Alea jacta est*

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Por Fernando “Joey Salgado” Heering Bartoloni

O Problema de Monty Hall é um exemplo interessante de que o simples cálculo de uma probabilidade não necessariamente leva à resposta correta, sendo necessário se entender todo o desenvolvimento lógico de um dado problema.
Retomando brevemente o que já foi dito: após você ter escolhido a porta de número 2, seu orientador abre a porta de número 3 para lhe revelar uma pilha de relatórios da graduação ávidos por correção, que deverão ser passados para algum outro aluno de pós coitado (ou você achou que ele ia corrigir? rá!). Ou seja, sua porta de número 2 ou contém seu exemplar final da tese, chave para abrir os grilhões das sombras, ou uma segunda pilha de relatórios precisando de correção. Ainda, há a possibilidade de que você continue apostando na porta de número 2 ou mude para a de número 1, esperando que um golpe de sorte lhe seja benéfico. Tecnicamente, pensando em termos somente dessa segunda etapa, onde ambas as portas possuem chances iguais de terem qualquer um dos dois itens, trocar ou não trocar de porta não influência no resultado, uma vez que a chance de ser vitorioso é de 50%. 
Entretanto, a resposta correta é trocar de porta, de qualquer forma, para se aumentar as possibilidades de se ganhar o tão desejado prêmio. O motivo?
Dois cenários diferentes podem ocorrer decorrentes da primeira escolha de portas: você escolheu a porta que contém a tese (cenário A) ou a porta que contém a pilha de relatórios (cenário B). No cenário A, as duas portas que sobraram contém itens iguais. Uma vez que seu orientador precisa abrir uma delas para lhe revelar o conteúdo como sendo uma pilha de relatórios, a escolha de qual será é, em si, irrelevante. Ou seja, trocar a escolha da porta irá inevitavelmente fazer com que você passe a noite em claro. No cenário B, seu orientador possui duas portas com itens diferentes, sendo que ele deverá abrir uma delas para lhe mostrar o conteúdo. Como definido no problema (e um pouco por sadismo também) seu orientador, que sabe qual é o conteúdo de cada uma das portas, irá escolher a porta que contém a pilha de relatórios para ser aberta (aumentando a tensão final e a sudorese). Ou seja, no cenário B, a opção de trocar de porta irá lhe beneficiar e garantir seu sono. Como o cenário B possui uma probabilidade duas vezes maior (2 em 3, ou 66,666…%) de acontecer do que o cenário A (1 em 3, ou 33,333…%), trocar de porta sem pestanejar é, no fim das contas, a melhor opção para se livrar de uma tarefa hercúlea e ser admitido no Olimpo dos pós-graduados.
Fez bem quem optou trocar de porta: Davi e Hugo.
E melhor fez o Igor, que optou por fundir o cérebro do orientador.
*expressão em latim para “os dados estão lançados”.

É a porta dos (pós-graduandos) desesperados!

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Por Fernando “Joey Salgado” Heering Bartoloni

Li o tão aclamado livro de Leonard Mlodinow, The Drunkard’s Walk (Penguin Books, adaptado para o português como O Andar do Bêbado, Ed. Jorge Zahar).

Ainda não me decidi se gostei ou não gostei deste livro em que Mlodinow mostra como nossa noção de racionalidade é muito subjetiva e alheia a processos randômicos que ocorrem em nossas vidas. Apesar da leitura ser meio densa, uma vez que ele enrola demais para chegar aos finalmentes de certos pontos e devido a um preciosismo dispensável no formalismo matemático usado em alguns momentos, incontestavelmente, as histórias contadas por Mlodinow são excelentes. Tanto que teve uma que me deixou deveras pensativo.

