Terra Febril

O Máximo Térmico do Paleoceno-Eoceno (MTPE) e as suas lições para a atualidade – Conhecer o passado é a chave para revelar o futuro:

Há 56 milhões de anos, no final do período conhecido como Paleoceno, um grande aumento no nível de carbono atmosférico mudaria o rumo da vida no planeta para sempre. A Terra tornou-se tão quente, que não havia sequer sinal de gelo nos pólos. Florestas tropicais e pântanos se estendiam até as latitudes mais elevadas e o nível do mar era 70 metros mais alto do que é hoje, cobrindo extensas áreas continentais. As zonas climáticas modificaram-se de tal forma, que obrigaram animais e plantas a se deslocarem ou adaptarem-se as novas condições. Os grupos que não o fizeram, extinguiram-se ainda no início do período Eoceno.
Os cientistas conhecem esse evento como o Máximo Térmico do Paleoceno-Eoceno (MTPE): Num espaço de alguns milhares de anos – um instante no tempo geológico – as temperaturas globais subiram cerca de 5 graus Celsius. A causa? Uma massiva liberação de gases estufa na atmosfera terrestre. Semelhante às mudanças climáticas provocadas pelo homem na atualidade, o MTPE serve como modelo para compreender o que ocorrerá com a biosfera em um futuro próximo.  O conhecimento exato do que se passou poderia nos ajudar a planejar ações preventivas contra os efeitos catastróficos de erros seculares de emissões de dióxido de carbono pela queima dos combustíveis fósseis. O problema, contudo, é pior do que poderíamos imaginar: a intensa liberação de gases estufa do Paleoceno-Eoceno corresponderia a apenas 10% da proporção em que os gases estufa se acumulam hoje… as conseqüências podem ser terríveis.

Localizando-se temporalmente: Dentro da Era Cenozóica (na qual se deu o reinado dos mamíferos, após a extinção dos dinossauros não-avianos), do Período Paleógeno, a primeira época é o Paleocenoque se inicia a 65 milhões de anos atrás, seguida pelo Eoceno, há aproximadamente 56 milhões de anos.  O MTPE teria se dado na transição Paleoceno-Eoceno – verifique o lado inferior direito da tabela. **O termo “Terciário”, de acordo com a mais recente tabela oficial da GSA, é considerado somente informalmente** 

O MTPE durou mais de 150 mil anos, até que todo carbono “extra” fosse reabsorvido da atmosfera. Durante este tempo, grandes secas assolaram o planeta, enquanto vastas áreas foram castigadas por chuvas e inundações massivas. Apesar de um grande número de extinções, várias espécies prosperaram e mudaram o cenário global para sempre. As conseqüências evolucionárias desse evento podem ser vistas hoje e incluem o sucesso primata, que culminou posteriormente na evolução humana.
 
Atualmente os cientistas acreditam que o gatilho deste grande evento tenha sido a ruptura final das massas de terra que antes formavam o supercontinente Pangea – especificamente a separação da Europa e a Groenlândia para a formação do Atlântico Norte. Enormes volumes de rocha derretida foram cuspidos para a superfície terrestre e queimaram sedimentos ricos em carbono  –  talvez até carvão e petróleo – próximos a superfície. Os sedimentos queimados teriam emitido colossais quantidades de dióxido de carbono e metano. A julgar pelo volume das erupções, elas teriam sido responsáveis pelo acúmulo inicial de gases estufa, algo na ordem de centenas de pentagramas (105 gramas) de carbono, o suficiente para aumentar a temperatura global em alguns graus. Todavia, algo mais seria necessário para impulsionar o MTPE à sua temperatura máxima.
 
Erupções vulcânicas deram início ao primeiro pulso de aquecimento
Uma segunda fase de aquecimento intenso foi desencadeada pelo primeiro pulso de emissões. A agitação natural dos oceanos conduziu o calor da superfície para o fundo do mar, liberando uma enorme quantidade de hidratos de metano antes congelados e aprisionados no sedimento marinho (Leia mais sobre Clatratos de Metano AQUI). Conforme os hidratos descongelaram, o gás borbulhou até a superfície. Mais potente que o dióxido de carbono na retenção de calor, o metano induziu o pico mais extremo de aquecimento.
 
Liberação de hidratos de metano do fundo marinho
 
O primeiro pulso de aquecimento, portanto, disparou um sistema de retroalimentação positiva. A partir daí, o mundo já quente, só esquentaria ainda mais. Uma montanha-russa. O carbono aprisionado em outros reservatórios começou a ser liberado com o aquecimento progressivo do planeta e a crise se agravou.
 
