Memorial à Ivar Lovaas: Como nasce – e cresce – uma ciência.
Este post é uma tradução, autorizada pelo autor, de dois comentários à nota de falecimento do Professor Ivar Lovaas, pioneiro da Análise do Comportamento Aplicada e um dos maiores pesquisadores e difusores do Método ABA para o tratamento de pessoas com autismo e outros déficits cognitivos.
Ole Ivar Lovaas nasceu na Noruega, mas desenvolveu seus trabalhos na UCLA (University of California in Los Angeles), onde fundou um centro para tratamento de autistas: o The Lovaas Institute. Foi um dos maiores pesquisadores do autismo e responsável pelo desenvolvimento de um dos métodos mais bem sucedidos e recomendados (inclusive pela Associação Médica dos EUA) para a reinserção social e adaptação de pessoas com autismo. O texto a seguir é de autoria do Professor James T. Todd, do Departamento de Psicologia da Eastern Michigan University, e foi publicado originalmente em resposta a um comentário de uma leitora no Autism Blog, de Lisa Jo Rudy, no dia 4 de agosto deste ano – dois dias depois da morte de Lovaas. Republico aqui, traduzido, o que acho a mais concisa e objetiva explicação de como as descobertas experimentais de vários cientistas se acumulam e se completam para dar suporte a tecnologias que melhoram a vida das pessoas.
“O Behaviorismo, como uma filosofia específica da ciência, foi inicialmente desenvolvido por John B. Watson nas primeiras décadas do século XX. O principal objetivo de Watson era tratar o comportamento objetivamente, usando as técnicas da ciência natural. O comportamento dos organismos é o resultado natural de sua história genética e interacional. Uma abordagem completa do comportamento pode ser encontrada na análise completa desses fatores. Watson nunca desenvolveu completamente muitos aspectos críticos do seu Behaviorismo, apenas apontou a necessidade de uma maior sofisticação na abordagem, antes de entrar para a carreira publicitária. A devoção de Watson ao condicionamento pavloviano e a rejeição qualificada da Lei do Efeito, de Edward Thorndike (que descrevia os efeitos de recompensas e punições) deixou sua formulação sem os princípios comportamentais necessários para dar conta, minimamente, dos comportamentos mais complexos. Os equívocos sobre determinados aspectos de sua teoria metafísica, especialmente na análise do comportamento privado – como o pensamento – levaram muitas pessoas a ver o seu Behaviorismo como irremediavelmente mecanicista e superficial, apesar de haver maior profundidade do que é aparente em uma primeira leitura. Há muitos outros nomes associados ao Behaviorismo precoce, tais como Albert Weiss e Knight Dunlap, cujas idéias foram, de certa forma, mais completamente desenvolvida do que as de Watson. Faltava-lhes a verve retórica de Watson, e suas opiniões agora vêm até nós, em grande parte, como informações históricas incidentais. Ao considerar as contribuições de Watson para a Psicologia, é melhor ignorar totalmente o parágrafo obrigatório e superficial que vemos nos capítulos iniciais dos livros de introdução à Psicologia, e mesmo em Histórias da Psicologia de nível um pouco superior. Ao contrário do que essas obras podem levar a crer, suas reais contribuições ajudaram a estabelecer a Psicologia como uma disciplina acadêmica distinta da Filosofia e da Biologia, e a tornar a observação objetiva do comportamento o dado padrão em toda a Psicologia (mesmo em áreas como a psicologia cognitiva, que não estendem a objetividade para a teorização), ajudando no estabelecimento do condicionamento pavloviano como base dos tratamentos para transtornos de ansiedade.
