Há algum tempo atrás, vimos em um texto aqui no blog como o SARS-CoV-2, causador da Covid-19, é capaz de entrar em nossas células e causar sua infecção. Contudo um número cada vez maior de artigos têm sido apresentados à comunidade científica mostrando que a infecção causada por tal vírus não se restringe somente ao trato respiratório e sim a muitos outros órgãos. O SARS-CoV-2 já foi encontrado no cérebro, no fígado, rim, intestino e dessa forma surgem perguntas: quais são os efeitos do vírus nesses órgãos? Vem com a gente para entender melhor isso!

Problemas Cardiovasculares

Tudo começou com pacientes que relataram palpitações no coração e sensação de aperto no tórax. Mais tarde estes pacientes foram diagnosticados com Covid-19, de acordo com a Comissão Nacional de Saúde da China (NHC), um órgão responsável em formular políticas de saúde na China. De acordo com eles, 11.8% das pessoas que morreram de Covid-19 tinham algum dano no coração, apesar de não ter doenças cardíacas prévias1. Consequentemente, cientistas e médicas começaram a observar melhor problemas cardiovasculares relacionados ao Covid-19 2,3, como:

  • dano no miocárdio (o músculo responsável pela contração do coração), 
  • a inflamação deste mesmo músculo, 
  • arritmia (um descompasso no ritmo de batidas do coração, em geral mais lento no caso da Covid-19), 
  • insuficiência cardíaca,
  • choque cardiogênico (uma falha na irrigação de sangue no próprio coração, com consequente falha deste para continuar bombeando o sangue).

Assim, para todos esses problemas, imagina-se (e a cada dia novas pesquisas tem sido feitas para se comprovar ou não) que a origem de todos esses problemas sejam duas. A primeira delas seria a própria infecção das células cardíacas pelo SARS-CoV-2, vide que tais células expressam o receptor ACE2.

As tais Tempestades de Citocinas

A outra origem pode ser um fenômeno conhecido como Tempestade de Citocinas. As citocinas são moléculas que servem de comunicação para as células, principalmente para as células do sistema imune. Dessa forma, quando um macrófago ou um linfócito reconhece um agente invasor no corpo, essa célula libera essas moléculas e acaba levando a uma inflamação no lugar, chamando mais células imunes para combater esse patógeno. O grande problema de toda essa questão ocorre quando o corpo reconhece que o invasor é muito perigoso e não tem meios de derrotá-lo facilmente. Nesse caso, as células imunes lançam mão de sua estratégia final: a liberação de grandes quantidades de citocinas que se espalham por todo o corpo, o que acaba gerando dano em outros órgãos (mesmo aqueles que não estão infectados). 

    No caso da Covid-19 podemos entender facilmente porque então a tempestade de citocinas não é uma boa coisa: para ela acontecer a pessoa já precisa estar comprometida, muitas vezes com a forma grave da doença, seus pulmões não estão bem. Assim, por causa da tempestade de citocinas, outros órgãos como o rim, fígado e principalmente o coração também começam a sofrer dano, fazendo com que muitas  vezes isso leve o paciente ao óbito.

Problemas Renais

Depois do coração, começou-se a olhar para outros órgãos, dentre eles o rim. Assim, muitos médicos notaram que a Covid-19 tinha um certo envolvimento com o rim em casos mais severos. Alguns pacientes chegavam ao hospital com uma alta quantidade de proteínas na urina (a chamada proteinúria), o que é um sinal de que provavelmente havia algum problema nos rins.

Além disso, pesquisadores e médicos viram que alguns pacientes – em geral aqueles que tinham a forma severa da doença – também desenvolveram lesão renal aguda (AKI), que é uma redução na capacidade de filtragem dos rins, que também acarreta em vários problemas 4. Uma pesquisa em específico, notou uma correlação entre doenças renais e um aumento no número de mortes de pacientes que precisavam de hospitalização 5. Enquanto isso, outras pesquisas já demonstraram que o SARS-CoV-2 possivelmente é mesmo capaz de infectar células renais 6,7 e isso pode ser uma das causas que levam ao dano, com um outro possível mecanismo sendo a Tempestade de Citocinas já citada acima 4.

Problemas Hepáticos

Todavia, como tudo tem sido complicado com o SARs-CoV-2, os problemas não pararam por aí. Assim, como o fígado também é um órgão que expressa o ACE2 na membrana de suas células, ele não também não ficaria de fora na Covid-19 8. O dano no fígado associado a Covid-19 é considerado como qualquer dano hepático que ocorra durante a progressão ou o tratamento da Covid-19 em pacientes sem precedentes de doenças no fígado. Dessa forma, o principal indicativo desse dano hepático é o aumento de algumas enzimas do fígado no sangue, fato que já foi notado em alguns pacientes com Covid-19 9. Os possíveis mecanismos que podem gerar esse dano são:

  • a tempestade de citocinas,
  • a infecção pelo próprio SARS-CoV-2 nas células do fígado, apesar disso ainda não ter sido demonstrado,
  • o baixo teor de oxigênio no sangue, e consequentemente no fígado e outros órgãos,
  • uso combinado de medicamentos que tem ação hepatotóxica, isso é, que em altas concentração acabam gerando dano ao fígado,
  • reativação de doenças hepáticas em pacientes que já as possuíam previamente, como em pacientes com hepatite B 10.