Na verdade, é uma demonstração muito clara de que o emprego da lógica para a solução de um problema não depende somente da matemática, mas do problema como um todo. Irei apresentá-lo em uma versão modificada em relação ao livro e deixarei o “enigma” aqui pendente até semana que vem, quando irei publicar a solução do mesmo. Palpites ou resoluções completas são bem vindas nos comentários. Até por quem já leu o livro, ainda mais porque me parece que esse “estudo de caso” é bem conhecido de maneira geral. 😉
Seguinte…
Digamos que seu orientador do doutorado, que por acaso também ministra uma disciplina da graduação em que você é monitor, lhe oferece a oportunidade de escolher uma entre três portas, numeradas de 1 a 3, para “ganhar” seja lá o que for que estiver escondido atrás da mesma (a pós-graduação, afinal, é uma loteria…).
Ele então lhe diz que uma das portas esconde o exemplar final da sua tese, pronta para ser depositada e defendida no prazo, enquanto que as outras duas escondem pilhas de centenas de relatórios da turma do diurno e noturno da “Introdução à Orgânica Experimental”, que devem ser corrigidos até o dia seguinte. Você deve escolher uma entre as três portas, ao passo que, após a sua escolha, o seu orientador, que está ciente do que está por trás de cada uma delas, abre uma das duas portas que não foram escolhidas para revelar o que você “perdeu”. Digamos que você escolheu a porta de número 2. Seu orientador, então, abre a porta de número 3, somente para lhe revelar uma pilha de relatórios sem notas. Por enquanto, ufa! Logo após esse sopro de alívio momentâneo, ele lhe oferece trocar de porta ou continuar na mesma. Ou seja, uma vez que você viu que a porta de número 3 não possui sua tão sonhada tese, você deve decidir se continua apostando na porta de número 2, ou se muda de aposta para a porta de número 1. Dito se a troca será realizada ou não, seu orientador irá revelar, com um prazer sádico, diga-se de passagem, se a sua madrugada será passada na companhia prazerosa de Morfeu, ou na companhia amarga da Cafeína. 
A pergunta, finalmente, é: qual o melhor negócio? Se manter firme e forte com a porta de número 2, ou mudar de ideia e trocar a aposta para a porta de número 1?
Divirtam-se!

Fim de jogo

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Por Fernando “Joey Salgado” Heering Bartoloni
Aproximadamente há quinhentas e quatro horas, ou vinte e um ciclos claro/escuro, no dia 27 de novembro outubro de 2010, passei por uma das experiências mais assustadoras e, ao mesmo tempo, gratificantes que um homem ou mulher podem ter: uma defesa de doutorado (o que mais poderia ser?).
Meus 23,6 MB de produção científica, intitulados “Mecanismos do Sistema Peróxi-Oxalato em Meios Aquosos e da Quimiluminescência de 1,2-Dioxetanonas”, foram avaliados por uma banca composta pelos professores Fernando Coelho (UNICAMP), José Carlos Netto-Ferreira (UFRRJ), Frank Quina (IQUSP) e Omar El Seoud (IQUSP), bem como pelo meu orientador Josef Wilhelm “Willi” Baader. Todos os professores fizeram valiosas sugestões e muitas perguntas, algumas que pude responder e outras que nem consegui compreender. De maneira geral, achei que me saí bem (quem assistiu também achou), não falei nenhuma besteira e, principalmente, não chorei quando o resultado da aprovação da banca foi divulgado. 
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A banca (da esquerda para direita): professores José Carlos, Fernando, Willi, Omar e Frank.
Rindo de que ou de quem? 
Devo dizer que foram quase cinco anos, ou praticamente sete anos, se contado o tempo de iniciação científica, agradabilíssimos dentro do grupo de pesquisa do Prof. Willi. Apesar de ter terminado essa fase de pré-cientista, sei que não irei me afastar do meu (agora) ex-laboratório, uma vez que pretendo manter colaborações com o mesmo durante meu pós-doutorado, de alguma forma que ainda não foi concebida. Mas inventarei algo. 
Aliás, no momento em que iniciava a preparação esse texto, recebi um e-mail de aprovação do meu pedido de bolsa de pós-doutorado para trabalhar com o Prof. Erick Bastos da UFABC, o que, de certa forma, me instigou ainda mais a escrevê-lo (e a abrir uma garrafa de cerveja também, claro). Terminei um jogo, mas começarei outro logo mais.
Espero continuar assim por tanto tempo quanto minha curiosidade científica permitir.
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Essa foto vou guardar para quando me candidatar a Vereador.