Começando em 1920, e continuando até a sua morte em 1990, BF Skinner ampliou e elaborou as formulações de Watson, legando-nos o “Behaviorismo Radical” que nós associamos a ele até hoje. (“Radical”, aqui, significa “raiz” ou “fundamental”, e não “extremo”.) Basicamente, a abordagem de Skinner abrange todos os comportamentos, incluindo a parte dos comportamentos que é privada ao indivíduo, tais como sentir e sonhar, e trata-os como eventos reais e objetivos existentes no tempo e no espaço. (Sim, pensar, sentir e sonhar estão dentro do escopo do sistema de Skinner, não importa o que os textos introdutórios dizem). Nesse sentido, Skinner concorda com Watson: o comportamento é o que surge quando histórias genéticas e ambientais de um organismo se encontram com os eventos atuais. A Análise do Comportamento consiste em encontrar, na história do organismo, os eventos que se relacionam ordenadamente com o comportamento presente. Skinner, é claro, enfatizou a importância do “condicionamento operante”, essencialmente uma versão muito mais sofisticada da Lei do Efeito de Thorndike. Tanto o condicionamento pavloviano, quanto o condicionamento operante estavam, então, disponíveis para descrever uma quantidade surpreendente de comportamentos dos organismos, que podiam ser previstos e controlados com uma precisão tipicamente associada com as hard sciences. A enorme variabilidade nos dados dos comportamentos, previamente proveniente de estudos com labirintos e outras técnicas, foi transformada em curvas muito suaves e regulares, demonstrando a realidade das “leis do comportamento”. Hoje em dia, nós associamos o trabalho de Skinner com ratos e pombos, especialmente na área de “esquemas de reforçamento”, em que diferentes padrões de recompensas produzem importantes efeitos comportamentais. Mas, a partir desta formulação, dezenas de milhares de experiências sobre os princípios básicos do comportamento vieram à luz. A contingência de três termos de Skinner, popularmente concebida e simplificada em “antecedente-comportamento-consequência”, é uma ferramenta analítica de extraordinário poder, especialmente em sua versão mais tecnicamente sofisticada. As variáveis responsáveis por praticamente qualquer episódio especificamente definido de comportamento podem ser descobertas através da análise. Também é uma maneira altamente eficaz de estabelecer comportamentos novos: reforçe o comportamento requerido, e você tem grande probabilidade de ter mais do mesmo. (Às vezes, é mais fácil falar do que fazer!) Claro, não podemos esquecer as contribuições culturais de Skinner, implorando-nos para perceber – com livros como o tão incompreendido Beyond Freedom and Dignity (1971), e o essencial Ciência e Comportamento Humano (1953) – que muitos dos problemas que enfrentamos hoje, como sociedade, advêm do nosso próprio comportamento. Para resolver esses problemas é necessária uma ciência do comportamento efetiva. Para uma descrição mais completa do pensamento e das teorias de Skinner, eu recomendo começar pelo livro Ciência e Comportamento Humano, disponível no site da Fundação BF Skinner. E, para uma visão mais técnica, embora ainda amplamente acessível, ler os artigos da Edição Especial da American Psychologist, de novembro de 1992. A leitura do “best of” de Skinner, recolhidos no livro Cumulative Record seria um excelente passo seguinte.
Quanto à Análise do Comportamento Aplicada (Applied Behavior Analysis, ou a conhecida sigla ABA), Lovaas não a inventou. Pode-se argumentar que Skinner a inventou, ao menos conceitualmente, em seu romance de 1948, Walden Two. A contribuição especial de Lovaas foi mostrar que é possível, com a aplicação integral e intensiva de princípios da teoria da aprendizagem, tratar efetivamente, e de forma eficaz, o autismo como um todo, em um número considerável de indivíduos, ou ao menos levar melhorias substanciais para aqueles que não alcançam totalmente os benefícios do tratamento. Por “eficaz” e “substanciais” entende-se que cerca de metade das crianças submetidas às intervenções ABA obtêm desempenho dentro dos limites “normais” em certos testes padrão. Em termos práticos, isso significa que essas crianças são capazes de frequentar a escola sem apoio especial. Antes que Lovaas fizesse isso, já havia provas científicas suficientes que mostravam que a ABA podia ser utilizada efetivamente para aspectos específicos de autismo.
A ABA ainda era bastante jovem quando Lovaas usou o método pela primeira vez para tentar criar um tratamento global para o autismo, na década de 1960. Mas, antes de Lovaas, começando na década de 1950, o trabalho reconhecido como ABA foi aplicado a todos os tipos de problemas de comportamento, tipicamente em pessoas com deficiência de desenvolvimento e esquizofrenia e geralmente em laboratórios e instituições. Grandes programas dedicados à Análise Comportamental Aplicada, como o Departamento de Desenvolvimento Humano e Vida Familiar (Department of Human Development and Family Life, HDFL) da Universidade do Kansas, foram estabelecidos na década de 1960. O HDFL é hoje o Departamento de Ciências do Comportamento Aplicadas. O Journal of Applied Behavior Analysis foi fundado em 1968, quase 20 anos antes de Lovaas publicar seu artigo seminal, em 1987, “Tratamento comportamental e funcionamento educacional e intelectual normal em jovens crianças autistas” (Behavioral Treatment and Normal Educational and Intellectual Functioning in Young Autistic Children), no Journal of Consulting and Clinical Psychology. Assim, ao contrário de praticamente todos os “tratamentos” para o autismo de que temos ouvido falar, ABA não é um novo “método” esperando alguém para fazer um estudo e descobrir se ele funciona em tudo. Intervenções ABA para problemas específicos de comportamento foram baseadas diretamente em princípios descobertos e comprovados em laboratórios comportamentais. Intervenções ABA abrangentes são construídas à partir de tratamentos mais direcionados, que já demonstraram eficácia. ABA não está esperando para entrar em todas as revistas científicas, ela vem de todas as revistas científicas. A pergunta típica não é o quanto a intervenção irá funcionar – esta é a parte fácil – mas se esta pode ser efetivamente aplicada no mundo real, com todas as complicações que o mundo real traz.
