Jurassic World, seus monstros e o conceito de espécie

Nossa querida colega Lucy Souza inicia a sua participação aqui no blog com uma discussão biológica que vai dar um nó na cabeça de muita gente! Entenda porque mesmo que os dinos de ‘Jurassic Park’ e ‘Jurassic World’ tivessem seu DNA 100% puro, eles ainda não seriam dinossauros.

Só para os fortes!

JURASSIC WORLD E SEUS MONSTROS DINOSSAURIANOS

Por Lucy Souza (Museu Nacional/UFRJ)

É inegável o sucesso gerado pelo livro ‘Jurassic Park’ e todos os filmes subsequentes baseados nessa obra. Afinal, quem não se admira e espanta quando monstros tão formidáveis e tão familiares aos dinossauros, saem por ai devorando pessoas e destruindo coisas? Pois é, note que não os chamei de Dinossauros.

19th_century_science_ruined_dinosaurs_by_osmatar-d81jxfcRecentemente no filme ‘Jurassic World’ os autores fizeram questão de ressaltar que os animais que eles criavam não eram dinossauros e sim monstros modificados geneticamente, baseados em moléculas de DNA “fossilizadas” de Dinossauros. Uma ótima justificativa para os inúmeros erros anatômicos demonstrados pelos monstrinhos ao longo dos quatro filmes produzidos e do próprio livro, e não estou falando apenas das polêmicas penas!

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No entanto, um embate ainda existe, mesmo após tal justificativa. Se tais animais geneticamente construídos pelo homem não são dinossauros, por que eles receberam nomes de espécies fósseis formalmente reconhecidas pela ciência? Por que não os nomearam com nomes inéditos e “assustadores” como o “Indominus rex”? A resposta se deve ao PODER da divulgação e atração gerada por nomes como: Tyrannosarus rex, Velociraptor, Triceratops… e tantos outros.

da2N498lMas vamos lá, abriremos espaço para uma perspicaz discussão usando tal introdução. Vamos começar fazendo duas suposições: 1) que o DNA desses animais tenha sido reconstruído com sucesso, ou seja, mesmo utilizando partes de DNA de outros animais, suponhamos que os cientistas da InGen conseguiram recriar tais animais com uma incrível veracidade biológica, portando as mesmas seqüências de DNA nos respectivos  dinossauros; e/ou, 2) que os elementos ósseos desses animais sejam idênticos aos encontrados pelos paleontólogos ao longo desses séculos de escavações e pesquisas, ou seja, idêntico aos espécimes referidos as espécies citadas no filme.

Baseando em tais pressupostos, vamos discutir como verdadeiros sistematas qual a melhor forma de nomear os animais da franquia Jurassic Park/World com base nos nossos conhecimentos científicos acerca dos conceitos de espécie (sim no plural, sim são muitos!). Vamos deixar de lado o fato de serem animais híbridos e artificiais e nos atermos apenas ao fato de serem ou não dinossauros. Além disso, deixemos as discussões sobre as vantagens e desvantagens entre os diferentes conceitos de espécies para outro momento.

oofqbwTodo biólogo que queira nomear, descrever ou até mesmo trabalhar direta ou indiretamente com uma espécie deveria ler e se inteirar das informações contidas no Código Internacional de Nomenclatura Zoológica (ICZN). Tal código busca regulamentar e padronizar o processo de nomeação, sinonímia e qualquer outro assunto pertinente a nomenclatura zoológica.

A forma mais comum de se identificar e designar um individuo a uma espécie, seja ela nova ou não, é analisando suas características morfológicas (Nelson & Platnick, 1981; Cracraft, 1983; Nixon & Wheeler, 1990; Grismer, 1999, 2001), sejam essas externas ou internas ao corpo do animal, principalmente características tidas como únicas aos espécimes de uma determinada espécie (autapomorfia). De tal forma, quando uma hipótese de espécie é proposta, uma diagnose é feita e um holótipo eleito, portando o nome e as referidas características e possibilitando que outros espécimes possam ser incluídos na mesma hipótese de espécies. Sendo assim, valendo-se do pressuposto 2, que comentamos anteriormente, não seria incorreto designar as formas apresentadas nos filmes/livros como sendo dinossauros e receber os mesmos nomes que suas formas fósseis. Pois tais critérios visam apenas nossa capacidade de diferenciar espécimes e os agrupa-los em conjuntos ideologicamente não-naturais que chamamos de espécies.

