Era uma época sombria. Os mortos se acumulavam. O vírus caminhava pelas ruas sem controle, como uma besta desvairada, batendo de porta em porta e entrando naquelas que se abriam à ele. Infestava tudo e todos que encontrava em seu caminho: desde combatentes da pandemia a desavisados, perdidos e negacionistas.

E então ela chegou, aquela que realmente poderia afastar as escuras nuvens que tomavam nosso mundo, permitindo que o sol brilhasse novamente nesse pálido ponto azul que chamamos de Terra: a Vacina.

Começou com os idosos. Pais, avós, tios, conhecidos. Reclusos, com medo e trancados desde o início da pandemia. 

Com o tempo, aqueles de meia idade, muitas vezes chamados efetivamente de “adultos”, foram sendo vacinados. 50, 40, 30 anos… a cada semana, pessoas mais novas eram chamadas.

Então, chegou nosso momento, os “jovens”. Após ver avós e pais vacinados, finalmente seria a nossa hora. A tão sonhada proteção estava chegando, e logo poderíamos – quem sabe – rever os amigos, dessa vez sem o intermédio de uma tela.

E agora?

Com a situação um pouco mais calma, mas não completamente resolvida (e podendo facilmente voltar ao caos passado), a vacinação da próxima geração, as nossas crianças, se aproxima a passos módicos. Entretanto, assim como um vulto que persiste em ficar na extremidade de nossa visão, as sombras do movimento antivacina se lançam sobre os indivíduos, espalhando o medo e mentiras sobre a vacinação dos menores.

Pensando nisso, viemos aqui para explicar as novas notícias sobre a vacinação das crianças e responder suas dúvidas, cara leitora e leitor, para que possa entender melhor sobre isso e proteja suas filhas e filhos.

O que se sabe sobre a COVID-19 em crianças?

O vírus causador da COVID-19, o SARS-CoV-2, tem muitas similaridades com o vírus causador da SARS em 2003, o SARS-CoV-1. Entretanto, os casos infantis entre as duas doenças têm algumas diferenças. Na SARS, os casos entre crianças eram bem raros e tinham um histórico de exposição muito claro. Isto é, sabia-se como, onde e quando a criança havia pego o vírus. Já com a COVID-19, esse rastreio de casos foi e é bem mais complicado [1]. 

A princípio, como muitas crianças desenvolviam a forma leve ou assintomática, os casos entre elas eram ignorados. Assim, dizia-se que não haveria qualquer problema em elas pegarem o SARS-CoV-2. Com o passar das semanas e o aumento gigantesco do número de infecções, começou-se a ver que esses casos assintomáticos (tantos infantis quanto adultos) eram fonte de uma parte significativa do espalhamento do vírus. 

Mas há muito mais informações hoje…

Atualmente, até onde se sabe, a COVID-19 afeta todas as idades de crianças e adolescentes, desde recém-nascidos até maiores de 18 anos. Os principais sintomas que elas apresentam são febre e tosse. No entanto, outros sintomas inespecíficos podem aparecer, como dor de cabeça e de garganta, cansaço, nariz tampado e escorrendo, vômito e diarréia [2, 3]. Em geral as crianças desenvolvem a forma assintomática, leve ou moderada da COVID-19. Todavia, alguns estudos sugerem que recém-nascidos (e crianças com menos de 1 ano de idade) possuem 3x mais chances de ter sintomas gastrointestinais e desenvolver a forma severa da COVID-19 [3]. Assim, pensando nisso, é de suma importância levar em consideração ainda a proteção dos pequenos, seja mantendo-os em isolamento social ou levando-os para se vacinar, quando as campanhas de vacinação para essas faixas de idade começarem.

ainda sobre controvérsias

Infelizmente, nos dias atuais, o mesmo discurso do começo da pandemia (sobre não haver risco para as crianças) ainda é utilizado para advogar a volta às aulas, mesmo já sabendo de tudo isso. Mas, é claro que, por um lado, compreendemos ser muito difícil todo o processo de ensino a distância, as dificuldades e problemáticas criadas com ele, fora a questão que muitas crianças de famílias necessitadas dependiam de serviços escolares para necessidades de saúde mental, física e nutricional. 

Entretanto, é necessário lembrar que apesar da maior parte das crianças desenvolverem casos leves de COVID-19, elas ainda podem desenvolver casos severos e vir a falecer, principalmente aquelas que possuem alguma comorbidade, são imunocomprometidas ou fazem uso de imunossupressores. Além disso, alguns estudos vêm sugerindo que, assim como em adultos, após uma infecção de COVID-19 em crianças, pode haver a persistência de sintomas como cansaço, dor muscular, insônia, problemas respiratórios e de concentração, durante vários meses pós-infecção [4, 5].

Mas algum país já está vacinando menores de 12 anos?

