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Um grande golfinho predador e a evolução dos cetáceos modernos

Golfinhos e baleias atuais, junto com os peixes-boi e dugongos (Sirênios), são mamíferos completamente adaptados ao ambiente aquático. Suas atividades como alimentação, locomoção, descanso e reprodução dependem inteiramente desse ambiente. Eles não precisam, por exemplo, retornar à terra para executarem essas ações, diferentemente do que ocorre em outros grupos de mamíferos aquáticos, como leões marinhos, focas ou lontras. Mas você já pensou em como esse processo aconteceu?

A origem dos primeiros cetáceos (grupo que inclui golfinhos e baleias) se deu a partir de animais completamente terrestres. Formas extintas aparentadas aos artiodáctilos (grande grupo que inclui cabras, bois, camelos, hipopótamos, etc.) começaram essa jornada há cerca de 50 milhões de anos atrás. Eles se adaptaram, com o passar do tempo, às diversas peculiaridades do ambiente aquático, como a maior viscosidade, densidade, empuxo e pressão hidrostática. Entre as principais adaptações desenvolvidas pelos cetáceos, modificações anatômicas associadas à natação foram algumas das mais fundamentais para sua sobrevivência nesse “novo” ambiente.

Indohyus major, um animal extinto do Eoceno, terrestre e herbívoro, relacionado aos primeiros cetáceos. Arte de Nobu Tamura CC BY 3.0.

Nos cetáceos modernos, diversas características anatômicas e comportamentais permitem manobras na água e facilitam o deslocamento desses animais nos oceano, mares e rios. A evolução de algumas características pode ser rastreada nos fósseis. Porém, há uma falta considerável de informações sobre uma parte delas. Uma relação ainda pouco compreendida, por exemplo, é como se deu a divergência entre os golfinhos (odontocetos) e as baleias (misticetos).

Cynthiacetus (esquerda), um cetáceo completamente aquático, e Ambulocetus natans, uma forma semi-aquática de cetáceo do Eoceno. Foto de Jean-Pierre Dalbéra.
Cynthiacetus (esquerda), um cetáceo extinto completamente aquático do fim do Eoceno, e Ambulocetus natans, uma forma semi-aquática de cetáceo do início do Eoceno. Foto de Jean-Pierre Dalbéra, CC BY 2.0.

Abundantes esqueletos de cetáceos do Eoceno ilustram a transição da vida semiaquática para a completamente aquática, incluindo o desenvolvimento de um corpo alongado, cilíndrico e com extremidades afiladas (corpo fusiforme). Fósseis do Eoceno também demonstram o gradual processo de redução das patas traseiras e a migração das narinas em direção ao topo da cabeça. Entretanto, há uma raridade excepcional de esqueletos de cetáceos em rochas do Oligoceno, o período geológico seguinte ao Eoceno, e isso tem dificultado muito os esforços para compreender a evolução da força de natação dos cetáceos. No Eoceno, a natação ainda era controlada parcialmente pelas patas traseiras, mas com o tempo ela passa a ser exercida exclusivamente pela cauda robusta.

Em 2020 o pesquisador Robert W. Boessenecker, junto com outros colegas, publicaram a descrição de uma nova espécie de um raro golfinho fóssil de grande porte, encontrado em estratos do Oligoceno do sul da Califórnia (E.U.A). Materiais deste animal já eram conhecidos desde o século 19, mas eram muito fragmentados, o que impedia que pesquisadores conhecessem melhor a espécie. Boessenecker e colegas descobriram, na década de 1990, um espécime surpreendentemente bem preservado, ainda que parcial, que permitiu não só batizarem adequadamente o animal (Ankylorhiza tiedemani), como também estudarem a evolução de algumas características transicionais pouco conhecidas dos cetáceos.

Ankylorhiza tiedemani possuía diversas características compartilhadas entre as baleias e golfinhos, o que deu aos cientistas pistas preciosas sobre a evolução destes grupos. O tamanho e outras características do corpo animal indicam que ele era um predador ativo, de natação rápida, que dominou as águas do seu tempo, ocupando um nicho semelhante aos das grandes orcas atuais.

Esqueleto de Ankylorhiza tiedemani (BOESSENECKER et al., 2020).