Mas, antes de Lovaas, não havia sido estabelecida ainda a possibilidade de efetivamente tratar o autismo como um todo através da criação de um programa abrangente de intervenções ABA. Agora, o termo ABA é muitas vezes incompreendido como significando apenas o que Lovaas fez – sua “terapia de tentativa discreta”, por exemplo – mas “ABA” realmente significa muito mais. O que é ABA? Citando livremente algo que eu escrevi para uma outra finalidade, podemos definir como ABA:
“O uso sistemático de princípios de aprendizagem cientificamente estabelecidos, técnicas de condicionamento comportamental e modificações ambientais relacionadas para criar terapias baseadas em evidências, comprovadamente eficazes e humanas, com o objetivo principal de estabelecer e reforçar habilidades de vida independente, socialmente funcionais e importantes.“
Na prática, uma análise comportamental aplicada utiliza técnicas baseadas na teoria da aprendizagem para modelar comportamentos novos e importantes em indivíduos com determinados excessos ou déficits comportamentais. Intervenções realizadas por analistas do comportamento geralmente incluem os seguintes componentes:
• Uma análise baseada em dados funcionais das condições responsáveis pelo comportamento problema.
• Objetivos e metas de tratamento específicos e verificáveis.
• Um plano bem definido usando os princípios da teoria de reforço para atender as metas e objetivos.
• Uma coleta de dados contínua para mostrar que a intervenção foi realmente a responsável pelos ganhos do tratamento.
• Um plano para garantir a generalização e a manutenção dos ganhos do tratamento.
• Medidas para garantir a validade social dos objetivos e metas do tratamento, e para assegurar que todos os envolvidos possam contribuir de forma substancial e construtiva para a melhoria de suas habilidades ao máximo de sua capacidade.
Eliminar a automutilação e ensinar habilidades acadêmicas para crianças com autismo, restabelecer habilidades de vida independente em pessoas com lesões cerebrais, treinar hábitos de higiene adequados em crianças com enurese, melhorar o atendimento médico a pessoas doentes, estabelecer hábitos de estudo eficazes em crianças em situação de risco, reduzir os hábitos repetitivos como a mania de roer unhas e a tricotilomania e reforçar o comportamento social adequado em pessoas com déficits de habilidades sociais são ilustrativos, mas não esgotam a gama de problemas de comportamento endereçados aos analistas do comportamento aplicados. Há, é claro, e sopa de letrinhas das coisas que realmente são – fundamentalmente – ABA, ou derivadas dela: Treino por Tentativas Discretas (Discrete Trial Training, TDT), Treino de Resposta Pivotal (Pivotal Response Training, PRT), Intervenção Comportamental Precoce Intensiva (Early Intensive Behavioral Intervention, EIBI), Modelo Denver, Apoio Comportamental Positivo (Positive Behavior Support, PBS) e muitos outros. Tem incomodado, ultimamente, os constantes esforços por parte dos promotores de algumas dessas coisas em tentar passá-las como não sendo ABA, ou como não sendo em grande parte baseadas em ABA, mas como algo completamente diferente. Olhe sob o capô: se é de alguma forma eficaz com autismo, você irá encontrar algum tipo de gestão de contingências em funcionamento.
Nomes associados aos esforços iniciais em construir a ABA incluem Paul Fuller, Nathan Azrin, Teodoro Ayllon, Donald Baer, Sidney Bijou, Todd Risley, Jack Michael, Montrose Wolf, Charles Ferster, Kurt Salzinger, Israel Goldiamond, e muitos outros. Aqueles que conhecem um pouco da história recordarão o primeiro esforço sistemático para aplicar ABA ao autismo por Mont Wolf, Todd Risley e Hayden Mees: “Aplicação de princípios do condicionamento operante à problemas comportamentais de uma criança autista” (Application of Operant Conditioning Principles to the Behaviour Problems of an Autistic Child) publicado em março de 1964 no Behaviour Research and Therapy. Eu acho que um bom lugar para encontrar uma visão abrangente da moderna ABA é no excelente livro de Cooper, Heward e Heron, Análise Aplicada do Comportamento (Applied Behavior Analysis). Alguns elementos da ABA também estão contidos na referida edição da American Psychologist, de novembro 1992. No entanto a ABA é um campo enorme, com uma história que remonta, se incluirmos a pesquisa básica, a bem mais de 100 anos. Assim, é impossível para um único livro para captar tudo.
A perda de Lovaas, em si, é uma ocasião de grande tristeza para os seus amigos e colegas. Mas suas contribuições vivem em suas obras e nas obras de seus alunos. Aqueles dentre nós que vieram depois aspiram imitar seu modelo e, assim, talvez, contribuir com uma fração do que ele fez para ajudar pessoas com autismo a conseguir muito mais independência e dignidade do que era possível antes do trabalho de Lovaas mostrar como poderia ser feito.”