Síntese de proteínas: um épico no nível celular*

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Por Fernando “Joey Salgado” Heering Bartoloni
Todo fenômeno científico pode ser entendido com base em um modelo simplificado, principalmente quando o “mecanismo” associado a esse evento não pode ser visto a olho nu (já não falei disso? Que falta de imaginação…).
Isso é tão verdade hoje quanto será daqui há muitos anos e como era em 1971, quando o pessoal do Departamento de Química da Universidade de Standford resolveu tomar um ácido e encenar o processo de tradução do RNAm para a síntese de uma proteína. Desde a formação do ribossomo, à entrada da fita de RNAmensageiro, ao papel do RNAtransportador e à liberação do novo polipeptídeo formado, entre outros processos, tudo é representado de forma artística. Atribuir isso à cultura hippie da época, traçando um paralelo com o Festival de Woodstock, é inevitável, ainda mais com uma banda fazendo um som totalmente improvisado à la Grateful Dead como trilha sonora da sessão de expressão corporal. O épico mesmo começa aos 3 min 10 s, logo após uma introdução esclarecedora de Paul Berg, laureado com o Nobel de Química em 1980 pela sua contribuição dada para o esclarecimento de processos químicos envolvendo ácido nucléicos. O próprio Berg reconhece a limitação do seu modelo estático desenhado no quadro-negro antes de dar espaço aos hippies da liberdade de acesso ao conhecimento. Em todos os sentidos.
Precisão da informação científica passada junto com poesia. Sensacional.
Each tRNA approached the site
Bearing it’s amino acid load
Whose sequence was determined by
The mRNA messaging-unit “magic code”

Ou ainda:

Long time did biocomplex churn
The protein grew by tibs & tomes
Aminoacids linked in turn
By the catalytic ribosome

Muito mais interessante do que uma animação sem música e sem graça, não é?


*Tradução livre do título original do vídeo “Protein synthesis: an epic on the cellular level”.
Via Prof. Erick Bastos, por e-mail.

Do modelo à realidade?

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Por Joey Salgado
Em 1900, um pescador procurando esponjas na pequena ilha de Anticitera, nas Cíclades (agora você sabe onde fica exatamente, né? ¬¬’) encontrou restos naufragados de um navio grego que continha, entre estátuas, vasilhas, jarros de vinho e moedas, um amontoado corroído de peças de metal. Esse aglomerado de peças, com quase dois mil anos de idade, era composto por um intricado arranjo de rodas dentadas sem utilidade aparente. Foi então que Derek de Sola Price, entre os anos 50 e 70, submetendo o conjunto a análises por raios-X, pôde reconstruir o complexo mecanismo composto por trinta e duas rodas dentadas (tem quem fale que sejam até trinta e sete, outros, até setenta e duas rodas dentadas). Price concluiu que tal mecanismo, nada mais nada menos, deveria ser utilizado para calcular as posições do Sol e da Lua contra o pano de fundo das estrelas, ou até mesmo o movimento do que seriam alguns planetas.

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Radiografias do mecanismo (fonte), um esquema mostrando o arranjo das engrenages (fonte) e uma réplica (fonte). 
O Mecanismo de Anticitera é o mais antigo exemplar que se tem notícia da aplicação de engrenagens diferenciais, o que o torna um achado arqueológico fora de série.[1] A precisão na fabricação do mesmo indica que na Grécia haviam profissionais especializados na construção de máquinas com engrenagens e em fresagem, capazes de exportar do “papel” uma série de observações astronômicas para compor um computador analógico de alta precisão (para a época, logicamente). Não mais era necessário se voltar os olhos para cima para se entender  o movimento do Sol, Lua e alguns planetas. Com o girar de uma manivela, podia-se ver o passado e o futuro dos céus em suas mãos. 
Se não mais era necessário se observar os céus para entendê-lo, quais seriam as consequências disso? Segundo Christopher Zeeman em seu artigo “Gears from the Greeks” (Proc. Roy. Inst. Gt. Brit. 1986, 56, 139), como citado por Ian Stewart em “Será que Deus joga dados?” (Jorge Zahar Editor Ltda., 1991, p. 34):[2]
Primeiro vieram os astrônomos, observando os movimentos dos corpos celestes e coletando dados. Em segundo lugar vieram os matemáticos, inventado a notação matemática para descrever os movimentos e ajustar os dados. Em terceiro vieram os técnicos, fazendo modelos mecânicos para simular aquelas construções matemáticas. Em quarto vieram gerações de estudantes, que aprenderam sua astronomia a partir dessas máquinas. Em quinto vieram cientistas, cuja imaginação estava tão ofuscada por gerações de tal aprendizado que de fato acreditam que era daquele modo que os céus se comportavam. Em sexto vieram as autoridades, que defendiam o dogma estabelecido. E assim a raça humana foi induzida a aceitar o Sistema Ptolomaico por cerca de um milênio.
De fato, Kepler (1571-1630) se mostrou reticente a abandonar o Sistema Ptolomaico. A ideia de que o Universo podia ser entendido segundo a ação de mecanismos invisíveis e da geometria clássica era muito sedutora. O mesmo propôs, por exemplo, um modelo que relacionava as órbitas planetárias com a forma dos poliedros regulares. Por sorte, Kepler não foi cabeçudo ao ponto de negar a ciência “simplesmente” porque seu modelo não se ajustava às observações experimentais e, pouco depois, viria a abandonar sua teoria.

