9 meses de pesquisas e testes, 4 meses para o início da vacinação no país, 5 meses vacinando os mais velhos. Um total (até o momento) de 18 meses de pandemia e, para muitos, 18 meses em casa: home office, chamadas de vídeo, pedidos de delivery. E agora, com os nossos pais, tios e avós protegidos, é a nossa vez: temos vacinas!
Uma promessa. Uma esperança. Um sonho. Um desejo de voltar à “normalidade”.
Com o pensamento de “Enfim, tomei a primeira dose!”, outras ideias surgem:
– Vou poder rever meus avós, parentes e amigos.
– E agora, vou poder ir àquele bar com meus colegas.
– E sobre as aulas, eu deveria voltar às aulas presenciais.
Mas então, uma pergunta ainda ressoa no fundo da nossa mente:
“Vou poder… mas devo?”
Com o anúncio da vacinação da população mais jovem (abaixo dos 25-30 anos), muitas pessoas começaram a pensar que a pandemia estava chegando ao seu fim. Que magicamente, a partir de um dia, as pessoas poderiam sair de suas casas livremente, sem precisar usar máscara, sem precisar manter a distância uma das outras, sem precisar se preocupar mais com o vírus da Covid-19. Muitas pessoas pensaram que um simples anúncio ou decreto faria a pandemia acabar.
Mas uma pandemia não funciona e nem termina, assim. A fala, a promessa e o decreto de um político não faz com que o vírus deixe de ser transmitido entre as pessoas. São as políticas de saúde pública somadas às ações individuais (que estão ao alcance de cada um de nós) que têm esse poder.
Com o anúncio da vacinação, o que se viu foi um grande número de pessoas mais jovens indo receber sua primeira dose. Para fins de comparação, aqui no estado de São Paulo, o início das vacinações para 25 anos ou mais foi em 6 de agosto e para maiores de 18 anos foi em 16 de agosto. Hoje (4 de setembro), temos cerca de 80% da população nessa faixa de idade (18-30) com a primeira dose, mas somente 30% (25-29 anos) e 11% (20-24) com a segunda.
É claro, podemos argumentar que grande parte dessas pessoas está entre o período da primeira e segunda dose. E que quando chegar a data para a segunda dose, todos esses 80% que receberam a primeira irão até o posto mais próximo tomar a segunda.
(Observação: os dados abaixo foram todos coletados até dia 04 de setembro, podendo ter alguma defasagem)
Mas podemos realmente argumentar e esperar tal fenômeno?
Vamos olhar para as outras faixas de idades.
Quando observamos os idosos (+60 anos), vemos que a maioria recebeu a primeira (99%) e a segunda dose (95%). E isso já era o esperado, vide que eles estavam entre os primeiros grupos a serem imunizados lá em março e, mesmo com período maior entre as duas doses (como no caso da vacina da Astrazeneca/Fiocruz), estes já teriam tido tempo de receber a segunda.
Agora, vamos olhar para o grupo entre os mais jovens e idosos, a população entre 31 e 59 anos. A primeira coisa que notamos ao ver os números de vacinados com a primeira dose é uma redução destes: aqueles entre 55-59 anos com uma porcentagem parecida com os idosos e, quanto mais diminuímos a idade, mais há uma redução dessa porcentagem, até ficar parecida com os mais jovens (por volta de 80%).
Contudo, o que mais chama a atenção é o número de pessoas com a segunda dose. Assim como aconteceu com os mais velhos, uma parte considerável desse grupo (por exemplo, aqueles entre 50-59 anos) já teriam tido tempo de receber a sua segunda dose, mas o que se vê é que menos de 50% destes voltaram para tomá-la. Esse problema seria menor se fosse visto somente para essa faixa de idade, mas vemos que é um problema generalizado:
nenhuma faixa de idade abaixo dos 60 anos, até dia 4 de setembro, chegou a ter 50% da sua população com duas doses
É importante lembrar que aqui estamos tomando como exemplo somente o estado de São Paulo, que é o estado onde a vacinação está indo mais rápido. Se olhamos o Brasil como um todo, isso se torna até mais aparente.
Algumas falas ouvidas por aí dão uma ideia do que porquê estamos vendo isso:
“Tomei a primeira dose e já estou protegido”
“Não preciso tomar a segunda dose, com a primeira já ‘tá’ tudo bem”
“Sou mais novo, só a primeira dose já vai me proteger”
E estamos falando somente dos “argumentos” que parte da população que chegou a tomar a primeira dose usa.
“E qual o problema nisso tudo”?
Não devemos falar em problema, no singular, mas sim em problemaS, que por serem tantos, tentarei resumi-los.
A começar pela variante Delta, que já chegou no Brasil e vem tomando conta do país, já sendo a variante mais prevalente aqui.
E as vacinas? E a vacinação?
Como discutido em um texto recente aqui do Especial, cada vez mais estudos vêm mostrando que, apesar da proteção causada pela vacinação completa (duas doses ou dose única da Janssen) ser um pouco menor para a variante Delta, essa proteção ainda é muito boa, sendo capaz de reduzir o número de óbitos e casos de Covid grave (aqueles que precisam de UTI). Já para casos mais leves e moderados, essa proteção é reduzida.
Contudo, essa manutenção da proteção gerada pelas vacinas foi vista somente naquelas pessoas que tinham recebido ambas as doses. Nos casos em que o indivíduo tinha sido vacinado com somente uma dose de Pfizer ou Astrazeneca, os cientistas descobriram que a proteção gerada pela vacina contra a variante Delta era muito baixa, quase inexistente. O mesmo foi visto para pessoas que tinham tido Covid-19 de forma natural, principalmente aquelas pessoas que se infectaram com a variante Gama, a nossa variante, que por alguns meses foi a mais transmitida no Brasil.
