She sells seashells on the seashore – Mary Anning, a Colecionadora de Ossos

Olá a todos, hoje 08/03/2017, se comemora o dia internacional da mulher. Uma data criada para concientizar e proporcionar uma concientização da importância do Homo sapiens do sexo feminino (sim… mulheres e homens são da mesma espécie, ao contrário do que certos pesquisadores dizem por ai…) em nossa sociedade. Nada melhor para comemorar esse dia do que relambrarmos um pouco sobre um grande paleontologa que sofreu muito por causa de sua religião, condição financeira e sexo. Estou falando de Mary Anning! O texto abaixo, escrito pelo estimado Giovanne Mendes Cidade (e uma versão deste texto já foi publicada no finado blog do Grupo Fossilis), retrata um pouco sobre a história e contribuições dessa valorosa mulher. Espero que gostem!


Uma pessoa que nasceu numa família pobre do interior, recebeu pouca educação formal e teve que trabalhar desde criança para ajudar a sustentar a família. Este certamente não é o perfil da maioria dos paleontológos, ou mesmo dos cientistas em geral que nós conhecemos. Quando se acrescenta que a pessoa em questão era uma mulher, e que viveu na Inglaterra do século XIX, tudo parece ainda mais estranho. E quando, ainda por cima, ficamos sabendo que os achados dela representam alguns dos mais importantes de todos os tempos para a Paleontologia, isso começa a parecer incrível.
E quando percebemos que, apesar de toda essa história fantástica, muitas pessoas que atuam na área podem nunca ter ouvido falar da pessoa em questão… aí, sim, tudo parece inacreditável.

Figura 1
Figura 1: Mary Anning com seu cachorro, Tray, nos afloramentos de Lyme Regis, Inglaterra (pintura de cerca de 1842)

A pessoa em questão é Mary Anning (1799-1847), considerada por alguns a “maior coletora de fósseis que o mundo já conheceu”. Nascida na pequena cidade da Lyme Regis, no litoral sul da Inglaterra, Mary Anning era filha de um carpinteiro chamado Richard, que teve dez filhos – embora apenas a própria Mary e um irmão, Joseph, sobreviveram até a idade adulta. A família era pobre, e para piorar as coisas a Inglaterra não vivia os seus melhores dias na época. No entanto, a família de Anning tinha um pouco de sorte: a cidade em que viviam, Lyme Regis, era (e ainda é) uma região rica em fósseis. Lá, a Formação Blue Lias, datada do Jurássico, aflora em costões rochosos ao redor da cidade, especialmente perto da praia, com seu sedimento formado principalmente por calcário e folhelho. No século XVIII, a região se tornou um grande destino turístico e, de quebra, os fósseis que apareciam na região começaram a ser explorados em grande escala. Essa exploração, no entanto, era feita principalmente por habitantes da própria região que coletavam os fósseis para vendê-los. A princípio, os fósseis eram vendidos apenas como curiosidades para os turistas; depois, enquanto a geologia e a paleontologia iam se consolidando como ciências, já no século XIX, eles passaram a atrair o interesse dos nobres da época que atuavam como pesquisadores.
Assim, o pai de Mary, Richard, atuou como coletor e vendedor de fósseis para aumentar a renda da família, e ensinou a prática aos filhos. É claro que, nos dias de hoje, comercializar fósseis é uma prática condenável; mas, vivendo em uma época em que a importância dos fósseis ainda não era bem conhecida – e, sobretudo, vivendo em uma época de situação econômica ruim, sendo obrigado a ver a sua família com dificuldades e tendo um dos maiores depósitos de fósseis do fundo dando sopa no seu quintal, com gente interessada em dar dinheiro por eles – quem poderia culpá-los?
No entanto, aconteceu que o pai de Mary morreu em 1800, deixando a mulher e os dois filhos; Joseph com 14 anos e Mary com 11. E é aí que a história de Mary Anning começa a ficar impressionante. Apesar da pouca idade, ela e o irmão continuaram com as atividades do pai. Só que Mary faria muita mais do que apenas coletar fósseis para vender.
Em 1811, Joseph encontrou um crânio de um tipo que eles nunca tinham visto por ali. Meses depois, Mary encontrou todo o resto do esqueleto do mesmo animal. Eles foram vendidos a colecionador por 23 libras (cerca de 88 reais, hoje). Aqueles fósseis representavam, simplesmente, um dos primeiros achados de Ictiossauros do mundo – a espécie Temnodontosaurus platyodon, descrita por Conybeare em 1822 e que continua válida até os dias de hoje. Embora esse não tenha sido exatamente o primeiro fóssil do grupo a ser encontrado, o espécime coletado por Joseph e Mary foi justamente o que primeiro chamou a atenção da comunidade científica para os Ictiossauros, que anos depois viriam a ser reconhecidos como répteis aquáticos.
Depois disso, Joseph se afastou um pouco da atividade de coletas de fósseis, e Mary Anning se tornou praticamente a única responsável pelo “negócio da família” por assim dizer. Nos anos que se seguiram, ela realizou descobertas ainda mais incríveis, entre elas: outro esqueleto do mesmo ictiossauro, Temnodontosaurus platyodon, em 1821; um esqueleto parcial de Plesiosaurus dolichodeirus (novamente descrita por Conybeare em 1824), simplesmente o primeiro plesiossauro a ser descoberto no mundo, entre 1820 e 1821; em 1828, ela encontrou o esqueleto parcial do pterossauro Dimorphodon macronyx , o primeiro pterossauro descoberto fora da Alemanha, descrito formalmente por William Buckland em 1829; e, também em 1829, ela encontrou um fóssil de peixe do gênero Squaloraja, um peixe cartilaginoso descrito por Woodward apenas em 1886 com características intermediárias entre tubarões e arraias, para ficar apenas nos achados que ganharam mais destaque.
Figura 2
Figura 2: Desenho e texto de Mary Anning contendo a descrição do fóssil do Plesiosaurus dolichodeirus (1823).

