Os terópodes são um grupo de dinossauros que surgiu há mais de 200 milhões de anos e habitam todos os continentes ainda hoje. Eles são conhecidos por suas adaptações que os tornaram os mais rápidos e aerodinâmicos de todos os dinossauros. Uma das principais características que contribuíram pra sua agilidade e resistência foi o sistema de sacos aéreos, que permitiu uma respiração mais eficiente e a capacidade de invadir os ossos do esqueleto com câmaras pneumáticas. Esse sistema é fundamental para entender a evolução dos terópodes e sua adaptação pra estes diferentes ambientes.
Hoje vamos falar sobre nosso artigo recente que desvendou um mistério sobre a evolução dos dinossauros terópodes. Este artigo, publicado na revista Journal of Anatomy, investiga a evolução do sistema de sacos aéreos em terópodes, esse grupo de dinossauros que inclui os mais longevos e os únicos que sobreviveram até hoje, na forma das aves.
Recentemente, pesquisadores descobriram que o sistema de sacos aéreos evoluiu pelo menos três vezes de forma independente nos avemetatarsalianos, um grupo que inclui pterossauros, saurópodes e terópodes. Enquanto os saurópodes apresentam uma arquitetura pneumatizada complexa em suas vértebras, os terópodes ainda são menos compreendidos nesse aspecto.
Nesse estudo, nós analisamos o esqueleto axial de dois dinossauros terópodes: Majungasaurus, um ceratosauriano, e Rahonavis, um paraviano. Ambos foram encontrados na Formação Maevarano, no norte da Madagascar, durante expedições realizadas nos últimos 30 anos. Nossa equipe utilizou a tomografia computadorizada desses fósseis pra detectar padrões de pneumatização nos ossos e comparar com outros grupos de terópodes.
O estudo revelou que o Majungasaurus, um dinossauro cuja linhagem se encontra mais próxima à origem dos terópodes, apresenta algumas vértebras com espinhos neurais e centros sem pneumaticidade. Isso sugere que a pneumatização nos terópodes pode ter evoluído de forma diferente da observada nos saurópodes. Por outro lado, Rahonavis, um paraviano próximo aos raptores e das aves, apresenta uma pneumatização mais complexa, o que pode ter proporcionado vantagens em voos e escaladas.
Comparando com outros dinossauros terópodes representantes dos grandes grupos, é possível observar um aumento na pneumaticidade e na complexidade destas estruturas desde o Majungasaurus até as cegonhas de hoje em dia.
A compreensão da evolução do sistema de sacos aéreos nos terópodes tem implicações para a biologia evolutiva e para a paleontologia. Ela pode ajudar a elucidar como os dinossauros se adaptaram a diferentes ambientes e como essas adaptações influenciaram na sua sobrevivência. Além disso, futuros estudos sobre os primeiros terópodes vão poder fornecer mais informações sobre a evolução deste sistema.
Essa pesquisa foi financiada pela Fundação Norte-Rio-Grandense de Pesquisa e Cultura, e pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Vídeo do nosso canal sobre esta pesquisa:
Bibliografia:
Aureliano, T., Almeida, W., Rasaona, M., & Ghilardi, A. M. 2024. The evolution of the air sac system in theropod dinosaurs: Evidence from the Upper Cretaceous of Madagascar. Journal of Anatomy. Link: https://doi.org/10.1111/joa.14113
Por Matheus P. dos Santos da Rocha & Cledston Matheus A. Macário
Quando falamos em Paleontologia, muitos a resumem como uma ciência meramente de descrição de aspectos morfológicos, como o simples trabalho de encontrar um osso, descreve-lo e, por sorte, dar nome a uma nova espécie. Porém, a Paleontologia vai muito além disso. Por meio dela, podemos especular sobre diversos aspectos da vida no passado. Até mesmo alguns cujas evidências, muitas vezes, são escassas no registro fossilífero. Um exemplo disso, seria encontrar uma resposta para a pergunta: como eram os olhos dos dinossauros não-avianos?
