Um homem entre gigantes | Quando a ciência “bate de frente” com a NFL
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do ScienceBlogs Brasil
O filme “Um homem entre gigantes” (“Concussion” no título original), foi lançado em 2015 nos EUA é a história real do médico que através de ciência coloca em pauta o embate entre a ganância empresarial – que só visa lucrar – e o conhecimento científico – em prol de ajudar a salvar vidas. Em tempos de pandemia, em que a ciência luta mais uma vez para ter voz em meio ao panorama econômico, falar sobre esse filme se torna mais relevante ainda.
No longa, Will Smith dá vida ao Dr. Bennet Omalu, um neuropatologista nigeriano que lançou luzes a um problema recorrente, porém “invisível”. Omalu dizia estudar a “ciência da morte”. Atuava como médico legista em uma agência pública e sua postura chamava a atenção pela forma respeitosa com a qual lidava com os cadáveres durante as necropsias. Ele conversava com os mortos e pedia ajuda para entender o que poderia ter acontecido ainda em vida para que houvesse aquela morte. O respeito pelos mortos é oriundo da cultura africana Bantu, a qual pontua a importância de cultuar os corpos corretamente uma vez que a morte e doença para os bantus não são fenômenos naturais, mas sim atribuídos a algum fator específico.
O enredo se passa na cidade sede do time de futebol americano Pittsburgh Steelers, e mostra o ex-astro do time Mike Webster tendo uma série de comportamentos fora de controle. Webster morre de infarto, mas seu histórico de loucura, ainda que com apenas 50 anos, chama a atenção de Omalu, que insiste em investigar a real causa por trás dessa morte. O médico se pergunta o porquê de um cérebro que deveria estar uma bagunça não mostrar nenhuma alteração visual aparente.
O filme aborda o processo do método cientifico e traz um pouco do que seria o estereótipo de um cientista. Uma casa cheia de livros espalhados, um microscópio em cima da mesa e evidenciando por várias vezes ao longo da trama a dedicação do personagem à pesquisa acadêmica.
Após fazer várias análises microscópicas do cérebro de Webseter e um levantamento bibliográfico sobre colisões em outras espécies, ele chega a conclusão de que enquanto vários animais possuem um sistema de amortecimento de choque para proteger o cérebro, os humanos não. E, que colisões da dimensão das que ocorrem em jogadores de futebol americano ao longo do tempo levaria a uma série de eventos neurológicos graduais, a qual ele nomeou Encefalopatia Traumática Crônica (ETC). Seus achados em conjunto com seus colegas foram publicados em 2005 em uma revista científica com o título “Encefalopatia traumática crônica em um jogador da liga de futebol americano”.
Hoje se sabe que a ETC é uma lesão cerebral causada por repetidas concussões, comum no mundo dos esportes. O cérebro de quem sofre de ETC vai se deteriorando e começa a perder massa, bem como tem a liberação e acúmulo de proteínas que alteram a função cerebral, como no Mal de Alzheimer, o que levava muitas vezes a um diagnóstico equivocado.
A trama chama atenção também pelas vezes em que o médico tenta explicar a doença de forma acessível ao público leigo. Em uma das cenas o médico diz que as proteínas liberadas no cérebro são como jogar cimento úmido em um cano, e quando endurecem, comprimem a passagem, algo semelhante aconteceria no cérebro de portadores de ETC.
Omalu pretendia chegar a uma forma de resolver este problema e garantir a vida saudável dos praticantes do esporte. O que ele não imaginava era o tamanho da briga que estava comprando. A ETC não era apenas uma descoberta acadêmica, mas também uma luta contra uma grande corporação que movimenta bilhões por ano. Será que os jogadores continuariam na profissão cientes de que poderiam ter problemas neurológicos no futuro? Será que as mães continuariam incentivando os filhos nesse esporte? Pra NFL – a liga de futebol americano – esse seria o fim do esporte.
Diante disso, o filme aborda a NFL fazendo de tudo para parar essa pesquisa clínica, indo de ligações ameaçadoras e perseguições a seus colegas de trabalho e família, a exigências de cartas de retratação. A liga quer desacreditar o médico e todo seu estudo científico. Porém Omalu segue firme em seu propósito e conforme os mesmo sintomas se manifestam em outros jogadores, a existência da ETC é reafirmada. Seu parceiro de pesquisa e ex-médico dos jogadores consegue falar sobre os achados de Omalu na cúpula geral da Liga sobre concussão. Mesmo assim, a NFL segue tentando fazer vista grossa para os estudos ainda que o número de casos fossem suficientes para a aprovação científica.
A NFL não se pronunciou sobre os casos por um longo tempo. Só em 2016, mais de 10 anos depois dos achados de Omalu a NFL se pronunciou dizendo que acreditava que pudesse existir uma relação entre o futebol americano e a ETC.
O filme fecha com Omalu dizendo que os mortos o dão o “Presente do Saber” pois através deles se chegou a descoberta de uma doença que acomete 28% dos jogadores. Desde então a NFL sofreu uma série de processos dos jogadores por não estarem cientes do risco de suas profissões. Ao fim, o longa mostra o reconhecimento científico de forma verossímil, o quão árduo foi o processo para que a ciência tomasse voz em um meio onde só se pensa em lucrar, independente de quantas vidas isso custe. Em um trecho o filme faz alusão à luta contra a indústria do tabaco nos anos 90.
Também são abordadas algumas questões culturais como o racismo sofrido pelo médico por ser preto nigeriano, tendo sua capacidade duvidada a todo tempo. Em alguns momentos teve seus achados apresentados por outro médico para que suas descobertas fossem validadas. Isso nos trás a reflexão sobre a suposta superioridade americana e seus preconceitos. Podemos perceber a dificuldade do médico e cientista para que dessem voz ao conhecimento, o quanto ele precisou sair da zona de conforto para que fosse ouvido.
“Se eu negar meu trabalho, homens continuam morrendo”. Essa frase de Omalu traz a uma reflexão bem atual como levantei no início do texto. Quantas vidas poderiam ter sido poupadas, se tivessem dado a atenção devida às pesquisas que alertavam sobre o Coronavírus no início dos anos 2000? Os mercados chineses, em nome do lucro, mantiveram seu comércio com diversos animais silvestres, ainda que a ciência já tivesse emitido seus alertas. Ok, esse assunto é longo e tema pra uma outra resenha mas ilustra o quão atual é a questão.
Por fim, a trama mostra o impacto direto da ciência sobre a vida humana e seus benefícios para a sociedade e nos inspira como cientistas a travarmos a nossa luta diária em defesa do conhecimento.
A título de curiosidade, em 2017, 12 anos após a primeira descoberta sobre a doença, Omalu publica pela primeira vez um artigo sobre um caso de ETC em uma pessoa viva. Tal fato ilustra o quanto o processo de “fazer ciência” é um processo árduo, lento, levando também a reflexão acerca dos desafios diários do mundo científico, independente de vieses econômicos e políticos.
O filme rendeu uma indicação ao globo de Ouro como melhor ator a Will Smith e encontra-se disponível no Netflix.
Aqui o trailer do filme:
Kamilla Avelino de Souza. Bióloga e doutoranda em Ciências Morfológicas pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faço parte da equipe de colunistas do site “Ciência Explica” e amo divulgar ciência de forma geral.