Os Sobreviventes

A história da vida na Terra tem em torno de 3.8 bilhões de anos, mas devo enfatizar que esta não foi uma jornada fácil. Mesmo espécies bem sucedidas por milhares ou centenas de milhares, até mesmo milhões de anos, estiveram altamente suscetíveis aos mais catastróficos e devastadores eventos de extinção do nosso planeta (5 no total). A lição de humildade: Todos somos criaturas efêmeras – querendo ou não -, frágeis e vulneráveis ao completo desaparecimento.

Espécies mamalianas não costumam durar mais que um milhão de anos antes de desaparecerem por completo ou serem substituídas por outras melhor adaptadas a um ambiente particular. Isso também vale para outros grupos de vertebrados e muitos invertebrados. Porém, vez por outra, a evolução tira a sorte grande. Um determinado tipo de organismo, sem sofrer extraordinárias modificações morfológicas, pode rasgar o tempo e sobreviver por eras, quase como se a espécie tivesse sido transportada por uma máquina do tempo. Estes são verdadeiros sobreviventes, e o seu tempo no Planeta Terra é contado por dezenas ou até centenas de milhões de anos. São organismos tão respeitáveis, que sobreviveram até mesmo aos golpes mais duros dos piores eventos de extinção em massa. Darwin os nomeou de “fósseis vivos” – oxímoro que também sobreviveu por quase um século e meio até cair em desuso no meio científico.
 
Fóssil de Carangueijo-ferradura e seu repressentante vivente
 
Pegue o exemplo extremo dos estromatólitos – associações microbianas que formam acumulações sedimentares caracteristicamente estratificadas (Veja fotografia). Eles são encontrados em poucos lugares inóspitos do planeta hoje em dia, como Shark Bay na Austrália. Suas estruturas laminadas são virtualmente indistinguíveis daquelas encontradas no registro fóssil por todo mundo, cuja idade pode ter até 3.45 bilhões de anos, quando a vida no planeta ainda era ‘recém-nascida’.
Estromatólitos atuais em Shark Bay, Austrália
Fósseis de Estromatólitos
Outro exemplo bastante impressionante é o do braquiópode Lingula. Braquiópodes são animais marinhos de corpo mole que foram muito abundantes durante o Paleozóico. Eles são compostos por duas valvas ornamentadas (conchas), a semelhança dos moluscos bivalves atuais, porém possuem simetria diferenciada. Lingula, em particular, tem o seu nome devido à semelhança ao formato à língua humana. Apesar de seu desenho ser tão simples e o animal não ter nada de extraordinário, Lingula foi muito bem sucedida e está presente no Planeta Terra há mais de 500 milhões de anos.
Lingula atual e Lingula ordoviciana
Lingula atual
Outros sobreviventes são mais carismáticos, apesar de menos extremos:
Podemos citar o Límulo ou carangueijo-ferradura, que sobreviveu quase inalterado por mais de 450 milhões de anos, ou os celacantos, um grupo de peixes de nadadeiras lobadas, aparentado dos peixes pulmonados, que está no planeta há aproximadamente 400 milhões. – Os próprios peixes-pulmonados permanecem sem grandes mudanças há mais de 220 milhões de anos.

Carangueijo-ferradura (Limulus) atual
Carengueijo-ferradura fóssil
Celacanto atual e fóssil
É fascinante a idéia de mergulhar no tempo profundo e encontrar criaturas que sobreviveram por tão longo período, enquanto galhos inteiros da árvore da vida foram ceifados. Porém é triste observar, que alguns sobreviventes extremos não consigam ultrapassar a barreira da presença humana no planeta. Nós, Homo sapiens sapiens declaramos a grande Sexta Extinção em Massa. – Mais uma vez, após 60 milhões de anos, a taxa de extinção de espécies ultrapassa a taxa evolutiva (“criação” de espécies). A taxa média de extinção extrapola e muito a chamada ‘taxa de extinção de fundo’ e centenas de espécies desaparecem antes mesmo de serem conhecidas pela Ciência.
O Náutilo, um raro cefalópode com concha, único sobrevivente de um ramo muito diverso de organismos que preencheram os mares mesozóicos, está hoje em perigo iminente. O ilustre sobrevivente da extinção cretácica (aquela que pôs fim não só aos dinossauros não-avianos, mas também a outra série de organismos extraordinários, como os grandes grupos de répteis marinhos e pterossauros) pode desaparecer pelas mãos humanas, graças à pesca excessiva, e principalmente a pressão da indústria turística, atraída pelas suas conchas peroladas.
Nautilus
Nautilóide fóssil
 