Como toda ciência, a paleontologia trabalha, inicialmente, com hipóteses, e essas, podem nos levar para linhas de raciocínio beeeem inusitadas, uma hora podemos estar debatendo sobre buracos negros e a extinção dos dinossauros e isso, mais à frente, pode terminar numa deliciosa (ou não) receita de macarrão com biscoito. A história de hoje começa com uma linhas de raciocínio inusitadas: ela parte de um grupo de insetos fósseis, os Kalligrammatidae…
O que são os Kalligrammatidae?
Você já viu em algum jardim por aí pequenas bolinhas sustentadas por um fio bem fino, presas nas folhas das plantas? Se sim, com quase toda certeza você viu ovos de bicho-lixeiro. Pertencentes a uma ordem de insetos chamada Neuroptera, esses inofensivos (para os humanos) insetos são predadores vorazes de ovos de aranhas e outros invertebrados. Essa ordem inclui desde a formiga-leão, até coisas estranhas como os mantispídeos (que parecem uma mistura bizarra entre um marimbondo e um louva-a-deus).
Apesar de não serem um grupo muito comum nos dias de hoje, a representação fóssil deles é abundante. No Brasil, dados de um trabalho de revisão de 2018, dão conta que das 379 espécies de insetos descritos para a Formação Crato, da Bacia do Araripe, 76 são neurópteros, ou seja, 20% da diversidade de insetos da formação está em uma única ordem, que atualmente representa 0,6% das espécies de insetos viventes.
No meio de toda essa diversidade, os fósseis mais enigmáticos de Neuroptera são os da família Kalligrammatidae. O primeiro de Kalligrammatidae foi descrito por Johannes Walther, em 1904, com base num material quase completo, encontrado no calcário jurássico de Solnhofen (Alemanha) – aquele mesmo do Archaeopteryx. Desde então, diversas espécies de Kalligrammatidae foram encontradas em várias localidades, com destaque para os achados na China e nos âmbares birmaneses, ao norte de Mianmar.
Em 1997, o lendário paleontólogo Rafael G. Martins-Neto, descreveu, pela primeira vez, um Kalligrammatidae na Formação Crato, batizado de Makarkinia adamsi. De lá pra cá, outros trabalhos confirmaram a presença dessa família no Nordeste Brasileiro e, inclusive, descreveram novas espécies, sendo este, até hoje, o único lugar fora da Europa e Ásia a ter esses registros.
É uma sorte que esses animais ocorram em vários afloramentos do tipo lagerstätten (sítios com preservação excepcional) pelo mundo afora. A boa preservação dos fósseis permitiu notar rapidamente a semelhança dos kalligrammatídeos fósseis com as atuais borboletas e mariposas. Essa comparação não fica só por conta do formato, padrões de coloração e desenhos das asas, mas alguns espécimes bem preservados, principalmente em âmbar, mostram também a presença de uma “boca” modificada em um fino e comprido tubo chamado de probóscide, característica marcante das mariposas e borboletas (ambas pertencentes à ordem Lepidoptera). Mas isso aconteceu nos kalligrammatídeos num momento do tempo geológico em que as borboletas não existiam e as mariposas não eram tão abundantes e diversificadas como são hoje.
Fora do Brasil, alguns Kalligrammatidae chegam a ser apelidados de “giant lacewings” (crisopídeos gigantes) e isso chegou ao extremo em algumas espécies fósseis. Comparativamente, algumas espécies fósseis são enormes em relação aos seus irmãos ainda viventes. Estima-se que as espécies encontradas no Araripe, por exemplo, alcançavam entre 24 a 32 centímetros de envergadura!
A história dos “olhos” nas asas
Insetos grandes e chamativos podem virar comida facilmente, por isso, precisam ter alguma forma de se proteger da predação. Os kalligrammatídeos que viveram entre o Eojurássico ao Neocretáceo estavam dividindo espaço com lagartos, dinossauros avianos e não-avianos, pterossauros, entre outros predadores . Logo, teria que haver alguma forma deles não sucumbirem a seus colegas de habitat!
As mariposas e borboletas de hoje em dia têm algumas estratégias para evitar a predação. Desde projeções nas asas para desviar a atenção do predador, como as mariposas do gênero Actias, até mimetizar (imitar) folhas secas, tal qual Zaretis itys faz. Outra forma é ter “olhos”, ou melhor, ocelos em suas asas. Os ocelos são desenhos circulares que aparecem em diversos animais, especialmente nos lepidópteros. Esses círculos podem aparecer com 2 estratégias diferentes de uso:
A primeira é ter eles próximos às margens da asa, fazendo com que a atenção de um provável predador seja focada na ponta da asa e não no centro do corpo do organismo.