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Modelo de Kepler relacionando a distância entre as órbitas planetárias com os cinco sólidos platônicos, os poliedros regulares (fonte).
Não posso deixar de aplicar a especulação de Zeeman, feita originalmente para a classe intelectual grega, aos dias atuais. O que mudou nesse sentido? O que acontece quando mostramos (desculpem-me, mas irei puxar a sardinha para o meu lado agora) a representação de uma molécula de etanol na forma da sua estrutura de Lewis para um aluno de colégio/graduação? Ele vê uma série de letras H, C e O ligadas por tracinhos, ou um arranjo esquemático da distribuição não-espacial dos átomos de hidrogênio em torno dos átomos de carbono e de oxigênio, seguindo a regra do octeto? E, de fato, de quem é o problema se o aluno acredita piamente que aquilo são apenas tracinhos e letras? Do educador ou do aluno? Na minha opinião, há a necessidade de que os dois lados se esforcem para contornar esse problema. Um precisa manter o compromisso de deixar claro que certas coisas (em ciência, de forma geral) são apenas representações simplificadas da realidade, ao mesmo tempo que passa essa informação de forma estimulante e não meramente em um “nesse slide 347 vemos a estrutura de Lewis para o blá-blá-blá…”. Enquanto isso, o outro precisa se acostumar a abstrair certos conceitos e fatos pouco intuitivos, desapegando-se do “vejo, logo, existe” (isso, ou também deveria se crer que o Sérgio Chapelin está em um cenário de madeira e aço escovado com telas translúcidas).[3]
Creio que a melhor forma de se mostrar que um modelo é apenas um modelo é deixando claro as suas limitações. Se o modelo de Lewis de uma molécula dá a falsa impressão da mesma ser plana, um modelo tridimensional mostra mais adequadamente seus ângulos e distâncias de ligação. Para deixá-lo ainda mais completo, basta se incluir os movimentos vibracionais da molécula em uma animação. Logicamente, o refinamento dos modelos existentes para representar moléculas, ou qualquer outra coisa que não possamos ver apropriadamente a olho nu, foi aumentando com o passar do tempo. O modelo de estruturas de Lewis é algo muito simples para se representar uma molécula, mas conceitualmente importante dentro da história da química. Cientistas que aprenderam a desenhar estruturas químicas com ele perceberam suas limitações. Mais observações experimentais vieram. Teorias para a formação de ligações químicas mais adequadas surgiram. E modelos mais próximos da “realidade” foram implementados para representar a estrutura de moléculas. Hoje, podemos até simular a complexa dinâmica molecular de proteínas

