Já vimos o que são os anticorpos em um texto anterior, como eles são formados, quais as suas funções, mas resta uma dúvida: será que podemos usá-los como alguma forma de tratamento? E a resposta é sim!

Toda a ideia por trás de usar anticorpos no combate a doenças infecciosas gira em torno do conceito de Imunidade Passiva e Plasma Convalescente. Assim, por causa disso, precisamos entender tais conceitos.

A imunidade passiva (já comentada no texto sobre vacinas) é aquela que ocorre quando há somente a transferência de anticorpos de uma pessoa para outra. Dessa forma, o segundo indivíduo consegue melhorar da infecção, mas acaba não gerando uma memória imunológica contra o patógeno. Usa-se como indivíduo doador alguém que já foi infectado pelo patógeno em questão, pois ele já teve tempo de montar toda uma resposta imune adaptativa, o que inclui os anticorpos. Assim, esse conceito já é antigo, ele usado desde o final do século XIX, no combate a toxinas bacterianas, em uma era pré-antibióticos(1). 

Mas aí podemos perguntar: por que então não damos o patógeno ou a toxina para todo mundo e todos montam essa resposta imune? Nesse caso, estamos falando de uma vacina, que leva a um processo de imunidade ativa, aquela que gera uma memória imunológica (já falamos de vacina, e você pode conferir aqui). Contudo, nesse momento aparecem alguns problemas para essa ideia, como as dificuldades em criar uma vacina: todo o processo é muito caro, difícil e demorado.

Sobre o Plasma Convalescente

Em momentos como o que estamos passando agora, cada minuto e hora que se passa é essencial para salvar uma vida. Apesar de ser necessário desenvolver vacinas para gerar uma memória imunológica na população, é também preciso usar de métodos para ajudar aqueles que já foram infectados e podem desenvolver a forma grave da doença. Pois, em muitos casos, a severidade da doença pode ser grande, com um alto grau de letalidade, ou ela pode ser muito contagiosa e tem a chance de causar uma forma agravada que pode levar a complicações (como a Covid-19).

É nesse momento que entramos no uso do Plasma Convalescente. Em palavras mais simples, esse termo se refere a parte líquida do sangue, que não inclui hemácias e células de defesa, de pessoas que já ficaram doentes e se recuperaram. Dessa forma, é justamente nessa parte do sangue que estão os anticorpos neutralizantes contra o patógeno que queremos combater – no caso da Covid-19, o vírus SARS-CoV-2.

Essa técnica já é usada há um século e os primeiros estudos do uso de plasma convalescente em uma infecção viral datam da gripe espanhola em 1919 e 1920(2). Um outro momento que o uso de plasma convalescente foi tido como uma possibilidade foi durante os recentes surtos de Ebola na África, uma doença altamente infecciosa e letal, que infelizmente até hoje não possui vacina ou medidas terapêuticas muito eficientes(3). E, é claro, atualmente tem se falado muito sobre esse procedimento no tratamento dos casos graves da Covid-19, enquanto não há uma vacina ou medicamento totalmente seguro e 100% eficiente para ela.

Outras técnicas

Um ponto que também precisamos citar aqui é o uso de anticorpos monoclonais no combate ao SARS-CoV-2 até uma vacina ficar pronta. Anticorpos monoclonais são um conjunto de anticorpos produzidos em laboratório que são exatamente iguais uns aos outros e que se ligam a uma única parte do patógeno, escolhida a dedo pelos cientistas, e dessa forma, sendo essencial para o patógeno. Mas além de combater vírus, bactérias e outros patógenos, essa ferramenta é tão poderosa que tem sido usada até mesmo no tratamento de diferentes tipos de cânceres e doenças autoimunes. Contudo, diferente do uso de plasma convalescente (que usa uma mistura de anticorpos – chamados policlonais – e moléculas contra diferentes partes do vírus), essa abordagem é muito mais cara e complexa de se manejar, levantando a questão (4): países e pessoas mais pobres vão ter condições de pagar por esse tipo de tratamento enquanto uma vacina não sair?

