Homenagem ao centenário do naturalista Alfred Wallace (1823-1913)

Josmael Corso*

Provavelmente, muitos não sabem, poucos conhecem e um número menor lembra-se que o Brasil abrigou por longo período um dos maiores naturalistas do século XIX. Poderíamos estar nos referindo a Charles Darwin (1809-1882) o que seria verdade, mas este esteve por um pequeno período– quatro meses – e além do mais é bastante conhecido. Refiro-me aquele que ficou à sombra, como dizem alguns, pai esquecido da evolução, dizem outros, Alfred Russel Wallace (Figura 1). Ele que neste ano, em 07 de Novembro, completa um século do seu falecimento e possui méritos de sobra para lembrarmos um pouco da trajetória de contribuições à ciência,que iniciou aqui em solo brasileiro.

Figura1. O naturalista inglês Alfred Russel Wallace (1823-1913) foi um foi um autodidata zoólogo, botânico e filósofo da ciência. Foi fundador da biogeografia e co-fundador da evolução biológica por seleção natural. Fonte: NationalPortraitGallery, London.

Figura1. O naturalista inglês Alfred Russel Wallace (1823-1913) foi um foi um autodidata zoólogo, botânico e filósofo da ciência. Foi fundador da biogeografia e co-fundador da evolução biológica por seleção natural. Fonte: NationalPortraitGallery, London.

O esperado de um naturalista é que tenha feito descobertas de novas espécies, estudado plantas, animais, ou seja, relacionado as ciências naturais, porém, Wallace foi além e se envolveu com também com questões sociais e exatas. Em relação a ciência dos números, incrivelmente ele se meteu a demonstrar que a Terra não é plana, mas antes de chegar nessa questão vamos ler um pouco do seu caminho até lá.

Diferentemente dos primeiros naturalistas da Era Vitoriana, Wallace era fruto de uma família bastante modesta e trabalhou a vida inteira para sobreviver.Aos 14 anos teve que deixar a escola para tornar-se aprendiz de construtor. Pouco tempo depois aprendeu também ofício de agrimensor realizando levantamento de propriedades rurais. A atividade ao ar livre acabou por desenvolver o interesse por história natural, especialmente botânica, geologia e astronomia.

Wallace que nunca estudou em uma universidade, chegou a ministrar aulas de topografia, cartografia e desenho. Como todo grande curioso passava seu tempo livre na biblioteca, imerso em leituras que influenciaram fortemente sua vida futura, como o livro “Uma viagem pelo Rio Amazonas” de William H Edwards (1847) que empolgou a Wallace conduzir sua primeira expedição no Brasil.

Wallace na Amazônia (1848-1852)

Em abril de 1848, ao lado de seu amigo Henry Walter Bates (1825-1892), Wallace chegou à atual cidade de Belém, no Pará. Os jovens aventureiros, Wallace com 25 e Bates 23 anos, esperavam custear a expedição com a captura e venda de espécies coletadas para museus e colecionadores particulares. Bates permaneceu por 11 anos no país e sua principal descoberta ilustra todos os livros didáticos de biologia – mimetismo Batesiano (Figura 2). Wallace a exemplo dos naturalistas do seu tempo mantinha curiosidade em tudo ao seu redor, o que era vivo e não vivo. Escreveu ensaios sobre diferentes campos da biologia, geografia e até sobre antropologia, descrevendo vocabulários das tribos do Rio Uaupés, Amazonas (Figura 3).

Figura 2. Mimetismo batesiano, primeira e terceira fileira pertencem a mesma família, a segunda e quarta fileira são espécies que ‘imitam’ as anteriores. Fonte: Henry Walter Bates 1862, wikipedia.org.