A outra é simplesmente aterrorizar! As mariposas da família Saturniidae e as borboletas-olho-de-coruja do gênero Caligo, por exemplo, fazem isso muito bem. Elas têm ocelos enormes no centro das asas, que imitam – algumas vezes de forma assustadora – os olhos de uma coruja, afastando assim qualquer predador que ouse atacá-las.
E é nesse ponto que queríamos chegar. Justamente essa segunda estratégia é atribuída a várias espécies fósseis de kalligramatídeos. Desde o primeiro espécime descrito, os ocelos gigantes estão presentes nas asas, e há trabalhos que descrevem e comparam os diversos formatos encontrados.
O que isso tem a ver com dinossauros?
Agora, chegou a hora que, ou vocês sairão desse blog nos chamando de loucos, ou terão o famoso “Mind Blow”. Vamos ao ponto principal: você já parou para pensar sobre o formato dos olhos dos dinossauros não-avianos? Essa é uma discussão complicada, pois o número de olhos de dinossauro preservados no registro fossilífero é: zero! Mas é uma curiosidade legítima querer saber essa informação, tanto que pode ser encontrado por aí, em fóruns pela internet, pessoas debatendo sobre essa questão.
Como esse tipo de material fóssil para dinossauros é inexistente, parte-se para a comparação com animais recentes, tanto seus parentes mais próximos ainda vivos, quanto possíveis análogos ecológicos. Mas existe ainda outra linha de raciocínio para se debater: não olhar para os dinossauros em si, mas para seus colegas de habitat e, no nosso caso especifico, os kalligramatídeos da Formação Crato.
Como já foi mencionado anteriormente, os “Giant Lacewings” poderiam ter se utilizado da segunda estratégia de uso dos ocelos: para assustar prováveis predadores, imitando os olhos de animais com os quais conviveram. Aí está o “pulo do gato”. Para um predador se assustar com os olhos desenhados nas asas das borboletas-olho-de-coruja é preciso que tenha um animal no mesmo habitat, que vá servir de gatilho (o “modelo” dos ocelos de Caligo, uma coruja, por exemplo: um predador assustador, que assuste o predador da Caligo). Mas há 120 milhões de anos não existiam corujas no Ceará, então…quem eram os modelos dos Kalligrammatidae do Crato?
Existem dois principais suspeitos: pterossauros e dinossauros, mas vamos por partes. Pterossauros na Bacia do Araripe, segundo Mendes et al. (2020), eram majoritariamente piscívoros (comedores de peixes), com algumas exceções como Lacusovagus magnificens, que provavelmente vagava pelos pântanos da região para caçar anfíbios e outras pequenas presas. O trabalho de Mendes, inclusive, coloca os pterossauros como animais no topo da teia trófica da região na época.
Mas se os pterossauros cearenses comiam peixes, majoritariamente, os possíveis predadores dos kalligramatídeos (outros insetos, anfíbios, pássaros, pequenos dinossauros, etc.) não estavam no cardápio deles, a priori. Por esse fator, seria compreensível a exclusão desses animais como possíveis modelos para os ocelos.
Já os dinossauros, por outro lado, são os candidatos perfeitos para esse quebra-cabeças ecológico. Animais como Aratasaurus museunacionali, Mirischia asymetrica (que, assim como “Ubirajara“, foi traficado para Alemanha #MirischiaBelongtoBR) e Santanaraptor placidus, ocupavam o nicho de predadores de médio a pequeno porte da região do Cariri. Como apontado por Julian Kiely, em seu artigo para o blog “Paleoflora”, a forma da asa dianteira na maioria das espécies de kalligramatídeos, e o grande tamanho dessas asas, correspondiam, aproximadamente, ao tamanho e a forma das cabeças de muitos pequenos dinossauros predadoresque conviviam com esses insetos (como as espécies mencionadas acima). Desta forma, poderíamos inferir que as pupilas dos dinossauros de médio a pequeno porte do Jurássico Superior e do Cretáceo Inferior, como os maniraptores (pelo menos), deveriam ser arredondadas, já que os ocelos de todos os kalligramatídeos conhecidos até então, possuem esse mesmo formato. O que se soma à evidência indireta parelela, que considera como base comparativa o formato da pupila dos dinossauros viventes, que são as aves.