O primeiro material descrito para essa espécie foi um crânio muito incompleto recuperado por volta de 1880, que, na época, foi atribuído ao gênero Squalodon. Com a descoberta do esqueleto mais completo, descrito por Boessenecker e colegas em 2020, novas análises foram feitas e descobriu-se que, na verdade, o material pertencia a um novo gênero, batizado de Ankylorhiza. A. tiedemani é considerado, até o momento, o maior Odontoceto do Oligoceno, com aproximadamente 4,8m de comprimento, tamanho não superado até o Mioceno, quando aparecem no registro fossilífero os primeiros grandes cachalotes.

A. tiedemani possui o crânio e mandíbula robustos, com uma dentição simplificada quando comparada com os basilossaurídeos, grupo de cetáceos mais antigos, que tinham os dentes cheios de cristas e pequenas pontas acessórias. As características dentárias de A. tiedemani indicavam que ele se tratava de um caçador com elevada força de mordida, semelhante às encontradas nos primeiros cachalotes. Seus dentes da parte frontal são um mistério, pois possuem um ângulo estranho de inserção no crânio. Eles apontam para frente, o que indica que podem ter sido utilizados para competição entre indivíduos do mesmo sexo, como fazem as baleias-bicudas atuais, ou empregados na captura e abate de presas.

Baleia-bicuda (Ziphius cavirostris). Nos machos adultos podem ver-se dois dentes na ponta do maxilar inferior que estão orientados para a frente. Foto de Eveha CC BY 3.0.

As nadadeiras peitorais de A. tiedemani possuem várias características derivadas, incluindo ossos longos (úmero, rádio e ulna) mais curtos quando comparados com os basilossaurídeos, porém, mais alongados quando comparados com os Odontocetos atuais. Suas nadadeiras e coluna vertebral também possuem características intermediárias, a maioria mais próxima de outros odontocetos basais, mas com algumas correlações com os misticetos. Isso coloca a espécie próxima à base da árvore evolutiva dos odontocetos. 

Relações filogenéticas de Ankylorhiza tiedemani (BOESSENECKER et al., 2020).

A mobilidade de A. tiedemani seria semelhante à das falsas-orcas e orcas atuais, indicando uma natação reforçada, mais poderosa do que a dos basilossaurídeos (formas mais basais) de porte semelhante. Isso sugere que a espécie tinha velocidade suficiente para perseguir outros cetáceos, sirênios, tartarugas, aves marinhas, tubarões e outros peixes contemporâneos, incluindo esses organismos em sua dieta potencial.

A. tiedemani, finalmente, trouxe um pouco de luz sobre como diversas adaptações convergentes estavam presentes em odontocetos e misticetos basais, principalmente no que diz respeito a sua mobilidade. Futuras descobertas de espécimes mais completos ou ainda de novas espécies provenientes dos mesmos estratos geológicos podem ser chave na compreensão da evolução de mais aspectos da locomoção dos cetáceos modernos. Essas descobertas também podem auxiliar na elucidação de mais detalhes sobre como se deu a divergência entre baleias e golfinhos, um evento evolutivo fascinante e ainda pouco compreendido, que se deu nos mares do final do Eoceno e do início do Oligoceno.

Referência:

BOESSENECKER, Robert W. et al. Convergent evolution of swimming adaptations in modern whales revealed by a large macrophagous dolphin from the Oligocene of South Carolina. Current Biology, v. 30, n. 16, p. 3267-3273. e2, 2020.

Você conhece a Geomitologia?

Olá caros colecionadores! Hoje trago o texto do aluno Rodrigo Lima Veloso que cursa especialização em Geologia do Quaternário pelo Museu Nacional/UFRJ. Neste texto Rodrigo explica o que é Geomitologia e traz alguns exemplos de como essa ciência nos ajudou a compreender melhor os povos pretéritos.


Desde pequenos nós nos encantamos com histórias fantásticas de mitos e heróis, sejam da antiguidade ou de heróis de histórias atuais como nos livros de Harry Potter e Percy Jackson, que geralmente se baseiam em antigas lendas. Mas você já parou para pensar de onde vêm essas histórias?
Geomitologia foi o termo empregado pela primeira vez em 1968 pela geóloga Dorothy Vitaliano (Figura 1) como sendo o estudo que tentava evidenciar algum tipo de relação entre os eventos geológicos e a mitologia. Esse estudo nos últimos anos tem servido como base para se especular e procurar entender o tipo de relação que os humanos da antiguidade tinham com o ambiente ao seu redor e como o compreendiam.

Vitaliano
Figura 1: Foto de Dorothy Vitaliano. Fonte: Google Imagens.