1374644032_tumblr_lxarxioCe31ql8i93o1_500-1434065053Ao se assumir o pressuposto 1, em que os cientistas da franquia ‘Jurassic Park’ conseguiram recriar a mesma seqüência gênica dos extintos dinossauros, nos permitiriam categorizar tais animais como Dinossauros. Essa categorização seria baseada em propostas acerca do compartilhamento de características moleculares (e.g. DNA, RNA; Baum & Shaw, 1995; Avise & Ball, 1990), propostas essas que sustentaram a origem do Barcode, a categorização dos seres vivos por meio de uma seqüência molecular compartilhada por todos os seres vivos, mas suficientemente variável para categorizá-las (Hebert et al., 2003). No entanto, vale ressaltar que se assumindo o pressuposto 1, estaríamos inferindo a priori que o DNA produzido seria idêntico ao dos dinossauros, coisa que muito dificilmente será comprovado.

Baseando-se puramente nas diagnoses criadas pelos conceitos de espécies discutidos acima e assumindo os pressupostos 1 e/ou 2 podemos sim chamar as criaturas da franquia ‘Jurassic Park’ de Dinossauros e, portanto, incluí-los nas espécies já existentes. De Queiroz (2007) argumenta sobre o conceito unificado de espécie, que seria o fator em comum apresentado por todos os conceitos até então propostos, e, segundo ele, o fator em comum entre todas elas seria a existência de uma linhagem comum independente. Sendo assim, todos os outros “detalhes” contidos nos conceitos prévios seriam formas de se delimitar as espécies, ressaltando que quanto mais “testes” a espécie “passar” mais bem suportada ela será.

984Com as proposições de De Queiroz (2007) em mente, seriamos capazes de realizar diversos “testes” delimitantes nos indivíduos criados na história, e se os pressupostos 1 e 2 forem validos, estaríamos corretos em propor que tais seres sejam de fato dinossauros. No entanto, o próprio autor reconhece que para se estabelecer uma linhagem evolutiva independente o isolamento geográfico seria uma força poderosa e de fácil detecção. Então, o que dizer da barreira criada pelo tempo? Se os animais criados forem de fato dinossauros teríamos o maior “Táxon Lázaro” (táxons que “desapareceram” e subsequentemente reaparecem em períodos geológicos mais recentes) já descrito. Baseando-se nas proposições de De Queiroz (2007) poderíamos dizer, ao reconhecermos que tais animais sejam dinossauros, que eles não deveriam pertencer as espécies já descritas e sim a um novo conjunto de espécies, simplesmente pelo fato de representarem uma nova linhagem evolutiva completamente independente de seus extintos “ancestrais”.

Outra linha de pensamento acerca dos conceitos de espécie foi proposta por Fitzhugh (2006), onde, no desígnio de uma espécie, não estamos simplesmente agrupando indivíduos e sim referenciando um nome a uma hipótese explanatória acerca da origem e fixação de determinadas características presentes em um grupo de espécimes de uma determinada população. Com base nisso, as teorias e demais evidências que nos levam a nomear um grupo de indivíduos fósseis numa determinada espécie de dinossauro são de imediato diferente das teorias e demais evidências que possibilitaram a origem e fixação dessas características, mesmo que idênticas. Portanto, apesar de “idênticas”, se os pressupostos 1 e 2 forem acatados, os caracteres diagnósticos compartilhados por elas seriam um caso de homoplasia (quando você precisa de uma hipótese ad hoc para explicar a origem e fixação de uma determinada característica) e portanto não seriam dinossauros de fato.

Como podem ver, além da polêmica discussão sobre ser ou não ser um dinossauro, na ciência temos uma frutífera e produtiva discussão sobre conceitos e metodologias para a designação mais “natural” de o que seria uma espécie e como seria possível identifica-la.

Ainda nesse assunto poderíamos levantar uma interessante questão, tão polêmica ou mais, que é o fato de uma vida ter sido criada artificialmente (criada por influência humana; “não natural”) deve ser tratada como um ser vivo? Merece um sistema de classificação próprio, ou deve ser incluída junto aos demais animais/plantas? O que é vida e quando ela deixa de ser natural?

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Mas deixemos essas perguntas para uma futura discussão!

Grande abraço a todos e ótimas pesquisas!

Lucy Gomes de Souza é graduada em licenciatura e bacharelado pela Universidade Federal de Uberlândia e tem mestrado em Zoologia pelo Museu Nacional/UFRJ. Desenvolve pesquisas na área de sistemática e paleontologia, principalmente com crocodilianos fósseis e aspectos filosóficos da sistemática.

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Referências:

Avise, J. C., and R. M. Ball, Jr. 1990. Principles of genealogical concordance in species concepts and biological taxonomy. Oxf. Surv. Evol. Biol. 7:45–67.

