamos que alertar uma revista deste grupo sobre a responsabilidade dos estudos publicados e a necessidade de uma revisão atenta, séria e científica de artigos científicos acerca da doença e de possíveis indicações de tratamentos. Nos estarrece, pois estes aparentes deslizes custam vidas em meio a uma crise instalada – que em nosso país é mais severa ainda pela propagação de desinformação, mas ainda é uma crise sanitária grave mesmo em países em que a vacinação está mais adiantada.
Sabemos, outrossim, da imensa importância de estudos de revisão sérios, bem sistematizados e estruturados. Também compreendemos a necessidade de termos esperança em medicamentos que venham a nos curar desta doença – mesmo com o avanço da vacinação amenizando o cotidiano que temos vivenciado no último ano inteiro.
No entanto, nada justifica análises apressadas e descuidadas em periódicos científicos, que possam causar mais danos sociais do que ganhos ao debate com acurácia e verificabilidade. É necessário um posicionamento mais rigoroso, e ético, frente ao conhecimento científico e seu impacto na vida humana, todos os dias.
Desta feita, solicitamos urgente retratação e retirada deste artigo do banco de dados da revista.
Nossos respeitosos cumprimentos,
___
Assinam a carta:
Ana de Medeiros Arnt
Professora do Instituto de Biologia da Unicamp
Tatyana Almeida Tavella
Pesquisadora do Instituto de Biologia da Unicamp
Mellanie Fontes-Dutra
Pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Divulgadora Científica na Rede Análise COVID-19
Para saber mais
Palmatier, R.W., Houston, M.B. & Hulland, J. Review articles: purpose, process, and structure. J. of the Acad. Mark. Sci.46, 1–5 (2018). https://doi.org/10.1007/s11747-017-0563-4
Não existe tratamento precoce para Covid-19 [capítulo de hoje: ivermectina]
Por que não podemos nos precipitar com o reposicionamento de fármacos?
1 Ano sem encontrar o tratamento de COVID-19
WHO (2021) Therapeutics and COVID-19: living guideline: ivermectine
As autoras
Ana de Medeiros Arnt: Bióloga, Mestre e Doutora em Educação, Coordenadora do Blogs de Ciência da Unicamp e coordenadora do Especial COVID-19
Tatyana de Almeida Tavela, Farmacêutica, doutora em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, Pesquisadora do Instituto de Biologia da Unicamp
Mellanie Fontes-Dutra, Biomédica, Doutora em Neurociências, Pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Endossam e concordam com o teor do pedido:
Editorial do COVID-19 do Blogs de Ciência da Unicamp
Este texto é original e foi produzido com exclusividade para o Especial COVID-19
4 comentários
Fausto Costa · 21/06/2021 às 22:30
quem combate e nega a verdade dos fatos não passa de um doente, um refém mental de doutrinas insanas... aí está o real negacionismo... agora a Nsture não é mais ciência... hipócritas
Ana Arnt · 21/06/2021 às 23:55
Oi Fausto,
Obrigada pelo teu comentário e leitura atenta do texto. O artigo em questão é do Grupo Nature, mas não é o periódico Nature. Existe diferença em muitos aspectos. Todavia, nem as grandes revistas passam incólumes de críticas e revisões. E é exatamente por isto que a ciência é confiável: nós podemos e devemos olhar sempre com olhar crítico e nos atentar aos detalhes dos trabalhos científicos. Neste caso, o artigo de revisão não cumpre critérios muito importantes para o rigor científico necessário para uma análise como a proposta pelos autores.
Todos os artigos indicados pelo nosso veículo de comunicação são analisados não pela veracidade incontestável da publicação, mas a partir de critérios de rigor científico apresentados no próprio artigo e pela comunidade científica. Este artigo não foi criticado apenas por nós e há vários cientistas solicitando retratação ao redor do mundo. Este é um procedimento comum, não é a primeira (nem será a última) vez que um artigo aprovado em uma revista assim terá pedido de retratação posteriormente à sua publicação.
Erros acontecem, são revistos e retratados. E é por estes motivos que a ciência é confiável: ela não funciona por dogma e não é inquestionável. Ela está aí para se colocar à prova e pronta para o debate.
Espero que leias mais de nossos materiais e volte a comentar mais vezes 🙂
Abraços respeitosos
Ana Arnt
Mauricio · 24/06/2021 às 14:08
Agradeço pelo post, recebi no grupo da família uma fake news dizendo que estava 100% comprovado a eficacia da ivm para covid-19 citando o artigo publicado na nature.
O post contém as mesmas fake news de sempre, dizendo que se foi publicado pela nature, então é 100% confiável, os resultados são infáliveis, etc.
Tentei explicar com as infos citadas neste post no grupo de parentes mas para eles, eu sou "negacionista" e estou contra a Nature (o maior e mais confíavel órgão com o maior prestígio na área de ciencia, segundo eles) (imagino que se for retratado, vai passar a ser um órgão negacionista).
Enfim, agradeço pelo ótimo post e as vezes não sei como lidar com essas coisas que estão acontecendo frequentemente nos grupos de parentes.
Abraços!
Ana Arnt · 24/06/2021 às 15:48
Mauricio,
nós também não sabemos (risos). Mas seguimos tentando!
Abraço e força por aí.