Contudo, esse dano hepático foi muito mais frequente em pacientes severos de Covid-19, do que naqueles que tinham sintomas leves.

Problemas Intestinais

Quanto ao intestino, já se sabe que ele é um órgão que mais expressa o ACE2, e portanto logo se pensou que se o SARS-CoV-2 pudesse infectar outros órgãos, este seria um deles. Assim, o fato de que pacientes com Covid-19 também relatavam dor abdominal e diarréia só fortaleceu essa ideia. Tempos depois, várias pesquisas foram publicadas confirmando isso11,12.

Ademais, também detectou-se o vírus nas fezes de vários pacientes, até mesmo após o vírus não ser mais detectado no trato respiratório, sugerindo que ele não só era capaz de infectar as células do intestino como também de liberar novas partículas virais, abrindo caminho para uma possível contaminação fecal-oral (aquela em que patógenos nas fezes acabam contaminando água ou alimentos, que são ingeridos posteriormente e infectam novas pessoas). Contudo, estudos in vitro já demonstraram que essas partículas virais são inativadas no trato gastrointestinal 12. Mesmo assim, mais pesquisas ainda são necessárias para se entender se in vivo esses vírus também são inativados ou se a contaminação fecal-oral é realmente possível. 

Concluindo

Por fim, como podemos ver, uma vez que o SARS-CoV-2 infecte as células dos pulmões – principalmente em casos mais graves – ele é capaz de desencadeando a tempestade de citocinas e, além disso, se espalhar pelo corpo inteiro, infectando novos órgãos. Em suma, esse processo já está sendo chamado de sepse viral14, e cogita-se que ele seja o principal fator relacionado à severidade da Covid-19. Apesar disso, mais pesquisas são necessárias para se entender essa questão.

Para Saber Mais

  1.  Zheng, YY, Ma, YT, Zhang, JY, & Xie, X (2020) COVID-19 and the cardiovascular system Nature Reviews Cardiology, 17(5), 259-260. 
  1. Dhakal, BP, Sweitzer, NK, Indik, JH, Acharya, D, & William, P (2020) SARS-CoV-2 Infection and Cardiovascular Disease: COVID-19 Heart Heart, Lung and Circulation.
  1. Driggin, E, Madhavan, … & Brodie, D (2020) Cardiovascular considerations for patients, health care workers, and health systems during the COVID-19 pandemic Journal of the American College of Cardiology, 75(18), 2352-2371. 
  1. Ronco, C., Reis, T., & Husain-Syed, F. (2020). Management of acute kidney injury in patients with COVID-19. The Lancet Respiratory Medicine
  1. Cheng, Y, … & Xu, G (2020) Kidney disease is associated with in-hospital death of patients with COVID-19 Kidney international
  1. Varga, Z, Flammer, … & Moch, H (2020) Endothelial cell infection and endotheliitis in COVID-19 The Lancet, 395(10234), 1417-1418. 
  1. Su, H, Yang, M, … & Zhang, C (2020) Renal histopathological analysis of 26 postmortem findings of patients with COVID-19 in China Kidney international

8. The Human Protein Atlas

  1. Sun, J, Aghemo, A, Forner, A, & Valenti, L (2020) COVID‐19 and liver disease Liver International.
  1.  Zhang, C, Shi, L., & Wang, FS (2020) Liver injury in COVID-19: management and challenges The lancet Gastroenterology & hepatology, 5(5), 428-430. 
  1. Xiao, F, Tang, M, Zheng, X, Liu, Y, Li, X, & Shan, H (2020) Evidence for gastrointestinal infection of SARS-CoV-2 Gastroenterology, 158(6), 1831-1833. 
  1. Zang, R, Castro, … & Diamond, MS (2020) TMPRSS2 and TMPRSS4 promote SARS-CoV-2 infection of human small intestinal enterocytes Science immunology, 5(47). 
  1. Lee, IC, Huo, TI, & Huang, YH (2020) Gastrointestinal and liver manifestations in patients with COVID-19 Journal of the Chinese Medical Association
  1. Li, H, Liu, L, Zhang, D, Xu, J, Dai, H, Tang, N, … & Cao, B (2020) SARS-CoV-2 and viral sepsis: observations and hypotheses The Lancet

Outras Leituras:

Coronavírus: muito além dos pulmões

Verdecchia, P, Cavallini, C, Spanevello, A, & Angeli, F (2020) The pivotal link between ACE2 deficiency and SARS-CoV-2 infection European Journal of Internal Medicine

Parte 1 deste texto

Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e que são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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