Figura 2. Mimetismo batesiano, primeira e terceira fileira pertencem a mesma família, a segunda e quarta fileira são espécies que ‘imitam’ as anteriores. Fonte: Henry Walter Bates 1862, wikipedia.org

Figura 3. Mapa do Rio Amazonas, realizado por Alfred Russel Wallace durante sua expedição pelo Brasil 1848-1852. Fonte: archive.org

Figura 3. Mapa do Rio Amazonas, realizado por Alfred Russel Wallace durante sua expedição pelo Brasil 1848-1852. Fonte: archive.org

Em 1852, em retorno a sua terra natal, o navio em que se encontrava incendiou-se, perdendo grande parte dos itens coletados, incluído espécimes vivas. A coleção particular de insetos e aves formadas desde que chegou ao Brasil perdeu-se, assim perdendo a oportunidade de descrever centenas de novas espécies. Wallace e a tripulação tiveram muita sorte em sobreviver e foram resgatados após dias em alto mar. Com as anotações que conseguiu salvar do naufrágio elaborou dois livros: Palmeiras da Amazônia e seus usos e Narrativa da viagem ao Rio Negro e Amazonas (Figura 5). Os trabalhos repercutiram certo prestígio que lhe forneceram condições para reiniciar suas atividades de explorador com uma segunda expedição.

Figura 5. Palmeira piaçava (Leopoldiniapiassaba) descrita por Alfred Russel Wallace, espécie amplamente utilizada em construção civil até os dias de hoje. Fonte: wallace-online.org

Figura 5. Palmeira piaçava (Leopoldinia piassaba) descrita por Alfred Russel Wallace, espécie amplamente utilizada em construção civil até os dias de hoje. Fonte: wallace-online.org

Wallace no Arquipélago Malaio (1854-1862)

Durante o período que esteve na região realizou centenas de expedições às ilhas, coletou uma incrível quantidade de espécimes: em torno de 125 mil, próximo de 5 mil eram espécies novas à ciência. As experiências desse período estão relatadas na obra O Arquipélago Malaio (1869), considerado o melhor livro de viagem científica do século XIX, descrevendo a captura de orangotangos, aves-do-paraíso e o convívio com os povos nativos (Figura 6).

Figura 6. Ave-do-paraíso vermelha(Paradisaearubra) umas das incríveis espécies de aves encontradas na região por Alfred Russel Wallace. Fonte: wallace-online.org

Figura 6. Ave-do-paraíso vermelha (Paradisaea rubra) umas das incríveis espécies de aves encontradas na região por Alfred Russel Wallace. Fonte: wallace-online.org

A polêmica correspondência entre Darwin e Wallace O ano de 1858 foi marcado por um acontecimento histórico muito importante para aciência, considerado um impasse entre Wallace e Charles Darwin. Wallace passou anos investigando os mecanismos que atuavam sobre a evolução dos organismos, porém foi através de um episódio de febre por malária, quase custando-lhe a vida que concebeu a teoria pela qual organismos com atributos melhor ajustados ao ambiente possuem uma chance elevada de sobreviver e transferir características aos seus descendentes. Empolgado com sua descoberta escreveu um ensaio e enviou para Darwin, com quem já se correspondia há anos. A teoria de Wallace embora muito semelhante era distinta da proposta de Darwin. Sem prévia permissão de Wallace, seu ensaio juntamente com fragmentos inéditos da futura e mais importante obra de Darwin foram apresentados por membros na reunião da Sociedade Lineana de Londres em 1° de Julho de 1858. Darwin estava a cerca de 20 anos trabalhando em um volume muito maior e detalhado sobre o surgimento de espécies, e muitos estudiosos afirmam que o ensaio de Wallace o auxiliou no estímulo para que concluísse de forma compacta e simples a obra marco das ciências naturais – A Origem das Espécies (1859), publicada 18 meses após a leitura dos ensaios.

Interpretado muitas vezes como uma competição entre os dois naturalistas esse acontecimento permitiu que Wallace se tornasse conhecido e abriu portas para que participasse dos diálogos científicos em grupos restritamente fechados. Wallace pode usufruir dessa oportunidade e manteve se como admirador do trabalho de Darwin, escrevendo uma dedicação no livro O Arquipélago Malaio (1869)e uma obra completa para difundir as idéias sobre seleção natural em Darwinismo (1889).