Sim! Alguns países já começaram a vacinar as suas crianças 

  • Cuba: a partir de 2 anos com a Soberana 2 e Soberana Plus [6],
  • Chile: 6 anos ou mais com CoronaVac [7],
  • China: a partir de 3 anos com CoronaVac [8],
  • Estados Unidos: a partir dos 6 anos com a Pfizer [9].

A grande questão aqui é que os Estados Unidos foi o primeiro país a ter uma vacina (Pfizer) aprovada para uso emergencial em crianças por uma agência reguladora e a publicar os dados das fases de teste em revistas científicas, para avaliação do resto da comunidade científica [10]. Enquanto isso, tanto os dados da Soberana 2 (em Cuba) e da Coronavac (no Chile e na China) permanecem em sigilo. Ou seja, sem comunicação oficial para a OMS e revistas científicas para revisão por pares. 

Assim, por esses e outros motivos que vamos apresentar agora as principais informações referentes às vacinas contra COVID-19 que estão sendo testadas e aprovadas para uso em crianças:

Vacina Pfizer [10-13]:

  • Pode ser aplicada em crianças de 5 a 11. A Pfizer e Biontech anunciaram que até o final de 2021 iriam publicar os dados referente ao uso da vacina em crianças entre 6 meses e 5 anos.
  • A dose utilizada em crianças de 5 a 11 é ⅓ da dose original utilizada em adultos e jovens maiores de 12 anos. 
    • Serão aplicadas duas doses, com um intervalo de 3 semanas entre elas.
  • A quantidade de anticorpos neutralizantes (falamos sobre este conceito nesse e nesse texto) observadas nas crianças após um mês da segunda dose, foi bem parecida com a quantidade vista em jovens e adultos.
    • Isso quer dizer que mesmo com a dose sendo menor, as crianças acabam tendo uma proteção boa.
  • Não foram vistos grandes efeitos colaterais. Os poucos efeitos observados assemelham-se com os efeitos que aparecem em jovens adultos.
  • A eficácia da vacina ficou por volta dos 90%, bem parecido com a eficácia em adultos.
  • A Pfizer já obteve, em nosso país, a aprovação da ANVISA para uso da sua vacina para crianças entre 5 e 11 anos.

Vacina Moderna [14-17]:

  • Ainda não há aprovação pelo FDA, mas a Moderna já divulgou alguns dados de fase ⅔ da sua vacina infantil, anunciando que logo deve enviar para análise da agência reguladora.
  • Vacina testada em crianças entre 6 e 12 anos (assim como da Pfizer). Demonstrou uma boa capacidade na geração de anticorpos neutralizantes.
  • Diferente da Pfizer, nesse caso serão duas doses com um intervalo de 4 semanas.
  • Os poucos efeitos colaterais relatados foram bem leves, como dor local, dor de cabeça e cansaço.
  • Em algumas análises preliminares, alguns pesquisadores notaram uma diferença na taxa de desenvolvimento de inflamação no coração (miocardite) em adolescentes (12-17) que receberam a vacina. Isso levou a um atraso na análise da vacina para crianças, pois quiserem verificar se também haveria essa diferença para os pequenos.
    • Ainda não se estabeleceram relações entre a miocardite como uma reação adversa e as vacinas. Para mais informações, você pode conferir aqui, aqui e aqui.

Vacina CoronaVac [18-21]:

  • A China, Chile e Emirados Árabes já estão vacinando suas crianças e jovens entre 3 e 17 com a CoronaVac.
  • Em junho, a China aprovou o uso da CoronaVac em crianças e adolescentes, contudo, a vacinação em si só começou em meados de outubro. 
  • Apesar de já estar sendo aplicada em alguns países, até o momento só temos os dados de fase 1 e 2 (caso não lembre o que são as fases de desenvolvimento das vacinas, confira esse texto aqui) da CoronaVac nessa faixa de idade (3-17 anos). 
  • Em agosto, o Instituto Butantan fez o pedido para a ANVISA para aprovação do uso emergencial da CoronaVac em crianças, contudo, a ANVISA negou tal pedido, requisitando mais informações.
  • Até o momento, o uso emergencial para essas faixas etárias ainda não foi concedido para a CoronaVac.

Deveríamos vacinar as crianças e só então voltar às aulas presenciais?

Na última semana do mês de junho, 250 mil crianças tinham sido diagnosticadas – a constar, somente naquela semana – com a COVID-19 na Inglaterra. Inclusive, este foi o pior momento da pandemia no quesito escolar desde a reabertura do país em março de 2021. Em Israel, país modelo da vacinação na população adulta, o número de crianças em período escolar que testaram positivo para COVID-19, triplicou na mesma semana. Devido a somente 4% da população menor de 15 anos estar vacinada. Em suma, na época, ambos os países estavam com a vacinação bem avançada, mas ainda não o suficiente para voltar às aulas [22].

Assim, isso nos mostra que, se não tomarmos cuidado, aqui no Brasil a mesma coisa pode acontecer. Inclusive, um aviso, já está acontecendo: cada vez mais vamos ver menores de 18 anos e crianças testando positivo para COVID-19. Aliás, vemos quando são feitos os testes, enchendo os hospitais e, inclusive, falecendo.