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Estruturas de Lewis e tridimensional (fonte) representando a molécula de etanol.
A mesma coisa ocorreu com a observação dos céus. Se em um dado momento o Mecanismo de Anticitera era o melhor modelo astronômico que podia ser comprado com escravos (ok, essa piada foi péssima…), hoje o mesmo não passa de peça de museu. Mas apesar de sua acurácia científica ser refutável, sua relevância histórica não o é. De certa forma, o ensino da maioria das ciências que necessitam de representações simplificadas é prejudicada quando somente é apresentado o modelo e não o contexto histórico em que este está inserido. Se tal contexto histórico fosse mais bem explorado por educadores de ciências em geral, garanto que a maioria dos alunos entenderia melhor porque supostamente juntamos as letras com palitinhos, giramos manivelas e ponteirinhos, entre outras coisas…
Cada vez mais os modelos se aproximam da realidade, à medida que a ciência avança. Afinal de contas, saber como uma proteína se comporta no vácuo é algo que não adianta muito, não é mesmo? Queremos vê-la se remexendo junto com outras moléculas de proteína, interagindo com o solvente, na presença de certos metabólitos e enquanto a temperatura aumenta. Ver o movimento do Sol e da Lua? Ótimo, interessante, mas quero ver as órbitas elípticas de todos os planetas do sistema solar, acopladas aos seus movimentos precessionais, juntamente com o movimentos de seus satélites naturais e enquanto todos revolucionam em volta do Sol. Complicado? Sim, muito. Ainda mais que seja lá qual for o resultado que a simulação por esse ou aquele modelo irá cuspir, o mesmo deve concordar com as observações experimentais, caso existam. E tudo para se aproximar da realidade, mas nunca substituí-la.
Alguns modelos, infelizmente, são mais intragáveis que outros. Falar de movimento dos planetas é relativamente fácil (ah, falou…¬¬), basta pegar um telescópio e olhar para cima, confirmando-se essa ou aquela teoria. Agora, quer algo pior do que um orbital atômico? Como raios demonstrar que um elétron possui uma probabilidade de 90% de estar contido dentro de uma determinada região no espaço e que não sabemos sua velocidade e posição simultaneamente? Com bolinhas? Sim, com bolinhas. Ou com um gráfico representando a dispersão dessa probabilidade, à medida que a distância com o núcleo aumenta. Mas para o orbital 1s “redondinho” é fácil. E para o 2dz2, que parece uma estação espacial saída direto de Star Trek? E como falar que no orbital 2dz2 o elétron saltita de uma região colorida para outra sem passar pelos espaços vazios, somente por que uma conta, uma resolução de uma fórmula matemática, sugere isso? Tenso, não é? Mas é isso mesmo que ocorre, por mais contra-intuitivo que pareça.

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Representações do orbital 1s (fonte e fonte).

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Representação do orbital 2dz2 (fonte).
A verdade é que modelos para coisas micro são muito mais complicados de se assimilar do que para coisas macro, ou em média escala, pelo menos. Principalmente porque nunca poderemos ver por conta própria, sem o auxílio de um aparato que converte sinais eletrônicos em imagens, a forma de uma molécula, de um orbital, de um átomo, a orientação do spin de um núcleo e por aí vai, para confirmar nossa observação indireta. Afinal, o que é um quadro retratando o rosto de uma pessoa se não um modelo para um rosto? O mesmo é somente uma representação geométrica de algo que foi intensamente observado, mensurado e modelado pelo artista. Porque, então, que aceitamos tão naturalmente esse modelos? Simplesmente porque podemos olhar no espelho e confirmar o que nos desenharam. E naturalmente, algumas pinturas de rostos são muito melhores que outras, simplesmente porque representam melhor essa observação experimental.
É duro o trabalho daqueles que tem que encontrar uma representação fictícia para um fenômeno real, que de outra forma não pode ser “contemplado”. E para o sucesso dessas representações, faz-se necessário que as pessoas que as usam entendam e deixem claro sua verdadeira utilidade, para que aqueles que recebam tal informação não corrompam seu significado. Para que abaixo de concepções artísticas como essa:
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Não se encontre comentários como esse (fonte):
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Combinado?
(Pô, é tão difícil assim ler a legenda das “fotos”…)
NOTAS:
[1] O grande Kentaro Mori já havia escrito um texto excelente (muito melhor que este…) relatando a descoberta e o provável funcionamento do Mecanismo de Anticitera.
[2] E também comentado brevemente pelo Mori, no 22° parágrafo.
[3] Não, essa piada não é minha. Mas também não lembro quem é o autor.

Uma luz dentro de células

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Por Joey Salgado


A Fernanda Poletto, do excelente Bala Mágica, publicou recentemente um texto falando sobre Armas Mágicas (quanta mágica por aqui…), o qual recomendo fortemente a leitura. O conceito de Armas Mágicas se resume a uma metodologia capaz de promover a internalização de fármacos em tumores, através da utilização de peptídeos chamados de iRGD. Os iRGD “guiam” o fármaco até o tumor e “abrem a porta” para que o mesmo entre na célula tumoral, aumentando assim a especificidade de sua ação. 