 
Nos invertebrados, suas contribuições também foram importantes. Nas suas investigações sobre os fósseis dos moluscos belemnitas (que, junto com os amonitas, eram os fósseis mais abundantes da região, e portanto os mais vendidos), Mary descobriu que alguns espécimes ainda preservavam suas bolsas de tinta, mesmo depois de milhões de anos de fossilização. A tinta até chegou a ser usada por Mary e outros como material para fazer desenhos dos fósseis no papel, mas a observação de Mary de que as bolsas dos belemnitas eram muito parecidas com a de moluscos viventes – especialmente as sépias – indicavam que os cefalópodes daquela época, como os de hoje, se utilizavam de ejeções de tinta para se defender. Foi ela também quem primeiro desconfiou que aquelas bolas que de vez em quando apareciam nos afloramentos – e que as pessoas chamavam de “pedras de bezoar” – poderiam ser, na verdade, fezes fossilizadas. Em 1829, William Buckland, baseando-se entre outros fatos nas observações de Mary, batizou essas bolas de “coprólitos”.
Figura 3
Figura 3: Um desenho e um texto feito por Mary Anning sobre um fóssil de Plesiossauro.

 
O exemplo acima mostra como Mary Anning realmente fez muito mais do que coletar fósseis para vender. É claro que ela os continuava comercializando, porque, como vocês já devem percebido, apesar de todo o esfoço que ela fazia, dadas as suas condições de vida, seria muito, mas muito difícil, que ela tivesse um projeto aprovado pelo CNPq para ganhar uma bolsa. Muito menos se ela o escrevesse com a tinta fossilizada dos belemnitas.
Mesmo assim, o fato é que ela desenvolveu um real interesse pelos fósseis que coletava, e mesmo sem nenhum tipo de educação formal em anatomia, taxonomia ou qualquer outra disciplina coisa, ela se esforçou para ler toda a literatura científica que pôde, até adquirir um saber em anatomia e em geologia que apenas os gentleman riquíssimos de sua época poderiam ter; além disso, ela se especializou não só em coletar os fósseis, mas em prepará-los; realizava dissecações de animais viventes, principalmente peixes, para comparar seu esqueleto com os fósseis, e era capaz de desenhar ilustrações dos fósseis que coletava. Em suma, Mary Anning fazia tudo o que um bom paleontólogo faz hoje. Com a única diferença de que ela era uma mulher pobre e sem formação universitária vivendo numa sociedade machista e aristocrática – além de pertencer a uma minoria religiosa que era perseguida pela Igreja Anglicana, os Congregacionalistas.
Isto demonstra uma das lições que a história de Mary Anning pode nos ensinar: sobre como pode ser importante o trabalho de pessoas não-acadêmicas, inclusive nos dias de hoje, no esforço de pesquisa e divulgação científicas.
Figura 4
Figura 4: Uma foto de uma praia de Lyme Regis nos dias atuais, mostrando uma impressão de um fóssil de Amonita em primeiro plano.