Mas voltemos ao Plasma Convalescente

Recentemente, a Food and Drug Administration (FDA) – uma agência dos Estados Unidos responsável pela proteção e promoção da saúde pública – aprovou o uso de plasma convalescente para o tratamento de pacientes com a forma grave da Covid-19(5). Assim, foi permitido o início de testes clínicos para analisar a eficiência do procedimento em diferentes aspectos da doença. Até agora cinco testes clínicos já foram começados na tentativa de verificar a eficácia de plasma convalescente nos seguintes aspectos(6): 

  • prevenção dos sintomas após contaminação; 
  • tratamento de casos sintomáticos leves para evitar complicações e a hospitalização; 
  • casos moderados de pacientes hospitalizados para prevenir a entrada na UTI e uso de equipamentos de ventilação;
  • última alternativa (chamada de “terapia de resgate”) em pacientes graves que estão sendo ventilados;
  • casos pediátricos.

Por fim…

O uso do plasma convalescente vem se provando uma poderosa ferramenta que poderemos adicionar em nosso arsenal para combater a Covid-19. Mas é claro que ela tem seus prós e contra. A favor dela temos a provável eficiência clínica, a disponibilidade quase que imediata de doadores (visto os mais de 2 milhões e meio de brasileiros recuperados e 15 milhões de pessoas ao redor do mundo). Ademais, temos o custo relativamente mais baixo do que o desenvolvimento de novos antivirais, ou mesmo o reposicionamento de fármacos (que já mencionamos nestes textos aqui e aqui).

Além disso, o uso de plasma convalescente pode se provar uma ótima medida preventiva, principalmente para os agentes de saúde que ficam na linha de frente, combatendo a infecção e se expondo a contaminação. Já os contras se concentram principalmente na parte administrativa e logística, focando na identificação, consentimento, coleta e teste dos possíveis doadores (7). Assim, os prós e contras devem ser pesados, analisando principalmente o que a literatura irá falar nos próximos meses, caso novas pesquisas corroborem o uso de tal medida ou descubram problemas.

Ciência Brasileira

Rabelo-da-Ponte, FD; Silvello, D, Scherer, JN, Ayala, AR, Klamt, F (2020) Convalescent Plasma Therapy on Patients with Severe or Life-Threatening COVID-19: A Metadata Analysis, The Journal of Infectious Diseases

Artigos Citados:

1. Casadevall A, Dadachova E, Pirofski LA (2004) Passive antibody therapy for infectious diseases. Nat Rev Microbiol; 2(9):695-703

2. Brown, BL, & McCullough, J (2020) Treatment for emerging viruses: convalescent plasma and COVID-19, Transfusion and Apheresis Science, 102790.

3. World Health Organization (2014) Use of convalescent whole blood or plasma collected from patients recovered from Ebola virus disease for transfusion, as an empirical treatment during outbreaks. Interim guidance for national health authorities and blood transfusion services; Geneva: World Health Organization

4. Leford, H (2020) Antibody therapies could be a bridge to a coronavirus vaccine — but will the world benefit? Nature, 

5. Tanne JH (2020) Covid-19: FDA approves use of convalescent plasma to treat critically ill patients. BMJ 2020;368:m1256. 

6. Bloch EM, Shoham S, Casadevall A, et al (2020) Deployment of convalescent plasma for the prevention and treatment of COVID-19 J Clin Invest; 130(6):2757-2765. 

7. Sullivan, HC, & Roback, JD (2020) Convalescent plasma: therapeutic hope or hopeless strategy in the SARS-CoV-2 pandemic Transfusion Medicine Reviews.

Para saber mais

Marano, G, Vaglio, S, Pupella, S, Facco, G, Catalano, L, Liumbruno, G. M, & Grazzini, G (2016) Convalescent plasma: new evidence for an old therapeutic tool? Blood Transfusion, 14(2), 152.

Center for Biologics Evaluation and Research, USF and DA (2020) Recommendations for investigational COVID-19 convalescent plasma

Duan, K, Liu, B, Li, C, Zhang, H, Yu, T, Qu, J, … & Peng, C (2020) Effectiveness of convalescent plasma therapy in severe COVID-19 patients. Proceedings of the National Academy of Sciences, 117(17), 9490-9496.

Rojas, M, Rodríguez, Y, Monsalve, DM, Acosta-Ampudia, Y, Camacho, B, Gallo, JE, … & Mantilla, R D (2020) Convalescent plasma in Covid-19: Possible mechanisms of action; Autoimmunity Reviews, 102554.

Expanding access to monoclonal antibody-based products: a global call to action. Wellcome; 2020 August. Avaliable at: https://wellcome.ac.uk/sites/default/files/expanding-access-to-monoclonal-antibody-based-products.pdf

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Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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