Achei sensacional a utilização desses peptídeos iRGD para o carregamento do fármaco e, por conta disso, recordei-me de um trabalho relativamente recente (2006 tá novo ainda?), onde uma certa sequência de peptídeos mostrou-se fundamental para a proposta de uma nova técnica. Em 2006 (quatro anos… tá novo, foi a menos de uma Copa do Mundo atrás…), Jones e colaboradores, da Universidade de Standford (sempre eles…) demonstraram a possibilidade de se utilizar oligopeptídeos contendo oito resíduos de arginina como cross-coupling peptides (ou CCP) de moléculas conjugadas com luciferina (lembra dela?). O princípio da técnica é demonstrado na figura abaixo.[1]

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Vamos por partes. Oligopeptídeos de arginina, principalmente esses contendo oito unidades desse aminoácido, são chamados de cross-coupling peptides justamente por possuírem a capacidade de permearem através da membrana lipofílica de células, chegando ao citoplasma da mesma. A subunidade em verde da molécula na figura acima diz respeito à sequência de CPPs. Pelo fato de permearem por membranas lipofílicas, ao mesmo tempo que são solúveis em meio aquoso, CPPs podem ser conectados a outros peptídeos, fármacos ou agentes marcadores, formando os chamados “conjugados”, que podem ser carregados para dentro de uma célula. Já na época do trabalho, o mesmo grupo de pesquisas havia apresentado a utilização de CPPs conjugados com ciclosporina A, um imunossupressor, para “entrega” de drogas em tecidos vivos.[2] O problema, de certa forma, é que a velocidade com que a entrega do fármaco era realizada, ou de qualquer outra molécula conjugada ao CPP, era desconhecida até então. Sabia-se que o CPP realizava a entrega, visto que os efeitos do fármaco eram observados, mas não se tinha ideia de quanto tempo era necessário para o mesmo permear para dentro da célula e/ou para liberar o fármaco.

No sentido de se desenvolver uma técnica que permitisse avaliar a eficiência e a velocidade da “entrega” de um determinado conjugado com CPP, em tempo-real e in vivo, chegou-se a conjugados de CPP com luciferina, como já demonstrado na figura acima. A luciferina (destacada em azul) está conectada ao CPP (em verde) através de uma molécula-ponte (em vermelho). Tal molécula-ponte está conectada ao CPP por uma ligação disulfeto S-S (em vermelho e verde), que quando na presença de glutationa intracelular (GSH) é rapidamente clivada, liberando a molécula de luciferina. Utilizando-se tal conjugado em células de organismos transfectados com o gene luc de vaga-lumes, responsável pela expressão da enzima luciferase, o par luciferina/luciferase emite luz, que pode ser registrada em tempo-real por uma câmera.

Dessa forma, mostrou-se ser possível averiguar a eficiência e a velocidade de permeação de CPPs de arginina, utilizando-se esse conjugado com luciferina como modelo para entrega intracelular de drogas. Apesar do sucesso obtido pelos autores, parte da complicação em se utilizar tal técnica reside na síntese do conjugado, que não é trivial, e no fato de que devem ser utilizados organismos geneticamente modificados para avaliação do modelo. Contudo, a técnica equivalente, que utiliza CPPs conjugados com moléculas fluorescentes, apesar de possibilitar que se faça a avaliação da liberação de drogas in vitro, não é funcional para sistemas in vivo e não permite o acompanhamento da mesma em tempo-real. Outra opção, o uso de CPPs conjugados com moléculas contendo radioisótopos, possibilita a observação in vivo, mas não tem resolução suficiente para determinar se o conjugado marcado se encontra dentro ou fora da célula e não permite saber se a molécula marcada que simula o fármaco ainda está ligada ao CPP (o radioisótopo emite radiação independente se foi liberado dentro do meio celular ou não).

Este é um exemplo de um belo trabalho, na minha opinião, que apresenta uma técnica fenomenal, capaz de modelar em tempo-real a entrada em células de drogas conjugadas a CPPs, e que ao mesmo tempo permite as observações da liberação intracelular da mesma e da interação com um receptor enzimático.

Que beleza esses peptídeos, né não?!

Referências e notas:

[1] Jones, L. R.; GOun, E. A.; Shinde, R.; Rothbard, J. B.; Contag, C. H.; Wender, P. A.; “Releasable Luciferin-Transporter Conjugates: Tools for the Real-Time Analysis of Cellular Uptake and Release” J. Am. Chem. Soc. 2006, 128, 6526. DOI: 10.1021/ja0586283.

[2] Rothbard, J. B.; Garlington, S.; Lin, Q.; Kirschberg, T.; Kreider, E.; McGrane, P. L.; Wender, P. A.; Khavari, P. A.; “Conjugation of arginine oligomers to cyclosporin A facilitates topical delivery and inhibition of inflamation” Nat. Med. 2000, 6, 1253. DOI: 10.1038/81359.