Dentro das áreas de estudo da geomitologia os fósseis são uma das principais evidências de como esses mitos podem ser mais bem contextualizados à época e compreendidos de forma mais completa por nós atualmente. Muitos são os exemplos destes vestígios orgânicos sendo coletados e interpretados durante toda a história da humanidade. Em seu livro “The First Fossil Hunters” (Figura 2), Adrianne Mayor relata diversas histórias que poderiam mostrar a interação seres humanos com fósseis, sendo alguma delas datadas desde o Egito Antigo até o Império Romano. Acredita-se que a relação desses povos com os fósseis seja muito maior do que imaginávamos.
Mayor tem como foco de seu trabalho mostrar que as relações e a compreensão de alguns conceitos naturais que hoje compreendemos nem sempre foram tão deixados de lados pelos antigos povos que viveram a milhares de anos atrás como seria de se imaginar. Algumas ideias como a de extinção de espécies ou como a de Delos, que propôs a existência de um ciclo natural contínuo de quase imperceptíveis transgressões marinhas e formações de áreas terrestres, são surpreendentemente acuradas em relação ao que sabemos hoje e que sempre fomos levados a acreditar que eram entendimentos “modernos”.
De acordo com Horner e Dobb (1997 apud Mayor, 2000), as populações antigas tinham uma percepção maior do ambiente que as rodeava, e que a interação entre o fato e a imaginação é a chave para a verdadeira compreensão da mitologia que conhecemos hoje. Os antigos gregos e romanos, por exemplo, acreditavam que todas as espécies estavam encolhendo porque eles encontravam ossos gigantes que não condiziam com o tamanho de nenhum animal que lhes fosse conhecido.

Figura 2: Capa de “The First Fossil Hunters” de Adrienne Mayor, mostrando o que parece ser um crânio fóssil representado em uma pintura de um vaso.
Figura 2: Capa de “The First Fossil Hunters” de Adrienne Mayor, mostrando o que parece ser um crânio fóssil representado em uma pintura de um vaso.

A ideia de animais gigantes que haviam sido extintos de alguma maneira também eram comuns, histórias como a das “Neades” que falavam sobre monstros enormes que tinham habitado a região de Samos na Grécia e que haviam sido engolidos pela Terra sem deixar nenhum vestígio para trás. A ilha de Samos na Grécia é um local onde ocorreram muitos terremotos e até hoje são encontrados fósseis como o do Samotherium por exemplo. Com isso fica fácil compreender de onde vêm as ideias contrárias ao fixismo e mais do que isso, coincidentemente ou não, chegam perto dos processos tafomômicos pelos quais esses fósseis passaram. Quando relacionadas, às informações a que temos acesso hoje e as lendas nos mostram que o poder de observação que indivíduos tinham do mundo era muito grande
Porém, em alguns casos, os fósseis influenciaram na descrição de animais com os quais eles acreditavam coabitar a Terra. Atualmente, o caso mais famoso é o dos grifos (Figura 3), esses animais, diferente do que já citamos, não eram considerados animais míticos que haviam existido apenas em tempos pretéritos, eram considerados animais reais que coexistiam com os humanos. A história dos grifos começa no deserto de Gobi, na Mongólia e China, onde mercadores e mineiros citas passavam durante suas caravanas de comércio, e de onde prospectavam ouro. Esses nômades contavam histórias sobre um animal terrivelmente territorialista e protetor com seus ninhos, e que portanto atacava sem piedade quem quer que se aproximasse do ouro, que de acordo com os nômades era encontrado em ninhos de grifos. Acredita-se que esses mineiros haviam se deparado com fósseis que são extremamente comuns no Deserto de Gobi, os fósseis de Protoceratops (Figura 3) que são expostos naturalmente no deserto e muitas vezes associados ao ouro. Esses homens então começaram a espalhar as histórias sobre essa criatura com a intenção de proteger o ouro que era encontrado no lugar afugentando pessoas que conhecessem a história dos grifos, mas o curioso, é que diversos autores da antiguidade descreviam inúmeras características desses animais, não se questionava a sua existência ou não, eles realmente acreditavam que eles existissem.

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Figura 3: Na parte superior representado um esqueleto de um indivíduo do gênero Protoceratops, na parte inferior uma representação de um grifo segundo os padrões dos romanos (Lorena Pontes Lima).