O poder da especulação
Alguns podem estar se perguntando: qual a importância de especular aspectos biológicos e evolutivos tão difíceis de se comprovar por meio do registro fossilífero? Muito da ciência começa com especulação. As descobertas científicas, em geral, nascem de hipótese de alguém. Um exemplo clássico foi a detecção das ondas gravitacionais em 2015, que haviam sido previstas por Albert Einstein em 1916.
Em homenagem à previsão de Meszaros, Tamisiocaris foi incluído em um novo clado denominado Cetiocaridae. Infelizmente, o nome deste clado não é mais considerado válido, de acordo com o Código Internacional de Nomenclatura Zoológica, por não existir nenhum gênero real chamado “Cetiocaris“, então foi formalmente substituído pelo nome Tamisiocarididae.
Finalmentes
Com base em todos os argumentos supracitados (Alô, professores de redação!), podemos inferir que a hipótese levantada pode levar a especulações e trabalhos futuros que respondam às nossas dúvidas (isso claro, se esse post, neste humilde blog, chegar nas pessoas certas, e para isso seu compartilhamento é fundamental). Gostaríamos de agradecer a Julian Kiely do excelente blog “Paleoflora” pelo artigo que inspirou este, e que isso inspire a todos os nossos leitores a imaginar e especular dentro da ciência, lançar ideias, compartilhá-las, pois só assim a ciência cresce e prospera, com união e partilha.
Referências:
Martins-Neto, R. G. 1997. Neurópteros (Insecta, Planipennia) da Formação Santana (Cretáceo IInferior) Bacia do Araripe, Nordeste do Brasil. X – descrição de novos taxa (Chrysopidae, Babinskaiidae, Myrmeleontidae, Ascalaphidae e Psychopsidae). Revista Universidade Guarulhos , São Paulo, v. 2, n.4,. p. 68-83.
Poucos imaginariam que um dinossauro do tamanho de um ganso desencadearia uma das maiores polêmicas da Paleontologia nos últimos anos. Para bem ou para mal, “Ubirajara jubatus” tem chamado a atenção como poucos fósseisna história da Paleontologia.
Quando foi revelado ao mundo no dia 13 de dezembro de 2020, “Ubirajara jubatus” deveria ter sido visto como uma descoberta interessante do ponto de pista científico, pois tratava-se do primeiro dinossauro não-aviano com penas do Hemisfério do Sul. Contudo, a sua importância foi rapidamente ofuscada por um emaranhado de problemas éticos e legais. O estudo de “Ubirajara” representa um típico caso de colonialismo científico: um fóssil brasileiro que foi parar de maneira suspeita num museu alemão (Museu Estadual de História Natural de Karlsruhe) e uma pesquisa feita exclusivamente por cientistas estrangeiros.
O conceito de colonialismo científico foi definido em 1967 por Johann Galtung como “o processo pelo qual o centro de adquisição do conhecimento sobre uma nação está fora a própria nação”. Isto se aplica ainda à Paleontologia de vários países, cujas pesquisas, em pleno século XXI, são predominantemente feitas por estrangeiros.
Além do Brasil, países como China, Mongólia, Marrocos, República Dominicana e Myanmar, têm estado na mira, tanto de traficantes de fósseis, como de pesquisadores sem escrúpulos. Os fósseis atraem a curiosidade do público e são um valioso recurso em muitos aspectos: científico, educacional, cultural e até econômico, gerando turismo e beneficiando o comércio local. Porém, todos estes benefícios ficam num país estrangeiro, quando os fósseis são levados (legal ou ilegalmente) ao exterior e terminam estudados por equipes de outros países, o que cria dependência científica e perpetua desigualdades sociais.
No Brasil, assim como em toda a América Latina e na maior parte dos países do mundo, os fósseis pertencem legalmente à Nação onde são encontrados. Durante décadas, contudo, milhares de fósseis têm saído ilegalmente da região do Araripe, no Nordeste do Brasil, região muito rica em termos paleontológicos, mas com um baixo índice de desenvolvimento humano. Estes fósseis são adquiridos a preços irrisórios por estrangeiros, chegam ilegalmente a feiras e leilões na Europa e terminam em coleções privadas ou em museus estrangeiros.
