A fauna do Paleo-deserto Botucatu – O Paleo-deserto Botucatu, Parte II

“O paleodeserto Botucatu foi um gigantesco deserto de dunas, que existiu durante o final do Período Jurássico (145 milhões de anos atrás) e começo do Período Cretáceo (há 130 Milhões de anos), quando os atuais continentes do hemisfério sul ainda estavam reunidos formando o chamado mega-continente austral Gondwana. Este antigo deserto abrangia algo como 1.500.000 Km² e se estendia desde o Estado de Minas Gerais até o Uruguai – em latitude – e da Bolívia até onde antes estava acomodada a África, na costa leste brasileira… Tratava-se de uma verdadeira imensidão de areia, com um clima seco rigoroso e condições aparentemente pouco propícias à vida…. mas apenas aparentemente… — Veja a primeira parte desta reportagem AQUI.

Em um lugar perdido em um pretérito tão remoto, numa era de animais tão diferentes, a curiosidade nos leva a perguntar: que tipo de criaturas viveram em condições tão adversas? É sobre isso que vamos tratar neste post do Colecionadores de Ossos.
Em um ambiente extremamente árido como foi o deserto do Botucatu, dificilmente são preservados fósseis de restos corporais de animais, tais como, ossos ou conchas…… Quanto a partes moles, então, nem pensar. Desta forma, a única maneira de saber quais animais viviam nesse deserto é por meio dos icnofósseis.
Icnofósseis, de forma geral, são registros de um comportamento de um determinado organismo que acabaram por ser preservados em um substrato que, depois de passar por processos químicos e físicos (Litificação), veio a tornar-se rocha.
Os tipos de icnofósseis mais comuns na Formação Botucatu (conjunto de rochas que representam hoje o antigo deserto Botucatu) são pegadas de vertebrados e invertebrados e evidências de alimentação de invertebrados endoestratais (“de dentro do substrato” ou “escavadores”).

Exemplos de comportamento que produzem icnofósseis: locomoção, alimentação, descanso, reprodução, etc. Exemplos de tipos de icnofósseis deixados por estes comportamentos: pegadas, perfurações, ovos, coprólitos (fezes fósseis), etc.

Os icnofósseis na Formação Botucatu são raros em alguns níveis. No entanto, existem estratos onde eles são extremamente abundantes, como por exemplo, aqueles que afloram nas cidades de São Carlos e Araraquara, no interior do Estado de São Paulo. Acredita-se que esta abundância relativa de rastros nas imediações destas cidades seja porque na época em que o antigo Deserto Botucatu existiu, haviam diversos oásis espalhados pela imensidão de areia. Estes abrigavam uma diversificada fauna e atraíam animais a procura de água. A existência destes oásis é corroborada com a própria preservação das pegadas, favorecida somente por causa da umidade.
Mas agora a pergunta que não quer calar: quem eram esses animais?

PERIGO !!!!. Apesar de ser irresistível e tentador atribuir um organismo produtor a icnofósseis… temos que tomar muito cuidado ! Não foram raras as vezes em que a atribuição de produtores a um determinado icnofóssil se mostrou totalmente equivocada, principalmente em se tratando de rastros de invertebrados. Pode-se dizer que, na icnologia de vertebrados isso é mais aceitável, afinal existe uma diferença mais conspícua entre os rastros de um dinossauro e de um mamífero , e dificilmente, eles produziriam um rastro semelhante – ainda assim isso poder acontecer… Entretanto, entre os invertebrados isto é comum, ou seja, grupos de invertebrados pouco aparentados – muito diferentes – podem produzir marcas muito semelhantes e, um mesmo grupo de animais – até mesmo da mesma espécie! – podem produzir rastros muito diferentes. Pense nisto!