Baum, D. A., and K. L. Shaw. 1995. Genealogical perspectives on the species problem. Pages 289–303 in Experimental and molecular approaches to plant biosystematics (P. C. Hoch, and A. G. Stephenson, eds.). Missouri Botanical Garden, St. Louis.

Cracraft, J. 1983. Species concepts and speciation analysis. Curr. Ornithol. 1:159–187.

De Queiroz, K. 2007. Species Concepts and Species Delimitation. Systematic Biology, 56(6): 879-886.

Fitzhugh, K. 2006. The philosophical basis of character coding for the inference of phylogenetic hypotheses. Zoologica Scripta, 35: 261-286.

Grismer, L. L. 1999. An evolutionary classification of reptiles on islands in the Gulf of California, Mexico. Herpetologica 55:446–469.

Grismer, L. L. 2001. An evolutionary classification and checklist of amphibians and reptiles on the Pacific islands of Baja California, Mexico. Bull. South. Calif. Acad. Sci. 100:12–23.

Hebert, P.D.N., Cywinska, A., Ball, S.L., deWaard, J.R., 2003. Biological identifications through DNA barcodes. Proc. R. Soc. Lond. Ser. B 270, 313–321.

ICZN: http://iczn.org/code.

Nelson, G., and N. I. Platnick. 1981. Systematics and biogeography. Columbia University Press, New York.

Nixon, K. C., and Q. D. Wheeler. 1990. An amplification of the phylogenetic species concept. Cladistics 6:211–223.

Sobre o(a/s) autor(a/es):

Aline é bióloga, especialista em paleontologia de vertebrados e criadora da rede de divulgação científica "Colecionadores de Ossos". Atualmente é professora adjunta de Paleontologia do Departamento de Geologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em Natal, RN.

6 comentários em “Jurassic World, seus monstros e o conceito de espécie”

  1. Então...se "ressuscitássemos" um mamute, ele não seria um mamute, e sim um "Mamootte"? E um neandertal seria um "Homo Sapiens sapiens neanderthalensis edition"?
    E se o caso fosse clonagem, pura e simplesmente? A ancestralidade e linhagem não seria a mesma do clone? Ainda assim seria uma nova espécie?

  2. Surgiu outras dúvidas
    Um viajante do tempo hipotético jamais poderia capturar um Tyrannosarus rex, dado que no momento q retornasse seria um Tyrannosarus rex modernus?
    Outra dúvida...Se o isolamento geográfico pode definir uma nova espécie, a partir de quantas gerações um grupo de micos estrelas contrabandeados do nordeste brasileiro para Madagascar deixariam de ser micos estrelas nordestinos e passariam a ser de uma espécie nova, residente em Madagascar?
    Ps.: a segunda parece ser a grande questão da imigração...a partir de quando um grupo de indivíduos que imigra para outro país deixa de ser imigrante e passa a ser "nativo"... "jus soli" ou "jus sanguinis"? Cinicamente, a resposta seria a partir de quando começam a pagar impostos como os nativos...Por analogia, uma espécime seria outra a partir do momento em que não apenas influencia como é influenciada pelo meio q habita (ou seja, é parte da cadeia alimentar do local, como presa e predadora, e alterações no meio influenciam a população do local..._)?