Centenas destes fósseis no exílio têm sido estudados por cientistas estrangeiros de maneira impune nas últimas décadas. Este problema é mais do que conhecido pela comunidade científica brasileira, porém estamos acostumados a que as nossas vozes não sejam escutadas no exterior. Problema que não enfrentam, por exemplo, os autores do estudo de “Ubirajara ” e de vários outros fósseis extraídos irregularmente do Brasil. Eberhard Frey (ex-curador da coleção de vertebrados do museu onde ainda hoje está “Ubirajara”) era, até 2021, nada menos que o presidente da Associação Europeia de Paleontologia de Vertebrados (EAVP, sigla em inglês), enquanto que David Martill, também autor do estudo de “Ubirajara”, publicou um artigo defendendo abertamente que os paleontólogos desrrespeitem as leis locais.
É uma luta que sempre tem sido desigual. Porém, desta vez foi diferente. Estamos na era das redes sociais, da comunicação científica online e das hashtags. O uso de hashtags como #BlackLivesMatter e #MeToo têm mostrado que as redes sociais podem unir esforços em torno de uma causa. #UbirajaraBelongstoBR (Ubirajara pertence ao Brasil), criada no Twitter pela paleontóloga e divulgadora científica Aline Ghilardi, se espalhou como fogo na internet, poucas horas após a notícia do novo dinossauro. No Youtube, foram feitas várias lives denunciando o caso, uma delas, pediu ao público pra desenhar “Ubirajara” e protestar nas redes usando a hashtag #UbirajaraBelongstoBR. Em poucos dias este era o dinossauro mais desenhado do mundo: artistas, crianças e público geral participavam da campanha. O ruído produzido foi tão alto que em duas semanas a revista Cretaceous Research retirou a pesquisa do ar e anunciou que investigava o caso.
Em setembro de 2021, o museu de Karlsruhe contra-atacou, publicando no Instagram um comunicado no qual afirmavam que o dinossauro Ubirajara era ‘propriedade do estado de Baden-Württemberg’ e que não seria devolvido ao Brasil. Em poucos dias acumularam-se mais de 10 mil comentários pouco amigáveis de brasileiros usando a hashtag #UbirajaraBelongstoBR. O museu teve que desativar a sua conta no Instagram. Poucos dias depois, a revista Science revelou que “Ubirajara” foi importado pela Alemanha em 2006 por uma empresa privada e, então, comprado pelo Museu Estadual de Historia Natural de Karlsruhe, em 2009, o que contradizia a alegação de Eberhard Frey, que afirmava tanto que ele mesmo tinha transportado o fóssil para Alemanha em 1995, portando uma suposta autorização do governo brasileiro.
No 15 de novembro de 2021, publicamos uma carta na revista Nature Ecology and Evolution, na qual explicamos os problemas legais e éticos envolvendo não só “Ubirajara”, mas vários outros fósseis que encontravam-se no museu de Karlsruhe e em outros museus do país. Enviamos essa carta à ministra de Ciência e Cultura do estado alemão de Baden-Württemberg e, um mês depois, ela nos respondeu prometendo investigar o caso e tomar ações contra os responsáveis.
Eberhard Frey aposentou-se prematuramente em 2022 e Norbert Lenz, também autor do estudo e diretor do museu, foi removido do seu cargo em julho de 2022.
No momento em que estas linhas são escritas, seguimos esperando pela repatriação, não só do dinossauro “Ubirajara”, mas de centenas de outros fósseis que se encontram irregularmente em Karlsruhe e em outros museus da Alemanha. Aconteça o que acontecer, a Ciência não será a mesma após este caso. “Ubirajara” está já no salão da fama dos maus exemplos na Paleontologia, junto a Archaeoraptor e ao Homem de Piltdown.
A espécie humana está na Terra há apenas 300 mil anos. Somos jovens nesse pequena planeta azul e dinâmico. Os dinossauros, por sua vez, estão por aqui há pelo menos 233 milhões de anos, desde o Período Triássico e, não custa lembrar, permanecem vivos até hoje na forma das aves. Esse grupo de animais tolerou e se adaptou a uma grande variedade de climas e mudanças dramáticas na configuração dos continentes ao longo do tempo. Por isso são um modelo excelente para estudarmos evolução biológica. Eles têm muito a nos ensinar sobre os segredos da sobrevivência.