Quando não existem fósseis de restos corporais, como é o caso do deserto do Botucatu, os cientistas recorrem, com muita parcimônia e cuidado, aos icnofósseis para saber que animais viviam naquele lugar.
Talvez o mais interessante sobre o Deserto Botucatu seja que, apesar de ser um deserto de mais de 130 milhões de anos, ele se parecia muito com um deserto atual, exceto pelas espécies hoje extintas, claro. Ele abrigava uma fauna adaptada ao ambiente desértico com uma composição semelhante ecológica a que vemos em desertos contemporâneos… vamos ver por quê.
Começando do alto da cadeia alimentar:
Hoje, esta posição é ocupada por mamíferos carnívoros de maior porte, répteis diversos e dinossauros terópodes do grupo dos coelurossauros com penas – as aves! Outrora, no antigo deserto, era ocupada também por dinossauros terópodes, como as aves atuais, mas por representantes de ramos ancestrais hoje extintos. A figura 1 mostra uma pegada de terópode coelurossaurídeo encontrado na Fm. Botucatu. Esta pegada apresenta um comprimento maior do que a sua largura, três dígitos com evidência de garras, sendo o dígito do meio o maior de todos.
Figura 1 – Pegadas de dinossauros atribuídas a Theropoda Coelurosauria encontradas na Formação Botucatu (Fotografias por Marcelo Adorna Fernandes).
Habitando o antigo deserto, ainda, poderia ser encontrado outro grupo de terópode, e sabemos disso por causa da presença de outro tipo de pegada. Estas também com os três dígitos, também com marcas de garras, porém os dedos mais espaçados: características típicas do grupo dos carnossauros (Figura 2). Veja a diferença.
Figura 2 – Pegadas de dinossauros atribuídas a Theropoda Carnossauria encontradas na Formação Botucatu (Fotografia por Marcelo A. Fernandes).
Os carnossauros, e também os coelurossaros, de fato estariam no topo da cadeia alimentar, já que são os maiores organismos carnívoros identificados no registro icnológico.
Existem evidências também de dinossauros herbívoros do grupo dos ornitópodes. Animais bípedes, reconhecidos por pegadas tão compridas quanto largas, com três dedos de extremidades arredondadas (sem marcas de garras), como mostrado na figura 3.
Figura 3 – Pegadas atribuídas a dinossauros ornitópodes encontradas na Formação Botucatu (Fotografia por Marcelo Adorna Fernandes).
E como não poderia deixar de ser dito, destoando da maioria das pegadas de dinossauros geralmente encontradas – todas de porte pouco avantajado – foi encontrada ainda uma trilha muito curiosa pelo tamanho do seu produtor. As pegadas gigantes seriam atribuídas a um grande dinossauro ornitópode, e foram encontradas pelo Prof. Dr. Marcelo Adorna (Figura 4). É muito estranho encontrar pegadas de um animal herbívoro tão grande em um lugar com tão poucos recursos vegetais para sustentá-lo.
Figura 4 – Pegadas atribuídas a um grande dinossauro ornitópode encontradas na Formação Botucatu. Ao fundo o Professor Marcelo Adorna, um grande estudioso dos icnofósseis desta Formação.
Nos desertos atuais existem ainda pequenos mamíferos muito bem adaptados às árduas condições dos ambientes desérticos. No deserto do Botucatu não faltavam estes animais. Eles ocupavam uma posição intermediária na cadeia alimentar, como as várias espécies de roedores atuais. A figura 5 mostra os característicos rastros deixados por eles. A figura 6 mostra uma cena que seria comum quando o deserto do Botucatu existia: uma interação entre dinossauro e um mamífero da época.
Figura 5 – Rastros identificados como Brasilichnium elusivum – atribuídos a mamíferos de pequeno porte – encontrados na Formação Botucatu (Marcelo Adorna Fernandes). Escala = 10cm.
Figura 6 – Uma interação comum entre um representante do grupo dos Dinossauros Theropoda e um mamífero durante o final do Jurássico, começo do Cretáceo, na região que compreendia o deserto do Botucatu.
Figura 7 – Reconstrução do paleoambiente durante o final do Jurássico, começo do Cretáceo, no deserto do Botucatu, com integrantes comuns da sua fauna: escorpiões, insetos e pequenos mamíferos.
Atualmente é muito comum encontrar em desertos diversos grupos de artrópodes adaptados a ambientes áridos, tais como, aranhas, escorpiões e variados insetos….. no Deserto Botucatu não era diferente. Existem icnofósseis atribuídos a esses animais que atestam a existência pretérita de animais muito semelhantes aos atuais no paleo-deserto (Figura 7).

Entre os invertebrados, além dos que deixam marcas na superfície (epiestratais), existem também registros de Taenidium isp, que consistem em escavações sinuosas e meniscadas (em forma de menisco) atribuídas a anelídeos ou insetos coleópteros (Figura 8).

Figura 8 – Rastros identificados como Taenidium isp. Atribuídos a invertebrados (anelídeos ou insetos). Esta laje em especial antes de ser tombada no Museu de Hist;oria Natural Prof. Dr. Mário Tolentino, na UFSCar, era usada como pavimentação de uma calçada na cidade de Araraquara, SP.
Esses invertebrados poderiam ter servido de alimento para os mamíferos, já que estes animais conviveram juntos.
Os rastros fósseis do Botucatu são um testemunho muito interessante sobre um ambiente bastante particular do passado: um colossal deserto com dunas esparsamente pontuadas de oásis. Conhecer a diversidade biológica deste lugar é um desafio por causa da escassez de restos corporais preservados de animais e plantas. Até agora, apenas troncos fóssilizados foram encontrados, todos retirados da região de Minas Gerais.
Estes indicam a presença de gimnospermas, plantas do grupo dos pinheiros e araucárias. Já quanto a fauna, representativos e bem preservados icnofósseis nos permitem obter uma sólida idéia de como seria o cenário Juro-cretácico. Eles fornecem uma verdadeira e fantástica janela para que possamos vislumbrar a vida e as interações dos habitantes daquele ambiente passado.
Referências Bibliográficas
FERNANDES, M. A. Paleoicnologia em ambientes desérticos: análise da icnocenose de vertebrados da pedreira São Bento (Formação Botucatu, Jurássico Superior – Cretáceo Inferior, Bacia do Paraná), Araraquara, SP. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza. Instituto de Geociências. Rio de Janeiro, 2005.


FERNANDES, M. A.; CARVALHO, I. DE S. Revisão diagnóstica para a icnoespécie de tetrápode Mesozóico Brasilichnium elusivum ( Leonardi , 1981 ) ( Mammalia ) da Formação Botucatu , Bacia do Paraná , Brasil. Ameghiniana, v. 45, n. 1, p. 167-173, 2008.


FERNANDES, A. C. S.; CARVALHO I DE S.; NETTO, R. G. Ichnofósseis de invertebrados da Formação Botucatu, São Paulo (Brasil). Anais da Academia Brasileira de Ciências, v 62, n. 1, p. 45 – 49, 1990

A seguir, continuando a série de artigos sobre a Icnologia da Formação Botucatu: Um estranho gigante nas dunas e Xixi de dinossauro.

Sobre o(a/s) autor(a/es):

Aline é bióloga, especialista em paleontologia de vertebrados e criadora da rede de divulgação científica "Colecionadores de Ossos". Atualmente é professora adjunta de Paleontologia do Departamento de Geologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em Natal, RN.

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