Que se faça a luz!

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Por Joey Salgado

Não há quem nunca tenha se impressionado com vaga-lumes perambulando noite adentro. Aquelas gracinhas luminosas piscando feito luzes de natal, parecem faíscas geradas espontaneamente no ar, como inclusive observou Aristóteles e seus asseclas pouco mais de um par de milhares de anos atrás.[1] Para a mente mais inquisidora, seguinte à observação do fato de um inseto curiosamente poder emitir luz, talvez venha esse questionamento: como ele consegue fazer isso? De fato, o processo é um tanto complicado, envolvendo substratos específicos e catálise por enzimas adequadas, além de um ou outro metabólito biológico.
Expandindo-se o número de dados oferecidos para apreciação de vocês, leitores, cito o exemplo dos lightsticks, aqueles brinquedinhos de festas de casamento que geralmente são distribuídos quando a banda já começou a tocar “Balão Mágico” e coisas do gênero. Como o nível alcoólico no sangue geralmente está alto nessa altura do campeonato, talvez isso não desperte tanto o interesse e curiosidade das pessoas quanto vaga-lumes, geralmente encontrados em ambientes mais “verdes” e “limpos”. Mas lightsticks tem mais em comum com esses insetos do que outros insetos tem com vaga-lumes, por incrível que pareça.
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Nesse ponto, talvez seja importante se definir alguns termos. Uma reação química que emita luz como um dos seus produtos de reação é dita quimiluminescente, como definido por Wiedemman em 1888.[2] Se o mesmo processo ocorre em um organismo vivo, e não dentro de uma vidraria de laboratório, refere-se ao mesmo por bioluminescência. Interessante ressaltar que Wiedemman, na mesma publicação,[2] diferenciou a quimiluminescência, fenômeno de “luz fria”, da incandescência, que é a emissão de luz por certos materiais mediante aquecimento. A incandescência, como bem se sabe, resulta do efeito fotolétrico, estudado intensamente por Planck e racionalizado em termos matemáticos por Einstein, o que daria o prêmio Nobel de Física para o último em 1921. A quimi e bioluminescências também são diferentes em seus princípios de funcionamento da triboluminescência, que é a emissão de luz por cristais macerados mecânicamente. Em um quarto escuro, com a visão bem acostumada para a falta de luminosidade, é possível se observar a emissão de luz a partir de cristais de açúcar de cozinha comum, quando submetidos a esmagamento (tentem, é uma ótima brincadeira!). 
A semelhança entre quimi e bioluminescências vem, principalmente, pelo fato de que em ambas há a formação de um intermediário peroxídico cíclico orgânico durante a reação química. Exemplifico esse intermediário de forma geral logo abaixo. Notem que o mesmo é uma cadeia fechada (cíclica), no formato de um anel de quatro átomos (dois de carbono e dois de oxigênio) e que possui uma ligação peroxídica (que é essa ligação química entre dois átomos de oxigênio, O-O). Nesse exemplo, os carbonos estão fazendo apenas duas ligações cada um (para fins de simplificação) sendo que cada um possui mais duas posições livre para se ligar a outros átomos.
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Na reação bioluminescente de vaga-lumes, uma molécula chamada luciferina, na presença de ATP (que é uma “fonte de energia disponível” em seres vivos), oxigênio molecular (O2) e de uma enzima chamada luciferase, forma exatamente esse intermediário peroxídico (notem o mesmo, destacado em vermelho, dentro de uma estrutura molecular mais complexa) (Figura 1).[3,4] Tal intermediário é formado em várias etapas e então decompõem para formar uma molécula de oxiluciferina no ‘estado eletrônico excitado’ (representado pelo símbolo S1). Um ‘estado eletrônico excitado’ pode ser entendido como um estado de maior energia da molécula, que está pronto para perder essa energia em excesso por emissão de calor ou de luz. No caso da oxiluciferina, a mesma perde essa energia emitindo luz, no final do processo de bioluminescência (Figura 1).[3] A reação quimiluminescente que ocorre dentro de lighsticks também leva a formação de um intermediário contendo esse anel peroxídico (Figura 2). Tal mecanismo descrito na Figura 2 foi formulado à medida que uma série de moléculas chamadas 1,2-dioxetanonas foram sintetizadas e estudadas em laboratório, demonstrando que as mesmas decompõem emitindo luz, quando da adição de um catalisador comum a essas duas reações (Figura 3, os grupos ligados ao anel peroxídico pelos carbonos pode mudar, sendo que nesse caso exemplificou-se com a molécula contedo dois grupos metila, -CH3).[5] Utilizando os resultados obtidos no estudo da reação envolvida em lighsticks (chamada de peróxi-oxalato) e 1,2-dioxetanonas, chegou-se à síntese e posterior estudo de moléculas chamadas 1,2-dioxetanos-aril-substituídos, que são capazes de decompor emitindo luz (Figura 4),[5] por uma via mecanística muito parecida com a da bioluminescência de vaga-lumes (Figura 1) (como sempre, notem a formação do anel peroxídico destacado em vermelho). Tanto a bioluminescência de vaga-lumes (Figura 1) quanto a decomposição de 1,2-dioxetanos-aril-substituídos (Figura 4) possuem eficiências de emissão de luz extremamente altas, o que faz desses 1,2-dioxetanos importantes ferramentas analíticas.[5]
luciferina.bmp
– Figura 1 –