A secagem, o cozimento e a queima de material vivo liberam gases estufa. Em alguns lugares, grandes secas teriam ocorrido, além de incêndios generalizados, o que liberou toneladas de CO2. Isso manteve a descarga intensa por um longo período. Além disso, o derretimento do permafrost contribuiu com a situação. Esse tipo de solo congelado aprisiona uma enorme quantidade de material em decomposição, que chega a ter milhares de anos. Ao descongelar, libera metano em profusão. O resultado é dramático.
 
Atualidade: Incêndios florestais na Europa e Estados Unidos
 
Atualidade: Enchentes na América do Sul
 
Atualidade: o derretimento do Permafrost no Alaska, EUA.
 
No início da crise, o oceano serve como um tampão. Ele absorve parte do carbono liberado. É um processo natural de regulação, porém, depois de um tempo, o acúmulo excessivo deste gás pode escoar para o oceano profundo e gerar um processo de acidificação bastante nocivo. O acúmulo de ácido carbônico é desastroso para a vida oceânica. Ao mesmo tempo em que o fundo oceânico esquenta e se acidifica, o teor de oxigênio dissolvido diminui bruscamente com o aumento da temperatura da água. Foraminíferos e outros organismos microscópicos do leito oceânico são exterminados. A cadeia da vida começa a se romper pela base. O registro fóssil do Paleoceno-Eoceno demonstra que entre 30-50% desses organismos (em número de espécies) se extinguiram nesse período. A acidificação dos oceanos dissolve também o carbonato de cálcio das conchas de invertebrados marinhos. Uma miríade de formas de vida foi levada a extinção.
Temperatura do oceano circum-polar ao longo do tempo. Atenção para o pico durante o MTPE ou PETM (sigla em inglês).
 
Uma espécie de Foraminifera que sofreu baixas durante o MTPE
 
Registro de isótopos de oxigênio e carbono de foraminíferos bentônicos de sítios no Atlântico Sul e Oeste do Pacífico para o MTPE – Zachos et al. (2010) modificado por Archer(2007).
O surto de carbono também afetou a vida na terra. Análises de isotopia em paleosolos e esmalte dentário de mamíferos indicam uma assinatura isotópica peculiar. O MTPE pode, então, ser rastreado em rochas e fósseis do mundo todo, tanto marinhas, quanto continentais.
 
Em 1990 uma dupla de cientistas norte-americanos identificou o registro progressivo de liberação de gases estufa do MTPE em um núcleo de sedimento extraído do fundo do mar perto da Antártida. Nos anos seguintes a essa descoberta, detalhes como ‘a quantidade exata de gás liberado’, ‘qual gás predominava na atmosfera em determinado período’ e ‘quanto tempo a liberação durou’ começaram a ser buscados. Os sedimentos oceânicos passaram a ser analisados camada por camada. Pelo fato de serem depositados lentamente, eles retêm minerais e fósseis que guardam a assinatura química exata da composição dos oceanos e da atmosfera circundante ao longo do tempo geológico. Isótopos de oxigênio em restos de esqueletos revelam a temperatura da água, por exemplo. Porém, muitos dos núcleos de sedimento marinho estavam temporalmente incompletos – algumas partes foram degradadas ao longo do tempo. O sedimento marinho geralmente é rico em carbonato de cálcio, porém durante o MTPE, a acidificação dos oceanos dissolveu a maioria do carbonato nos sedimentos exatamente nas camadas em que as condições mais evidentes dessa era deveriam estar representadas.
 
Testemunho oceânico demonstrando o limite Paleoceno-Eoceno e os sedimentos depositados durante o MTPE ou PETM (sigla em inglês).
Os cientistas não se deram por vencido. Um grupo multidisciplinar se uniu para estudar sedimentos argilosos de uma bacia marinha soerguida em uma região do ártico europeu. Depois de anos de trabalho, obtiveram resultados muito especiais. Com auxílio de modelagens computacionais somadas aos dados obtidos dos testemunhos, revelaram que a liberação de gases estufa do MTPE deve ter durado por volta de 20 mil anos, um período muito mais lento do que se imaginava. Comparando-se com a taxa atual de aumento desses gases na atmosfera, as concentrações vêm aumentando cerca de dez vezes mais rápido que durante o MTPE. As implicações dessa descoberta são dramáticas para a vida no planeta. A mudança climática provoca maior ou menor impacto nas formas de vida e ecossistemas dependendo da sua velocidade. A vida responde de maneira menos dramática a mudanças lentas, pois tem mais tempo para se adaptar.
 