E se isso não bastasse, ainda é bom lembrar as condições do local em que Mary Anning coletava seus fósseis. As coletas nos costões rochosos de Lyme Regis eram mais produtivas durante o inverno, quando deslizamentos de terra expunham os fósseis – que tinham que ser coletados rapidamente, antes que as ondas do mar os levassem. As rochas ficavam em contato direto com o oceano, e uma onda mais forte poderia facilmente arrastar qualquer um que estivesse se esgueirando pelos penhascos. E de fato, o cachorro de Mary, Troy – que sempre a acompanhava nas suas coletas – infelizmente encontrou este triste destino, e sua dona quase o acompanhou na ocasião. Isso certamente é uma lição, algo a se pensar para caras como eu, cuja maior dificuldade que já encontrei no campo foi sentir um pouco de calor e perceber que as nossas latas de Coca-Cola já tinham acabado.
Apesar de todos os seus grandes achados e de sua história incrível, o fato é que hoje em dia até um paleontólogo fictício como aquele cara do Friends é mais conhecido do público, e provavelmente entre profissionais da área, do que Mary Anning. Isso se deve, em grande parte, ao fato de Mary nunca ter publicado nenhuma de suas descobertas (a única peça que pode ser considerada como uma publicação científica de Mary Anning é uma carta que ela escreveu à revista científica Magazine of Natural History questionando se um fóssil de tubarão do gênero Hybodus, recentemente descrito naquela revista, representaria efetivamente um gênero novo – veja detalhes em Emling, 2009) e, claro, de ter vendido quase todas elas aos pesquisadores. Porque, apesar de todo o interesse e dedicação mostrados por ela, os fósseis sempre lhe foram, sobretudo, aquilo que garantia o seu sustento. Porém, é importante notar que a maioria dos pesquisadores que publicaram pesquisas sobre fósseis encontrados por ela não teve sequer a decência de citar o seu nome em seus trabalhos. Durante a vida, Mary chegou a vender fósseis, se corresponder e trocar ideias e informações com vários cientistas importantes de sua época, entre eles Richard Owen, Louis Agassiz, Henry de la Beche (cujo desenho Duria Antiquor, considerado o primeiro trabalho de paleoarte da história, foi feito baseado nos fósseis encontrados por Anning), Charles Lyell e Adam Sedgwick – os dois últimos, professores de Charles Darwin.
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Figura 5: Na Inglaterra, as famosas “Blue Plaques” são usadas para homenagear lugares em que pessoas ilustres nasceram, residiram ou morreram. Esta placa está no local em que Mary Annig nasceu, em Lyme Regis, e que hoje está convertido em um museu.

 
Todos estes nomes são hoje conhecidos como precursores da geologia e da paleontologia; e todos contaram para isso com os achados de Mary Anning, que por sua vez caiu no esquecimento. E isso é algo que, infelizmente, acontece até hoje; vários fósseis, como se sabe, são encontrados por trabalhadores ou pessoas que estão passando à toa por um determinado lugar, e o pesquisador, depois de pesquisar e publicar seus resultados, se recusa até a citar o nome de quem encontrou o fóssil! Muitos de nós pensamos “Mas o que é que um pedreiro ganha se eu agradecer a ele por ter achado um crânio completo enquanto trabalhava numa obra? Não vai adiantar nada ele colocar isso no Currículo Lattes dele!”.  É evidente que o encontrar do fóssil é uma etapa que faz parte de todo um processo que vai até a publicação. Mas é uma etapa sem a qual, simplesmente, o resto da pesquisa nunca existiria!
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Figura 6: “Google Doodle” celebrando o 215º aniversário de Mary Anning, em 2014.