Só essas informações já nos dão um indicativo de que uma única dose não é mais o suficiente para nos proteger. E isso se reflete no processo de vacinação. Há alguns meses houve discussões de se aumentar o período entre doses da Pfizer e Astrazeneca, a fim de se vacinar o maior número de pessoas possível, pensando que quanto mais pessoas com a primeira, maior seria o número de indivíduos protegidos. Entretanto, com a variante Delta se espalhando, essa estratégia já não faz muito mais sentido. E, por isso, agora se fala em reduzir esse período entre doses para 21 dias, no caso da Pfizer, e 8 semanas, no caso da Astrazeneca, tudo com o intuito de se vacinar o maior número possível de pessoas com a segunda dose.
Mas como temos dito desde sempre: não é só com a vacinação que vamos acabar com a pandemia.
Precisamos sim que as pessoas se vacinem e voltem para tomar a segunda dose. Mas também, tão importante quanto, precisamos parar a transmissão do vírus. E é aí que vemos o segundo grande problema: o aumento da mobilidade urbana.
Em termos mais claros, as pessoas não ficam mais em casa. O distanciamento social tem diminuído. Com um número maior de indivíduos se deslocando na cidade, indo a parques, mercados, farmácias, shoppings, lojas, cinemas e mesmo trabalhando (por exemplo, de volta em escritórios), temos visto um aumento da mobilidade urbana. Olhando para os números de casos, podemos até pensar que essa reabertura da sociedade, com as pessoas voltando a se deslocar, não influenciou a pandemia. Entretanto, olhando para outros países, podemos ver qual será o nosso possível futuro, se não fizermos nada para mudar isso.
Vamos pegar como exemplo Israel, país que foi modelo no processo de vacinação e que vacinou rapidamente uma grande porcentagem da sua população (mas lembrando que não atingiram uma cobertura vacinal suficiente para proteger toda a população).
Seu processo de vacinação começou em dezembro, quando eles já estavam sofrendo com a terceira onda, decorrente de casos da variante Alfa (do Reino Unido).
Seu processo de vacinação foi rápido e, aliado a isso, o país fez um fechamento fortíssimo das cidades.
O que se observou nesse período foi uma grande redução do número de casos e mortes.
Com um alto número de pessoas vacinadas e um fechamento coordenado, logo o país começou a ensaiar uma reabertura da sociedade, com as pessoas podendo voltar a se aglomerar e não precisar mais usar máscaras.
O resultado disso começou a ser visto em julho, após a introdução da variante delta no país: um aumento do número de casos, mortes e hospitalizações, mesmo com a vacinação de 60% da sua população.
Essa situação não foi exclusiva de Israel, podendo ser vista em outros países: Reino Unido, Estados Unidos, Holanda, França, e vários outros. Em todos os casos, no início da vacinação se viu uma grande redução do número de casos e mortes por Covid e, em seguida, após suas sociedades reabrirem e as pessoas voltarem a circular de forma descontrolada (como estamos vendo no Brasil), surgiu uma quarta onda de casos, mortes e hospitalizações.
Chegando ao fim desse texto, respondo a pergunta com a qual comecei ele:
“O dia da vacinação chegou, vou poder sair agora que tomei a primeira dose… mas devo?”
Não. Não deveríamos.
Pelo menos enquanto não tivermos tomado a segunda dose.
Em termos de população, a lógica deveria ser “não, pelo menos enquanto não tivermos vacinado completamente ¾ de nossa população”.
E em termos de mundo, nossa noção deveria ser: “não estamos plenamente seguros, nem venceremos a pandemia enquanto o mundo não tiver, pelo menos, ¾ de sua população protegida com o esquema vacinal completo”.
Até lá, o que devemos fazer é continuar nos protegendo, usando máscara, distanciamento social e diminuindo a circulação de pessoas nas ruas.
Muitas vezes, o simples ato de repensar em sair de casa para ir ao bar, ou fazer compras, ou ver alguém (mesmo que essa pessoa tenha tomado a vacina) ajudará a atingirmos esse futuro – que tanto sonhamos – mais rápido.
Vacinação em jovens: chegou a nossa vez!
Referências para os dados:
- Vacinação Covid-19
- Vigilância Genômica do SARS-CoV-2 no Brasil, Fiocruz
- Our World in Data Coronavírus
- Painel de Casos e Mortes da Rede Análise COVID-19
- Painel de Mobilidade Urbana da Rede Análise COVID-19
Artigos citados sobre a Delta:
- Liu, C, Ginn, HM, Dejnirattisai, W, Supasa, P, Wang, B, Tuekprakhon, A, … & Screaton, GR (2021) Reduced neutralization of SARS-CoV-2 B. 1.617 by vaccine and convalescent serum Cell.
- Planas, D, Veyer, D, Baidaliuk, A, Staropoli, I, Guivel-Benhassine, F, Rajah, M M, … & Schwartz, O (2021) Reduced sensitivity of SARS-CoV-2 variant Delta to antibody neutralization Nature, 1-7.
- Lopez Bernal, J, Andrews, N, Gower, C, Gallagher, E, Simmons, R, Thelwall, S, … & Ramsay, M (2021) Effectiveness of Covid-19 vaccines against the B. 1.617. 2 (delta) variant New England Journal of Medicine.
Reportagens sobre o anúncio da vacinação
São Paulo começa vacinação para pessoas com 25 anos
SP antecipa vacinação de adultos e imuniza adolescentes a partir de 18 de agosto
Cidade de SP vacina contra Covid pessoas com 18 anos ou mais nesta segunda-feira
Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19
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