Durante o Cretáceo, por exemplo, houve um efeito estufa semelhante ao MTPE, porém muito mais lento. O episódio durou milhões de anos e não ocorreram extinções tão notáveis. Já o MTPE é um exemplo de uma mudança moderada. Muitos organismos se extinguiram e outros ‘encolheram’ de tamanho, em especial os mamíferos. Os mamíferos do limite Paleoceno-Eoceno são menores que seus antecessores e descendentes. O mesmo é observado em insetos e vermes. Acredita-se que seja devido ao fato de que corpos menores dissipam o calor melhor do que os maiores. Outros animais sobreviveram porque migraram para os pólos. Todavia, alguns grupos foram muito favorecidos. Ungulados, tartarugas e algumas espécies de microorganismos aquáticos, por exemplo, expandiram seus territórios. Para os mamíferos, essa expansão abriu novas oportunidades de evolução e preenchimento de nicho:  A diversificação do período inclui a origem dos primatas.
 
Reconstituição da fauna e flora do Eoceno da Alemanha
 
Dispersão primata durante o Máximo Térmico do Paleoceno-Eoceno. O aproveitamento dos corredores florestais.
 
Reconstituição do cenário do Paleoceno Final colombiano. Enquanto muitos mamíferos encolheram, alguns répteis “aproveitaram as temperaturas mais altas” e foram selecionados para o aumento de tamanho (i.e. Titanoboa, a maior cobra constritora que já teria existido).
 
Quando se realiza a comparação com a mudança climática em curso, o resultado é assustador.  Estamos bombeando pentagramas de carbono na atmosfera todos os anos. A velocidade de acúmulo de gases estufa é exorbitante.
 
Liberação de gases estufa na atualidade
 
As projeções indicam que o crescimento populacional e econômico dos países em desenvolvimento levará a liberação de 25 pentagramas anuais de carbono para a atmosfera antes que as reservas de combustíveis fósseis comecem a ficar escassas. O que fazer?
A extração de combustíveis fósseis
 
O estudo do MTPE é um modelo. Quanto tempo os habitantes da Terra precisarão para se adaptar? Será possível se adaptar? É difícil prever o futuro, mas já temos algumas respostas. Há evidências de acidificação nas águas marinhas e a taxa de extinção de espécies está aumentando. O início do deslocamento das zonas climáticas já colocou plantas e animais em risco, com vetores de doenças e espécies invasoras conquistando novos territórios. Cidades, estradas, ferrovias e plantações isolam plantas e animais, bloqueando caminhos migratórios. Animais de grande porte estão condenados pela perda de habitat e sua perspectiva de sobrevivência diminui. Geleiras estão derretendo e elevando o nível do mar. Recifes estão sob estresse e sujeitos ao desaparecimento. Os padrões de precipitação estão alterados e a ocorrência de secas e inundações é muito mais comum. As linhas costeiras se alteram e as migrações humanas já começaram.
 
No fim, o sistema acabará por reabsorver o dióxido de carbono para rochas. Isso pode levar centenas de milhares de anos, mas é certo. Sob esta perspectiva, o planeta não está em risco. Nós e o mundo como conhecemos estamos. Se continuarmos no caminho atual, sem dúvida vamos acabar experimentando algo que já aconteceu antes, no Eoceno. Já sabemos como vai ser. Será numa escala maior. O MTPE fornece um contexto para nossas escolhas. Seja qual for o destino da humanidade, o padrão da vida na Terra será radicalmente diferente do que poderia ter sido. Tudo depende de que atitudes vamos tomar. Qual é a sua?
 
Francesca A. McInerney & Scott L. Wing, 2011. The Paleocene-Eocene thermal maximum: a perturbation of the carbon cycle, climate, and biosphere with implications for the future. Annual Review of Earth and Planetary Sciences, 39: 489-516.
 
Ying Cui et al., in press. Slow release of fossil carbon during the Paleocene-Eocene thermal maximum. Nature Geoscience.
 
Lee R. Kump, 2011. O Último grande aquecimento global. Scientific American Brasil, agosto.
 
Robert Kunzig, 2011. Ponto de Ebulição. National Geographic Brasil, edição especial, outubro.
 
Archer, D., 2007. Methane hydrate stability and anthropogenic climate change. biogeosciences, 4, 521-544.
 

Sobre o(a/s) autor(a/es):

Aline é bióloga, especialista em paleontologia de vertebrados e criadora da rede de divulgação científica "Colecionadores de Ossos". Atualmente é professora adjunta de Paleontologia do Departamento de Geologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em Natal, RN.

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