peroxioxalato.bmp
– Figura 2 –

dioxetanona.bmp
 – Figura 3 –

dioxetanoarilico.bmp
– Figura 4 –

Agora vem o pulo do gato: de fato, foi o estudo de tais 1,2-dioxetanos-aril-substituídos que permitiu que se entendesse melhor o funcionamento da bioluminescência de vaga-lumes, inclusive, melhorando a compreensão do processo que leva à formação do ‘estado excitado’ emissor de luz. E para tal, foi necessário antes disso estudar a reação de 1,2-dioxetanonas e a reação peróxi-oxalato, que ocorre em lightsticks. Tanto o preparo de 1,2-dioxetanonas e 1,2-dioxetanos-aril-substituídos quanto o estudo dos mecanismos de decomposição dessas moléculas e da reação peróxi-oxalatonão é trivial e fez (e ainda faz…) muitos alunos de pós-graduação e pesquisadores arrancarem os cabelos. A síntese de moléculas peroxídicas isoláveis, ou seja, que podem ser sintetizadas, purificadas, identificadas por técnicas espectrocópicas adequadas, como 1,2-dioxetanonas (Figura 3) e 1,2-dioxetanos-aril-substituídos (Figura 4) é muito complicada, levando de três a quatro anos até que se tenha sucesso em sua preparação. Um processo complicado e trabalhoso para, ao final, “destruir” a substância preparada para vê-la emitindo luz. A recompensa para todo esse esforço é, obviamente, gerar conhecimento que sustente a proposta para o funcionamento de um processo biológico intrigante e, porque não, elegante.
Notem como, algumas vezes, antes de se entender como certas coisas ocorrem em organismos biológicos, é necessário ficar um bom tempo na bancada do laboratório de química. É necessário se usar bem o tubo de ensaio antes de se trazer certos fatos à luz, rs.
Fonte das fotos: vaga-lume e lightsticks.
Referências e notas:
[1] Campbel, A. K.; Chemiluminescence: Principles and Applications in Biology and Medicine; Elis Howard Ltd.: Chichester, 1988.
[2] Wiedemann, E.; Ann. Phys. Chem. 1888, 24, 446. (Em alemão)
[3] Shimomura, O.; Chemical and Biological Generation of Excited States; Adam, W.; Cilento, G., eds.; Academic Press Inc.: New York, 1982.
[4] Interessante notar que, em química orgânica, geralmente não se representa um átomo de carbono pelo seu símbolo “C” em estruturas. Logo, em cada “esquina” formada por ligações químicas (no encontro entre “arestas”, onde não há símbolo algum), deve-se enxergar a presença de um átomo de carbono, com seu respectivo número de hidrogênio, de forma a completar suas quatro ligações de ‘direito’.
[5] Baader, W. J.; Bastos, E. L.; Stevani, C. V.; The Chemistry of Peroxides, Rappoport, Z., ed.; WIley & Sons: Chichester, 2005.
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Em tempo, eu Fernando “Joey Salgado” Heering Bartoloni sou químico, atualmente no doutorado, estudando alguns sistemas orgânicos quimiluminescentes. E estou mais careca a cada ano. Não tenho palavras para expressar minha felicidade por estar participando do Tubo de Ensaios, nessa fantástica oportunidade que me foi dada pelo SBBr. Obrigado.