Durante o auge do reinado dos dinossauros, na Era Mesozoica, o clima do nosso planeta era muito mais quente do que hoje. Uma das características que favoreceu este grupo de animais foi a evolução de sacos aéreos, um tipo de upgrade do sistema respiratório. Os sacos aéreos são estruturas conectadas aos pulmões, que se espalham por toda cavidade toráxica e abdominal desses animais, penetrando inclusive os ossos. Estão presentes nas aves atuais e não apenas tornam sua respiração mais eficiente, mas também ajudam a deixar os seus esqueletos mais leves, o que favorece, por exemplo, o voo. Apesar de muito característicos das aves, os sacos aéreos não são uma exclusividade dos delas. Eles também estavam presentes nos dinossauros não-avianos (todos os outros dinossauros, que não as aves) muito antes da evolução do voo.
Imagina-se que os sacos aéreos originalmente favoreceram os dinossauros por funcionarem como um sistema eficiente de captação de oxigênio e também por serem um sistema de refrigeração natural. Se você, hoje, fica ofegante fazendo exercícios no verão quente, saiba que os dinossauros eram (e são!) muito mais eficientes que você em captar oxigênio e se refrigerar. Não é à toa que eles saíram na frente na corrida evolutiva (enquanto nosso grupo, o dos mamíferos, ficou por quase 150 milhões de anos no banquinho de reservas evolutivo).
Já é bem sabido que dinossauros do Período Cretáceo, como o T. rex e alguns pescoçudos, como o Ibirania, tinham um extenso sistema de sacos aéreos pelo corpo. Inclusive, bem parecido com os das aves atuais. Só que a origem e evolução deste sistema tem sido um enigma por várias décadas. Será que os primeiros dinossauros, lá do período Triássico, já tinham sacos aéreos?
O que sabíamos era que a pneumaticidade do esqueleto relacionada a um sistema de sacos aéreos estava presente tanto em dinossauros derivados, ou seja, aqueles que viveram durante o Período Cretáceo, quanto em pterossauros, répteis voadores parentes próximos dos dinossauros. Ambos os grupos seguiram um caminho evolutivo independente a partir do Período Triássico. Uma explicação para a presença de sacos aéreos tanto em dinossauros quanto em pterossauros seria que a origem dessas estruturas se deu bem antes deles terem seguido seu caminho evolutivo independente, isto é, ainda em seus ancestrais.
Porém, a questão permaneceu em aberto. Faltavam estudos avaliando a presença dessas estruturas tanto em dinossauros mais antigos quanto em ancestrais dos pterossauros e dinossauros…
Para nossa sorte, o Brasil têm os fósseis dos mais antigos dinossauros e é aí que entra o estudo publicado agora em Dezembro de 2022 pelo nosso grupo de pesquisa, na revista Scientific Reports:
Para tentar solucionar este enigma, um grupo de pesquisadores brasileiros da Unicamp, UFRN, UFSCar e UFSM e um colaborador da Western University of Health Sciences, dos E.U.A., analisaram três fósseis de alguns dos mais antigos dinossauros do mundo, Buriolestes, Pampadromaeus e Gnathovorax, do Período Triássico do Rio Grande do Sul. Estes são alguns dos dinossauros mais antigos conhecidos até o momento, com 233 milhões de anos de idade!
Foi possível notar que os ossos da coluna vertebral (vértebras) desses animais apresentavam pequenos orifícios nas laterais. Sabemos que os sacos aéreos ingressam no esqueleto através de estruturas semelhantes a isso. Porém, os orifícios encontrados eram muito pequenos, o que talvez indicasse uma outra função.
Realizamos, então, tomografias de alta resolução (micro-tomografias) para investigar a estrutura interna dos fósseis. A análise revelou uma arquitetura bastante densa nas vértebras desses animais, bem diferente do que conhecemos em esqueletos permeados por sacos aéreos de dinossauros que viveram no Cretáceo ou mesmo as Aves. Porém, Buriolestes e Pampadromaeus mostraram uma vascularidade mais complexa no interior das vértebras, do que Gnathovorax. Uma vascularidade mais desenvolvida pode ter servido de alicerce para o surgimento das estruturas pneumáticas conhecidas como câmaras e camelas, típicas da invasão das vértebras por sacos aéreos.
