A Ciência e sua sombra.

Por Daniel Christino.
Dentre todos os objetos disponíveis ao escrutínio da razão nenhum é mais interessante do que o próprio homem. Há muito o intelecto humano se diverte com esse movimento de virar-se sobre si mesmo. Somos, neste aspecto, bastante únicos na natureza. Segundo Rilke, ao contrário de nós, os animais conseguem “vislumbrar o aberto”. Não estão obrigados a olhar sempre sobre o próprio ombro.
Não têm história ou mundo. Não são capazes de perceber sua sombra como um índice de si mesmos.
Dentre os possíveis discursos que escolhemos para falar de nós mesmos dois se destacam. O primeiro encontra-se no domínio do mito e das religiões e podemos defini-lo, grosso modo, como moralidade. O Bem e o Mal. Via de regra tal discurso aponta para uma dimensão transcendental da qual é possível colocar a natureza humana sob perspectiva. Seu pressuposto é o de que precisamos ir além do homem para poder pensá-lo. O contrário seria equivalente a tentar “saltar a própria sombra”.
O segundo pertence ao âmbito da ciência, e afirma ser possível compreender o homem a partir da própria condição humana, isto é, como ele se dá enquanto fenômeno material e finito, sem o auxílio de uma perspectiva transcendental de tipo religioso. Segundo esta vertente supor que esteja aberto ao homem uma perspectiva não humana é simplesmente absurdo. Ao homem só é possível o que está dentro dos limites de sua humanidade. Ambos são, como dizia Cassirer, “construções simbólicas”, derivadas da capacidade de enunciação da nossa linguagem e, neste aspecto, limitados por ela.
A ferramenta teórico-epistemológica que o discurso cientí fico desenvolveu para pensar o problema do homem e sua sombra foi a dúvida. Obviamente não meramente a dúvida hiberbólica e argumentativa de Descartes, embora esta esteja, de fato, no centro da questão, mas a dúvida metodológica, integrada às próprias condições do exercício da atividade científica. Isto se dá porque ciência é método e não a confiança cega no método. Este é um erro que se comete amiúde, pensar a ciência como se fosse uma crença na verdade ou na capacidade do homem de encontrar uma verdade universal racionalmente justificável. Este valor ideológico do Iluminismo não sobreviveu ao próprio desenvolvimento científico, em última análise. A razão tornou-se muito mais humilde em sua busca pela verdade e abraçou, em seu método, a incompletude e o raciocínio aproximativo. Quem melhor exemplificou este frescor intelectual e esta dinâmica epistemológica foi Richard Feynman. Numa conferência em 1966 ele elabora esta posição metodológica numa fórmula genial: “Science is the belief in the ignorance of the experts”.
Obviamente cada ramo científico determina suas condições de verdade, mas elas não são mais universais e absolutas e têm validade provisória. O que, entretanto, dispara o processo de superação ou substituição destas condições de verdade é a dúvida, ou melhor, as consequências rigorosas do fato de que se pode duvidar, desde que metodologicamente embasado, das próprias condições de verdade de um determinado campo ou subcampo científico. O importante é perceber que a historicidade da ciência não significa uma relativização de seus princípios fundamentais, mas um aprofundamento. Longe de ser uma prática engessada e imóvel, a atividade científica é sempre aberta e fluida . Discutir esta condição em relação a si mesma e seu objeto é o que mantém a ciência perpetuamente diante de si mesma. Dito de outro modo, em cada experimento, em cada projeto de pesquisa, está não apenas uma questão problema relacionada a um tópico específico, mas toda a ciência. É como ela joga luz sobre a própria sombra.
PS. O link para a conferência do Feynman é este http://www.fotuva.org/online/frameload.htm?/online/science.htm
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Daniel Christino escreve no Pasmo Essencial. É graduado em jornalismo e filosofia, mestre em filosofia e doutorando em comunicação. Atualmente é professor da Universidade Federal de Goiás.