Wallace e a Terra plana

Em 1870, anos depois do retorno da ultima expedição, Wallace aceita uma aposta com o líder da Sociedade da Terra Plana, John Hampden, no valor de 500 libras – que na época deviam valer muito mais – para provar em publico que a Terra possui curvatura (Figura 7). Para a entidade se a Terra fosse plana, o raio de curvatura seria infinito e não poderia ser medido. Wallace, estimulado pelo desafio e por dificuldades financeiras, desenvolveu um experimento em um canal de navegação. Estabelecendo dois pontos com estacas de mesma altura distantes a cerca de 10km em linha reta no canal acima do nível da água, com auxilio de teodolito. Conseguiu demonstrar que as estacas não permaneciam alinhadas por conta da curvatura da Terra. O teste ainda apontou o raio da terra de 6.428 km, ou seja, levemente maior que a atual estimativa de 6.378 km. Tudo fiscalizado por engenheiros, o juiz da aposta declarou Wallace vencedor, porém o líder ativista não aceitou a derrota e lançou uma extensa campanha de combate à Wallace. Esse fato ficou conhecido como Experimento do Canal Bedford, Wallace ficou envolto em uma batalha judicial que afetou profundamente a sua imagem. Pois as sociedades científicas britânicas da época não queriam conflitos com grupos religiosos, mantiveram-se apáticos e deixaram Wallace desamparado academicamente.

Figura 7. Ilustração mostrando, acima, o experimento do ativista da Sociedade da Terra Plana, e abaixo o experimento de Alfred Russel Wallace.Fonte: Wallis, T.W. (1899) Autobiography ofThomas Wilkinson Wallis, Sculptor in Wood, p. 181, J.W. Goulding& Son.

Figura 7. Ilustração mostrando, acima, o experimento do ativista da Sociedade da Terra Plana, e abaixo o experimento de Alfred Russel Wallace. Fonte: Wallis, T.W. (1899) Autobiography of Thomas Wilkinson Wallis, Sculptor in Wood, p. 181, J.W. Goulding& Son.

Contribuições de Wallace a Ciência

Wallace durante seus 90 anos de vida produziu 22 livros e mais de 700 artigos englobando uma grande diversidade de temas. Atualmente, Wallace foi reconhecido por suas contribuições à ciência entre elas é considerado o pai da biogeografia pela descoberta da descontinuidade da distribuição da fauna. Também é considerado co-fundador da astrobiologia e antropologia evolutiva, sendo o primeiro a sugerir que a extinção de animais no final do Pleistoceno (Era do Gelo – 12 mil anos atrás) poderia ter sido causado por excesso de caça pelos humanos pré-históricos. Foi presidente da Sociedade pela Nacionalização de Terras por cerca de 30 anos promovendo discussões sobre a reforma agrária na Inglaterra.

Embora pouco popular Wallace foi membro de um grande número de sociedades acadêmicas, recebendo títulos e premiações de diversas universidades e instituições. Entre elas recebeu a medalha de Ordem de Mérito em 1908, premiação fornecida pelo império britânico. Foi a quinta personalidade a receber a medalha de ouro da Sociedade Lineana, em 1892. A mesma sociedade estabeleceu o prêmio ‘Medalha Darwin-Wallace’ para descobertas relacionadas à biologia evolutiva, uma forma de reconhecer e reparar as contribuições de Wallace.

Pelos menos duas hipóteses podem explicar o menor reconhecimento acadêmico de Wallace: pertencia a uma classe sócio-econômica diferente da tradicional elite social inglesa, responsável pelo conhecimento científico reconhecido na época; envolveu-se e escreveu sobre espiritismo, embora houvessem membros religiosos na academia científica, não eram espíritas. Em conjunto, esses fatos podem ter refletido para aresistência as suas ideias pela sociedade que dominava o cenário científico.

Alfred Russel Wallace possui muitas razões para ser lembrado neste mês e todos os outros. Representa um fantástico exemplo de autodidata, aventureiro, cientista e mais importante de tudo um curioso. O nome de Wallace deve ser posto ao lado de Galileu, Darwin, Einstein, entre outros gênios. Gradualmente as suas contribuições à ciência e a humanidade estão sendo reconhecidas e tributos tendem a aumentar ao passo que se conhece mais sobre esse singular naturalista.

 

*Josmael Corso é Doutorando em Genética e Biologia Molecular – UFRGS