Ainda é cedo para bater o martelo, mas…

Sabemos que este é um terreno difícil de discussão e que as crianças perderam muito com os distanciamentos e pouca socialização nestes dois anos. Portanto, o debate é realmente delicado. A princípio, a nossa indicação e o que consideraríamos ideal era esperarmos um pouco mais, tanto para a volta às aulas quanto para a retomada da sociedade ao “antigo normal”. Assim, a chegada da Pfizer no Brasil é um sinal de que a etapa de vacinação infantil está mais próxima, tornando a vida social um pouco mais segura.

Todavia, também sabemos que com a variante Ômicron tomando lugar rapidamente do cenário atual, somado ao apagão de dados e falta de testes, fica muito difícil não apenas analisar os melhores caminhos como também indicar um lugar seguro para tomada de decisões tão importantes, como as que precisamos no momento.

Para saber mais:

  1. Zhou, MY, Xie, XL, Peng, YG, Wu, MJ, Deng, X. Z, Wu, Y, … & Shang, LH (2020) From SARS to COVID-19: What we have learned about children infected with COVID-19, International Journal of Infectious Diseases, 96, 710-714 
  2. She, J, Liu, L, & Liu, W (2020) COVID‐19 epidemic: disease characteristics in children, Journal of medical virology, 92(7), 747-754. 
  3. Cui, X, Zhao, Z, Zhang, T, Guo, W, Guo, W, Zheng, J, … & Cai, C (2021) A systematic review and meta‐analysis of children with coronavirus disease 2019 (COVID‐19), Journal of Medical Virology, 93(2), 1057-1069.
  4. Ludvigsson, JF (2021) Case report and systematic review suggest that children may experience similar long‐term effects to adults after clinical COVID‐19, Acta Paediatrica, 110(3), 914-921.
  5. Buonsenso, D, Munblit, D, De Rose, C, Sinatti, D, Ricchiuto, A, Carfi, A, & Valentini, P (2021) Preliminary evidence on long COVID in children, MedRxiv. 
  6. Oppmann, P (2021) Cuba vaccinates children as young as 2 in strategy to reopen schools, economy, CNN
  7. Mohor W, D (2021) Chile overcame the Delta variant. Now it’s racing to vaccinate kids, CNN,
  8. Wu, H (2021) China to start vaccinating children to age 3 as cases spread ABC News
  9. G1 (2021) CDC passa a recomendar vacina da Pfizer contra a Covid-19 para crianças de 5 a 11 anos nos EUA
  10. FDA (2021) FDA Authorizes Pfizer-BioNTech COVID-19 Vaccine for Emergency Use in Children 5 through 11 Years of Age
.
  1. Pfizer (2021) Pfizer and Biontech announce positive topline results from pivotal trial of COVID-19 vaccine in children 5 to 11 years.
  2. Walter, EB, Talaat, KR, Sabharwal, C, Gurtman, A, Lockhart, S, Paulsen, GC, … & Gruber, WC (2021) Evaluation of the BNT162b2 covid-19 vaccine in children 5 to 11 years of age, New England Journal of Medicine
  3. Martins, A (2021) Pfizer pede autorização à Anvisa para vacinar crianças de 5 a 11 anos, Exame
  4. Moderna (2021) Moderna Announces Positive Top Line Data from Phase 2/3 Study of COVID-19 Vaccine in Children 6 to 11 Years of Age.
  5. Moderna (2021) Moderna Provides Update on Timing of U.S. Emergency Use Authorization of its COVID-19 Vaccine for Adolescents.
  6. Hernandez, J (2021) The FDA is probing whether the Moderna vaccine can cause a rare side effect in teens, NPR.
  7. Witberg, G, Barda, N, Hoss, S, Richter, I, Wiessman, M, Aviv, Y, … & Kornowski, R (2021) Myocarditis after Covid-19 vaccination in a large health care organization, New England Journal of Medicine
  8. G1 (2021) China aprova uso da CoronaVac para crianças a partir de 3 anos, diz Sinovac.
  9. Han, B, Song, Y, Li, C, Yang, W, Ma, Q, Jiang, Z, … & Gao, Q (2021) Safety, tolerability, and immunogenicity of an inactivated SARS-CoV-2 vaccine (CoronaVac) in healthy children and adolescents: a double-blind, randomised, controlled, phase 1/2 clinical trial, The Lancet Infectious Diseases
  10. Mattos, L. (2021). Butantan entra com novo pedido para aprovar uso da Coronavac a partir dos 3 anos, Folha de São Paulo 
  11. Giving Compass. (2021). The Impact Of The Delta COVID Variant On Unvaccinated Youth.

Outros materiais:

Este texto compõe uma série para a campanha Vou Vacinar, do Todos Pelas Vacinas, Maurílio é autor no Especial COVID-19. 

Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19.

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Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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