  3. Olá André, obrigado pelas perguntas!
    Vamos ver se consigo respondê-las de forma satisfatória!
    Mas antes de explanar suas duvidas, por favor, note que apresentei quatro metodologias (conceitos) para designação de espécies diferentes. Portanto, cada pergunta feita por você teria no mínimo quatro respostas satisfatórias que apenas o autor de tal argumento poderia escolher.
    Para uma restrição forçada da discussão me aterei apenas aos quatro conceitos de espécies comentados na postagem: 1) autapomorfia morfológica; 2) autapomorfia molecular; 3) linhagem evolutiva independente; e, 4) espécie como uma hipótese explanatória.
    Uma questão interessante é que nem mesmo os próprios conceitos são mutuamente exclusivos e/ou independentes! As formas mais básicas de se identificar e descrever um objeto (no caso um indivíduo de uma espécie específica) seria ressaltando as características exclusivas de tal objeto (aquilo que chamamos de autapomorfia). Portanto, as formas mais “básicas” de se identificar indivíduos de espécies distintas seria elaborando uma “diagnose” com tais autapomorfias, valendo-se das metodologias/conceitos 1 e 2.
    No entanto, quando lidamos com os conceitos 3 e 4 nós necessariamente temos de recorrer as metodologias aplicadas nos conceitos 1 e 2. Ou seja, para se designar se uma metapopulação está evoluindo independentemente de seus correlatos (conceito 3), precisamos nos valer de evidências coletadas pelos métodos 1, 2 e outros mais (De Queiroz, 2007 denomina tais procedimentos como delimitação de espécies). Sendo assim, se uma população apresenta, por exemplo, características morfológicas e/ou moleculares distintas de seus correlatos isso se trataria de uma evidência ao processo de especiação dessa metapopulação. Portanto, sua afirmação “Por analogia, uma espécime seria outra a partir do momento em que não apenas influencia como é influenciada pelo meio q habita (ou seja, é parte da cadeia alimentar do local, como presa e predadora, e alterações no meio influenciam a população do local…_)” estaria completamente correta e condizente com as proposições feitas por De Queiroz (2007).
    De forma similar, quando consideramos espécies como uma hipótese explanatória para origem/fixação de determinadas características e sua subseqüente segregação dos ramos tokogenéticos mais relacionados (conceito 4, veja também Fitzhugh, 2009), necessariamente precisamos nos valer de todas evidências disponíveis que sejam significante para tal hipótese (seja tais evidências favoráveis ou não – Requerimento da Evidência Total). Desta forma deveríamos nos valer tanto das metodologias usadas em 1 quanto em 2 (uma pequena ressalva as análises filogenéticas baseadas em dados moleculares necessita de modificações em seus preceitos filosóficos e metodológicos, portanto até que isso ocorra seus resultados são bastante dúbios - podemos discutir mas sobre isso posteriormente). No entanto, este método se diferencia dos demais, apesar de valer de suas metodologias, no momento em que as explicações causais de tais caracteres são diferentes e, portanto, justificaria a criação de espécies distintas. Para exemplificar, quando os caracteres correspondentes a hipótese de espécie Mamute se originaram e se fixaram, parte dessa explicação causal se valerá de suas relações tokogenéticas. No entanto, quando ressuscitamos um mamute, apesar dele apresentar as mesmas características observadas nos indivíduos representados pela espécie Mamute original, tais características foram originadas e fixadas de uma maneira completamente distinta, sendo necessário a criação de uma nova hipótese para explica-la e, portanto, a designação de uma nova espécie (o mesmo vale para qualquer espécie extinta que seja ressuscitada).
    Agora vou explanar suas perguntas que ainda não respondi:
    “E se o caso fosse clonagem, pura e simplesmente? A ancestralidade e linhagem não seria a mesma do clone? Ainda assim seria uma nova espécie?”
    => baseando-se nos conceitos e 1 e 2 o clone evidentemente pertenceria a mesma espécie. Se tratando do conceito 2, se o clone for mantido na população de origem (ou seja, não havendo quebra de sua “linhagem evolutiva”) ele se manteria a mesma espécie de seu originador. Com relação ao conceito 4, prefiro discutir em uma postagem futura, pois na natureza existem animais assexuados, partenogenéticos e afins que criam clones de si mesmos, e justamente tal capacidade vem sendo um terror para os biólogos e seus conceitos de espécie. Todavia, Fitzhugh (2009) apresenta uma discussão/ “solução” para tal discussão.
    “Um viajante do tempo hipotético jamais poderia capturar um Tyrannosarus rex, dado que no momento q retornasse seria um Tyrannosarus rex modernus?
    Outra dúvida…Se o isolamento geográfico pode definir uma nova espécie, a partir de quantas gerações um grupo de micos estrelas contrabandeados do nordeste brasileiro para Madagascar deixariam de ser micos estrelas nordestinos e passariam a ser de uma espécie nova, residente em Madagascar?”
    => O T-rex “abduzido” seria um T-rex até o fim de sua vida independente do conceito de espécie aqui discutido. Note que, o isolamento geográfico não é uma evidência definitiva de quebra de linhagem evolutiva ou tokogenia e sim uma forte evidência favorável a tal separação! Como você bem disse anteriormente o isolamento geográfico criaria eventos de seleção natural distintos para os indivíduos dessa espécie e tal seleção diferenciada poderia favorecer o surgimento de características morfológicas ou moleculares, por exemplo, que indicariam tal quebra e, portanto, justificaria a criação de uma nova espécie (argumento baseado no conceito 3!).
    Bom, novamente agradeço pela leitura e pelas duvidas!
    Espero ter conseguido responder suas perguntas!
    Abraços

  4. Sobre a pergunta sobre: "se um ser vivo criado artificialmente, ainda seria um ser vivo?" Sim, ele continuaria porque o couve-flor, o canis familiaris e entre outros seres vivos, foram criados artificialmente (por meio sa seleção artificial) e são considerados seres vivos. Mas eu acho que eles não seriam espécies, já que as raças de cão foram criadas artificialmente, mas não espécies.

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