Como os cientistas conseguem reconstituir o passado?

Mesmo com evidências escassas e pistas fragmentadas, paleontólogos conseguem recriar histórias complexas de interação entre seres extintos e povoar mundos perdidos com criaturas de toda sorte e natureza. Como isso é possível?

Afloramentos cretácicos em Sousa, Paraíba, Brasil – Foto por Aline Ghilardi, todos os direitos reservados

Nas mãos de paleontólogos, ossos, mesmo poucos e fragmentados, se tornam poderosas ferramentas e parecem suficientes para esclarecer relações biológicas intrincadas e até mesmo recriar o retrato esquecido de criaturas há muito desaparecidas.

Ao passar os olhos por um afloramento fossilífero, um paleontólogo pode saber exatamente em que período de tempo geológico ele se encontra e – para o espanto de muitos – em que exato tipo de ambiente aquele registro se formou.

Como o passado pode ser tão claro para estes cientistas?

Em tempos modernos, os paleontólogos trouxeram não só o passado, mas muitas de suas criaturas de volta a vida e não foi por meio de uma máquina do tempo sensu strictu, mas através do bom e velho método científico alimentado por uma boa dose de questionamento intelectual.

Para falar a verdade, é como se essas simples ferramentas da ciência fossem verdadeiras máquinas do temposensu lato, desta vez -, permitindo-nos espiar mundos antigos e examinar criaturas cuja existência foi negada. Temos que concordar que são maquinas do tempo muito pouco usuais....

Para viajar ao passado utilizamos teorias, computadores, complexos equipamentos de laboratório e até mesmo experimentos. Porém, mais comumente são utilizadas somente as rochas. As rochas que procuramos são bem específicas. Elas são estratificadas e conhecidas como ‘rochas sedimentares’. Este é o tipo de rocha que contém fósseis e são elas e os fósseis que nos ajudam a explorar o tempo profundo.

As rochas sedimentares contém a melhor informação que temos para estudar o passado. Mas como podemos acessar essa informação?

Qualquer afloramento de rochas sedimentares contendo fósseis apresenta pistas sobre a sua idade e o local de origem do material, que pode ser bem diferente do local aonde as rochas hoje se encontram. – Temos que lembrar, que a superfície do planeta não é estática, mas incansável.

Serra da Capivara – Rochas sedimentares, estratos através dos tempos – Foto por Aline Ghilardi, todo os direitos reservados

Rochas contém pistas sobre a natureza do ambiente aonde elas foram formadas. Algumas das características úteis nesta investigação são o tamanho ou a organização de seus grãos e ainda a qualidade dos mesmos. 

Após serem torturadas, as rochas contam quase tudo! 

É possível descobrir se os materias de que são compostas litificaram (se tornaram rocha) no continente ou em mares rasos, em um clima quente ou frio, seco ou úmido, pobre em oxigênio ou não, entre outras tantas outras variáveis ambientais.

É um ótimo começo, porém nenhuma intervenção científica por si só extrai toda a informação. Muitas ferramentas e técnicas devem ser combinadas. Por isso, “ler” os fósseis também é importante. Eles oferecem informações complementares. O passado é uma rede complexa de interações e temos que estudá-lo em todas as suas dimensões.

Fóssil de peixe, Bacia do Araripe, Fm. Santana, Nova Olinda, Ceará, Brasil – Foto por Aline Ghilardi, todos os direitoss reservados

As rochas informam sobre o ambiente, assim como também os fósseis. O elenco biológico está intimamente ligado ao seu entorno, não é mesmo? Fósseis de peixes, por exemplo, só podem indicar um ambiente aquático.

Os fósseis também ajudam a dar uma resolução temporal, ou seja, eles calibram a máquina do tempo. Determinados organismos funcionam como fósseis guia e indicam períodos específicos do tempo geológico.

Os amonites (cefalópodes com concha, cujo primo ainda vivente é o Nautilus), por exemplo, são indicadores da Era Mesozóica (250 a 65 milhões de anos atrás), período bastante extenso de tempo. Já alguns microfósseis (fósseis de microorganismos), costumam ser indicadores muito mais acurados: Pelo fato de sua taxa evolutiva ser alta, diferentes espécies ou associações de espécies estão representadas em períodos mais restritos de tempo.

Avaliar o passado sob diferentes perspectivas – utilizando diferentes ferramentas -, pode gerar, no entanto, ambiguidades. Isso é comum quando se adicionam muitas variáveis a uma equação…

Veja bem, o passado não existe mais, é apenas uma memória, certo?

Duas pessoas que tenham presenciado o mesmo evento podem guardar lembraças diferentes do que ocorreu. A interpretação do registro fóssil pode ser exatamente assim. Diferentes testemunhas ou diferentes “máquinas do tempo” frequentemente fornecem diferentes perspectivas do acontecido.

Usualmente existem multiplas versões de uma mesma história. Decidir qual representa a verdade pode ser difícil. Mesmo assim, a ambiguidade acaba sendo um aspecto positivo. As pessoas discutem, os argumentos são resolvidos e normalmente o resultado é o progresso científico. A ambiguidade pode ser aceitável quando se investiga o tempo profundo. Afinal, o único material que temos para trabalhar é uma pequena amostragem do todo. Vamos concordar que isso  aumenta a diversão de se empenhar neste tipo de ciência: sempre haverá uma descoberta nova e maravilhosa que vai mudar o rumo do que se conhecia até então.

Nenhuma ‘máquina do tempo’ consegue recriar inteiramente o passado. Cada uma é como uma pincelada ou uma única cor de um quadro complexo. Por si só, carregam muito pouco significado, mas quando combinadas, montam um quadro compreensível daquilo que passou.

O paleobotânico, o paleozoólogo, o palemicrobiologista, o geoquímico, o tafonomista etc., combinam as suas artes para ajudar a espiar um singelo quadro do que teriam sido complexos e maravilhosos ecossistemas enterrados no passado distante. Cada um utiliza a sua ‘máquina do tempo’ – sejam equipamentos complexos ou o humilde e poderoso  ‘poder preditivo da rocha’ – e oferecem assim as suas interpretações mais precisas. O final pode ser sim uma obra de arte…

Painel de Raul Martin ilustrando o Eoceno de Messel, na Alemanha.

Como isso tudo é traduzido para o público? Aí precisamos de outros profissionais, os paleoartistas, mas isso é outra história. Se tiver interesse, continue lendo AQUI.

Sobre o(a/s) autor(a/es):

Aline é bióloga, especialista em paleontologia de vertebrados e criadora da rede de divulgação científica "Colecionadores de Ossos". Atualmente é professora adjunta de Paleontologia do Departamento de Geologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em Natal, RN.

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