A ausência de pneumaticidade no esqueleto pós-craniano desses dinossauros mais antigos contradiz a hipótese de que os sacos aéreos invasivos presentes em dinossauros e pterossauros são homólogos, ou seja, de que teriam surgido no ancestral comum desses animais. Isso indica que a pneumaticidade óssea associada à sacos aéreos evoluiu pelo menos três vezes independentemente em Avemetatarsalia, grupo que inclui dinossauros, pterossauros e seus parentes. Ou seja, evoluiu de forma independente em pterossauros, dinossauros terópodes (grupo dos dinossauros carnívoros) e sauropodomorfos (grupo dos dinossauros pescoçudos).
Essa descoberta muda a forma como compreendíamos os dinossauros e seus parentes. Passo a passo estamos entendendo melhor a sua evolução e o segredo do seu sucesso. É possível que algum fator ambiental tenha sido o gatilho para a evolução desse sistema sacos aéreos em diferentes grupos de avemetatarsalianos, mas isso são cenas para os próximos capítulos!
Gostaríamos de agradecer as agências de fomento que tornaram possível esta pesquisa: o CNPq, a FAPESP e a FAPERGS.
Acesse o artigo completo: Aureliano et al. 2022. The absence of an invasive air sac system in the earliest dinosaurs suggests multiple origins of vertebral pneumaticity. Scientific Reports. https://www.nature.com/articles/s41598-022-25067-8
Os maiores animais a caminharem em terra firme foram os dinossauros saurópodes, apelidados de pescoçudos. Algumas espécies de pescoçudos, como o Argentinosaurus ou o Patagotitan, encontrados na Argentina, podiam ultrapassar 30 metros de comprimento. Verdadeiros colossos capazes de fazer a terra tremer! Mas nem todos os saurópodes eram assim… Existiram centenas de espécies desses dinossauros em quase todos os continentes e, apesar da maioria ser conhecida pelo seu grande tamanho, algumas formas adotaram uma tendência contrária. Existem alguns casos de pescoçudos anões, formas com a altura de um cavalo ou de um camelo, como Magyarosaurus ou Europasaurus, encontrados em ambientes de ilhas antigas. Via de regra, essas formas anãs são encontradas em ambientes de ilhas, pois devido a restrição de área e recursos, a miniaturização do corpo pode ser uma vantagem. Porém, para nossa surpresa, fósseis de uma nova espécie de dinossauro pescoçudo anão foram encontradas aqui no interior do Brasil, em um lugar que esteve bem longe do mar durante toda a Era dos Dinossauros. Essa espécie de dinossauro foi descoberta na cidade de Ibirá, no interior de São Paulo, e se tornou uma das menores espécies de dinossauros pescoçudos conhecidas do mundo!
Por mais de 15 anos o Prof. Marcelo Fernandes (UFSCar) e seu grupo de pesquisa, eu inclusa, têm coletado fósseis no Noroeste Paulista, em uma localidade onde são encontrados abundantes fósseis de dinossauros. As rochas e fósseis dessa localidade datam do Período Cretáceo e têm aproximadamente 80 milhões de anos. Dentre os fósseis recuperados estão restos de dinossauros carnívoros, crocodilos, tartarugas e vários outros animais da “Era dos Dinossauros”. Muitos restos de dinossauros herbívoros foram encontrados na localidade, mas até o momento nenhuma espécie de pescoçudo havia sido nomeada para a região.
Fui eu quem trabalhou pela primeira vez, durante a minha graduação, com os fósseis do pequeno dinossauro pescoçudo de Ibirá. Àquela época, o dinossauro não ganhou nome, mas foi reconhecido como diferente das outras espécies descritas para o Brasil até então. Muito tempo se passou, mais fósseis desse pequeno dinossauro foram encontrados e, finalmente, alguns anos atrás, a missão de liderar a descrição da espécie desse misterioso dinossauro nanico foi dada ao paleontólogo Bruno Navarro, atualmente estudante de doutorado no Museu de Zoologia da USP, e especialista em dinossauros saurópodes. Bruno, Marcelo e eu contamos com a ajuda de uma excelente equipe de colaboradores nesse processo e, no último dia 15 de setembro, apresentamos formalmente essa nova espécie de dinossauro ao mundo científico.