 
Outra reflexão que a história de Mary Anning provocou em mim, particularmente, diz respeito ao o que ser um pesquisador realmente significa. Um cientista é, acima de tudo, alguém que trabalha com um método, com a razão, para obter as respostas às perguntas que faz a si mesmo; mas nada disso faz sentido se não há uma emoção envolvida nisso. O cientista deve gostar do que faz, deve ver sentido naquilo que investiga, deve ter uma convicção de que o ele faz é importante. E, na minha opinião, são essas os motivos que devem mover o cientista a fazer o que faz, muito mais do que atingir um número de publicações ou arranjar empregos e financiamentos. É claro que ninguém pode condenar aqueles que colocam isso como prioridade – como ninguém pode condenar Mary Anning por ter vendido fósseis em sua época – mas eu acredito que, mais importante que preencher nossos currículos e nossas vaidades, o cientista deve trabalhar tendo em mente que o que ele faz é importante, faz sentido para o mundo, e que ele é uma pessoa em que todos depositam a esperança de que seu trabalho fará o ser humano entender melhor o mundo. Os títulos acadêmicos, por exemplo, não são uma coisa para se ficar exibindo para as nossas tias mas, ao invés disso, são apenas etapas na formação de um profissional. O maior objetivo de um cientista em formação, e de um cientista formado também, não deveria ser colecionar títulos ou publicações, mas aprendizado e experiência, coisas que dependem muito mais da própria dedicação individual do que de qualquer outra – como provou Mary Anning, há mais de duzentos anos atrás.
E hoje, especificamente em um 8 de março, a história e a trajetória de Mary Anning se tornam ainda mais significativos pelo Dia da Mulher. Hoje, muito diferentemente da época de Mary Anning, as mulheres possuem bastante espaço na comunidade científica, com várias mulheres se destacando como cientistas em várias áreas, incluindo a nossa Paleontologia. No entanto, ainda há muito que pode ser feito, e a história de Mary Anning nos alerta sobre como o conhecimento que a ciência pode proporcionar à humanidade fica prejudicado quando uma mulher é discriminada simplesmente por ser mulher, ou quando qualquer pessoa é discriminada seja por motivo de gênero, etnia, cor da pele, nacionalidade, ideologias, opiniões ou religião. Por isso, neste dia 8 de março, que Mary Anning seja um exemplo de gana de conhecimento, sim, mas também de que o sexo ou gênero de um cientista simplesmente não têm nada – absolutamente nada – a dizer no que diz respeito à sua capacidade como cientistas.
Figura 7
Figura 7: Reconstituição do desenho Duria Antiquor (1830), de Henry de la Beche, baseado grandemente em fósseis coletados por Mary Anning.

 
Referência bibliográfica:
Emling, Shelley (2009), The Fossil Hunter: Dinosaurs, Evolution, and the Woman whose Discoveries Changed the World, Palgrove Macmillan, ISBN 978-0-230-61156-6
Para saber mais:
http://www.ucmp.berkeley.edu/history/anning.html
https://www.sdsc.edu/ScienceWomen/anning.html
http://www.macroevolution.net/mary-anning.html
Um vídeo contando a história de Mary Anning:
Referências das Figuras:
[1],[3]: http://www.bbc.co.uk/schools/primaryhistory/famouspeople/mary_anning/
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Plesiosaurus
[4]: http://www.dorsetlife.co.uk/2012/05/from-ancient-to-modern-lyme-regis-fossil-festival/
[5], [6]: http://heavy.com/news/2014/05/mary-anning-215-birthday-google-doodle/
[7]: https://en.wikipedia.org/wiki/Duria_Antiquior


16735619_1201225939972881_1202071666_oGiovanne Mendes Cidade, Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Mestre e atualmente Doutorando em Biologia Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto. Estuda principalmente crocodilianos fósseis, com ênfase em sistemática, taxonomia, biogeografia e anatomia de crocodilianos do Cenozoico, em especial do grupo dos Alligatoroidea. Também tem interesses diletantes em história da Paleontologia e em filosofia da Ciência como um todo, e da Biologia em particular, além de Evolução. 

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