Um caso em particular da mitologia egípcia também pode ser usado para ilustrar a importância de se buscar a compreensão do que pode estar por trás dos mitos. Grande parte do panteão das divindades egípcias é representado por seres antropozoomórficos, ou seja, eram parte humanos e parte animais. Não coincidentemente, os animais com os quais essas divindades dividiam as suas características eram todos animais comumente encontrados na região e que tinham alguma relação com o que o deus em questão representava. Como por exemplo, Sobek era a personificação do rio Nilo e era representado por um homem com cabeça de crocodilo. Porém, um dos deuses sempre deixou os pesquisadores intrigados, também conhecidos por sua antropozoomorfia característica, o deus Set nunca se assemelhou a nenhum animal vivente da região do Egito. Essa representação pode ser explicada com bases paleontológicas, visto que crânios de girafídeos são encontrados nas áreas fossilíferas egípcias, e o crânio desses animais assemelha-se às representações da cabeça de Set que os egípcios faziam (Figura 4). Set no panteão egípcio era considerado a personificação do deserto, das tempestades e da violência, e comumente fósseis são expostos nos desertos justamente após grandes tempestades, fazendo com que a associação entre ambos seja mais crível.

Figura 4: A esquerda a representação de Set de acordo com os antigos egípcios e à direita o desenho de um crânio de um espécime de girafídeo (Lorena Pontes Lima).
Figura 4: A esquerda a representação de Set de acordo com os antigos egípcios e à direita o desenho de um crânio de um espécime de girafídeo (Lorena Pontes Lima).

Todos esses são pequenos exemplos de como a nossa história é influenciada por pequenos detalhes que quando mal interpretados nos levam a crer que o estudo e interpretação da paleontologia são relativamente recentes, quando na verdade, eles vêm sendo interpretados das mais diversas formas. De acordo com Oakley (1971 apud Fernandes, 2005), os primeiros registros de coleta de fósseis por humanos datam de cerca de 100.000 anos atrás. Não temos como afirmar se a produção dessa peça foi ou não proposital, mas já é um começo para que possamos entender a evolução da percepção humana quanto ao ambiente ao seu redor.
Mas nem sempre, o fóssil dá origem ao mito, alguns mitos foram responsáveis por servir de inspiração para a nomeação alguns fósseis, podemos citar aqui, por exemplo, o caso dos amonitas, que recebem esse nome pela similaridade aos cornos do deus Júpiter Ammon (Taylor, 2016) como está explicitado na Figura 5.

Figura 5: Á esquerda uma representação de Júpiter Ammon e à direita um amonita.
Figura 5: Á esquerda uma representação de Júpiter Ammon e à direita um amonita.

A geomitologia ainda é uma ciência pouco explorada, nos últimos anos, inúmeras histórias vêm sendo estudadas por especialistas, mas ainda há uma necessidade muito grande de maior interdisciplinaridade entre as diversas áreas como arqueologia, zooarqueologia, paleontologia e história. Uma maior interação faria com que fosse cada vez mais fácil de ver por trás dos mitos como apenas histórias fantasiosas, trazendo os fatos marcantes para aquela sociedade e que serviram de base para as crenças de um povo. Conseguir compreender que as pessoas da antiguidade, mesmo com tantas limitações tecnológicas, conseguiam ter vislumbres, por vezes muito precisos de eventos que demoraram séculos para serem explicados. Podendo assim evidenciar o interesse por esses eventos que muitas vezes passaram despercebidos por estudiosos e pesquisadores ao longo dos anos.

Referências:

FERNANDES, A.S.F. 2005. Fósseis: Mitos e Folclore. Anuário do Instituto de Geociências – UFRJ, v. 28, p. 101-115.
MAYOR, A. 2000. The first fossil hunters. Paleontology in greek and roman times. Princeton, Princeton University Press. 361 p.
TAYLOR, P. D. 2016 Fossil Folklore: Ammonyte. Deposits Magazine, nº 46 20-23.
VITALIANO, D. 1968. Geomythology: the impact of geologic events on history and legend, with special reference to Atlantics. Journal of the Folklore Institute (Indiana University), 5: 5-30.


26905858_2007696039247755_2080243137_oRodrigo Lima Veloso
Graduado em Ciências Biológicas/Licenciatura em 2014 pelo Centro de Ciências da Saúde (CCS) do Centro Universitário Serra dos Órgãos (Unifeso). Na mesma universidade foi aluno bolsista do Programa Pet-Saúde no período entre 2012 e 2014. Atuou como professor de ciências da rede estadual no município de Carmo – RJ de 2015 até 2017, atualmente cursa uma especialização em Geologia do Quaternário pelo Museu Nacional/UFRJ. Tem interesse em continuar seus estudos nas áreas de evolução, paleontologia e curadoria.