Comparando os fósseis do pequeno dinossauro de Ibirá com materiais de outros animais do mesmo grupo encontrados no Brasil e no mundo, foi possível concluir que ele pertencia à família dos saltassauros, um grupo de titanossauros que inclui algumas espécies de já de tamanho bastante reduzido. Além disso, o pequeno dinossauro de Ibirá apresentava várias características únicas, não compartilhadas com seus parentes mais próximos, logo, uma nova espécie poderia ser batizada. O nome escolhido foi Ibirania parva.Ibirania é a junção das palavras Ibirá – cidade onde a espécie foi encontrada – e ania que em grego significa “caminhante, peregrino”. Já parva é o latim para ‘pequeno’. Como a palavra Ibirá vem do Tupi para “Árvore” – é possível traduzir o nome desse dinossauro como “o pequeno peregrino das árvores”.
Desde o princípio era possível notar que os fósseis desse pescoçudo de Ibirá eram muito pequenos quando comparado a outros titanossauros, mas ao estimar o tamanho aproximado de um dos espécimes analisados, nos surpreendemos. Ele teria entre 5 e 6 metros de comprimento e seria da altura de uma vaca, o que o colocaria entre as menores espécies de saurópodes já descritas do mundo! Para checar se o tamanho reduzido seria porque o espécime era apenas um jovem quando morreu, resolvemos analisar o tecido ósseo fossilizado do dinossauro ao microscópio. Essas amostras foram analisadas pelo paleontólogo Tito Aureliano, atualmente estudante de doutorado da Unicamp. A partir da análise do tecido ósseo foi possível concluir que Ibirania realmente era uma espécie de titanossauro anão, já que os fósseis pertenciam a um animal adulto no momento de sua morte, ou seja, ele não cresceria mais ao longo de sua vida.
No interior de São Paulo, durante o final do Período Cretáceo, há 80 milhões de anos, caminharam muitos dinossauros pescoçudos de grande tamanho, e até gigantes, como o Austroposeidon. Mas havia algo de especial na região de Ibirá, que favoreceu a existência de pescoçudos nanicos. Diferente de outros anões que viviam em ilhas tropicais onde hoje é a Europa, como Magyarosaurus ou Europasaurus, Ibirania vivia no interior do Brasil, em um ambiente semi-árido com períodos chuvosos intercalados por secas intensas. Foi esse ambiente hostil, com recursos limitados periodicamente, que selecionou esses pequenos dinossaurinhos herbívoros, que ao invés de migrar, provavelmente permaneciam residentes na região.
Ibirania é a primeira espécie comprovadamente anã das Américas e viveu em um contexto muito diferente dos outros dinossauros pescoçudos anões já encontrados. Ela acrescenta novas informações sobre a evolução dos titanossauros e também sobre a ocorrência de nanismo em dinossauros saurópodes. Ibirania recebeu o apelido carinhoso de “Bilbo”, em referência ao hobbit de “O Senhor dos Anéis”, por ser um nanico entre gigantes. Se você quiser saber todas as descobertas que este ‘dinossauro-Hobbit’ já forneceu, assista à playlist: https://www.youtube.com/watch?v=_kH96sPGjfg&list=PLHPifkNwYyYYNFP-wvUXNti7NGkfNQ8hz.
O estudo foi publicado na revista Ameghiniana e pode ser acessado AQUI.
Assista também ao vídeo de divulgação:
Referência:
A. Navarro, B., M. Ghilardi, A. ., Aureliano, T., Díez Díaz, V., N. Bandeira, K. L., S. Cattaruzzi, A. G., V. Iori, F., M. Martine, A., B. Carvalho, A., Anelli, L. E., A. Fernandes, M., & Zaher, H. (2022). A NEW NANOID TITANOSAUR (DINOSAURIA: SAUROPODA) FROM THE UPPER CRETACEOUS OF BRAZIL. Ameghiniana, 59(5), 317-354. https://doi.org/10.5710/AMGH.25.08.2022.3477