Há uma história da matemática bem curiosa e contraintuitiva. Ela envolve uma equipe de estatísticos, que durante a Segunda Guerra Mundial eram responsáveis por analisar os aviões que voltavam das batalhas, para decidir onde valeria a pena aumentar a blindagem do avião (dado que isso envolve colocar mais peso para voar, que exige mais combustível, o que deveria ser evitado a menos das regiões tidas como essenciais de se proteger).
Facilmente analisando os aviões que retornaram das batalhas, podiam identificar os locais mais atingidos por balas. A princípio podemos pensar em aumentar o revestimento dessas regiões, afinal, de todos os aviões que retornaram, essas foram as regiões mais atingidas.
Porém, o mais coerente a se pensar seria aumentar o revestimento das regiões que não tem marcas de balas no conjunto de aviões que retornaram da batalha. Mas por que? Se não temos nenhuma marca de bala nessas regiões, elas então não seriam as menos prováveis de serem atingidas?
O contraponto que justifica esse argumento está no nosso conjunto de amostras, dado que todos os aviões que analisamos tem como característica comum “conseguirem voltar da batalha”.
E os aviões que não analisamos são aqueles que “sucumbiram na batalha”. Logo, se pensarmos assim, dos aviões que analisamos, nenhum deles tinha marcas de bala atingindo diretamente o piloto, ou o motor, pois se isso ocorresse, o avião simplesmente não conseguiria retornar.
Assim como o cenário dos aviões da Segunda Guerra Mundial, em diversas situações temos no nosso conjunto de informações a analisar, apenas aqueles que “conseguiram retornar da batalha”, enquanto que o mais coerente seria pensar no que aconteceu com aqueles que “não conseguiram retornar da batalha”?
De maneira ingênua, acabamos assumindo que isso represente um padrão, como a história de um rapaz que começou a vender panelas de porta em porta, e 20 anos depois controla a principal empresa do ramo de utensílios de cozinha. Essas histórias são como os aviões que retornaram da batalha, analisamos o que aconteceu com essas pessoas, vemos as “regiões em que elas foram atingidas” como por exemplo “pobreza”, “falta de estudo”, “família pouco estruturada”. Porém nesse contexto, esquecemos de nos preocupar com as regiões que essas pessoas “não foram atingidas”, como por exemplo “saúde debilitada”, “redução do poder de consumo da população”, “concorrentes de negócio”, dados estes que podem representar justamente a razão de outros “aviões” não conseguirem retornar destas batalhas.
De forma semelhante, vejo com certa frequência histórias de pessoas que encontravam-se doentes, enfrentando uma grande adversidade em questões de saúde, e que relatam terem sido curadas a partir da sua fé em uma entidade sobrenatural.
Não duvido que isso tenha de fato ocorrido, porém levanto o questionamento, será que ao focarmos nesses relatos não acabamos nos concentrando apenas nas “marcas nos aviões que retornaram da batalha”, nos esquecendo das regiões nas quais eles “não foram atingidos” e que podem ter influenciado diretamente o seu retorno? Como por exemplo:
- se houve a extinção de um hábito não declarado aos médicos (como fumar, beber ou usar drogas) que afetava os exames ou o tratamento;
- se o tratamento após meses/anos finalmente surtia efeito;
- se algum diagnóstico inicial estava errado, levando o paciente a um tratamento para outra doença, o qual agravava mais sua saúde;
- se havia algum fator psicológico que interferia nos sintomas e foi sanado com a convicção de cura pela fé;
- se algum fator genético incomum nesse paciente possibilitou que seu organismo conseguisse se curar;
- se parte da sua rotina, alimentação ou trabalho era responsável por alguns dos sintomas.
Essas possibilidades levantadas, são equivalentes às regiões não atingidas nos aviões que retornaram da batalha. Elas representam assim aspectos que permitiram ao piloto conduzir seu avião até o retorno seguro à base. Ou no caso dos pacientes, aqueles que conseguiram se curar a partir da fé. Mas se consideramos apenas esse lado da história, estamos ignorando as hipóteses que levaram os aviões a “não retornarem da batalha”, ou sendo mais direto nesse contexto, as “histórias das pessoas que não se curaram a partir da fé”.
Créditos da imagem de capa adaptada de talha khalil por Pixabay)
Este texto foi publicado originalmente no Blog Zero
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