A vingança dos ‘verdadeiros sobreviventes’ virá, todavia, com muita ironia: O mundo será das baratas, os animais mais prováveis a sobreviverem ao Apocalipse Nuclear ou a qualquer outra catástrofe que possamos imaginar que venha a destruir o nosso reinado primata. Elas estão quase imutáveis, morfologicamente dizendo, há mais de 300 milhões de anos e fornecem um lembrete desgostoso da fragilidade de nossa própria espécie. Onde está a ‘superioridade evolutiva’? Existe ‘superioridade evolutiva’?
Apesar do exemplo desses fortuitos sobreviventes, é importante enfatizar que o fato de possuir uma característica adaptativa bem sucedida não é garantia de sobrevivência na certa. É preciso muita sorte também. A nossa suposta inteligência primata pode ser uma boa arma na competição evolutiva, mas também dependemos da causalidade. Incontáveis vezes na história biológica do Planeta Terra, inovações evolutivas extraordinárias foram silenciadas por eventos catastróficos inesperados. A história biológica, portanto, poderia ter sido completamente diferente e, sob esta perspectiva, somos um verdadeiro milagre.
Da mesma forma, é importante salientar, que a aparente imutabilidade morfológica não significa a ausência do processo evolutivo propriamente dito. A morfologia do animal apenas reflete parte das mudanças ao longo do tempo geológico. A evolução procede majoritariamente de forma invisível aos olhos humanos, dentro das cadeias de moléculas que regem o que é o ser. Apenas algumas alterações tornam-se visíveis, ou macroscópicas, quando expressas fenotipicamente. A maior parte das mutações permanece obscura, na forma de deleções, inserções e trocas mudas no DNA. A aparência do animal pode ser ‘primitiva’, mas ele não deve ser considerado dessa forma. A respeito de tempo, ele esteve constantemente evoluindo, e não parado no tempo. A diferença é o equilíbrio ou constância de seu plano morfológico: se ele funciona muito bem para os seus propósitos, não há porque alterá-lo. A evolução, dessa forma, procede de ‘maneiras misteriosas’, rastreadas com auxílio de estudos genéticos aplicados.
Não há um ápice evolutivo. A evolução não segue um caminho. De acordo com o tabuleiro do jogo, determinados jogadores serão mais bem sucedidos que outros – até que haja uma reviravolta. A evolução sempre tem um ‘porém’. Esses caras aí em cima, até agora têm sido supremos vencedores, lugar no pódium que muito dificilmente macacos com polegares opositores poderão conquistar enquanto tomarem atitudes coletivas tão pouco inteligentes como as quais temos demonstrado em massa nos últimos milênios. A vangloria de nossa própria civilização – o progresso – nos colocou numa ‘barca furada’. Nós já apertamos o gatilho e seremos nossos próprios algozes. Estamos correndo contra o tempo pela nossa própria sobrevivência. Uma grande ironia.

Estromatólitos recentes
Richard Fortey acabou de lançar um livro que discorre exatamente sobre essa temática, chamado ‘Survivors’. Está atualmente disponível somente em inglês e dificilmente será traduzido tão cedo para o português. Richard Fortey ficou famoso no Brasil pelo seu livro “Vida, uma biografia não autorizada”. Seu jeito leve e descontraído de escrever conquistou dezenas de milhares de leitores pelo mundo. Sua literatura é acessível tanto para profissionais das ciências geológicas e biológicas, como os não formalmente introduzidos na área. Vale a pena conferir, já está disponível pela Amazon.com.

Sobre o(a/s) autor(a/es):

Aline é bióloga, especialista em paleontologia de vertebrados e criadora da rede de divulgação científica "Colecionadores de Ossos". Atualmente é professora adjunta de Paleontologia do Departamento de Geologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em Natal, RN.

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