O vibrador que levou físicos ao delírio
Quase visível a olho nu, o pedacinho de metal na foto acima obtida por um microscópio eletrônico, foi projetado para se mexer e ficar parado ao mesmo tempo. Qualquer semelhança com o Gato de Schrödinger–o felino infeliz que está vivo e morto simultaneamente no experimento imaginário proposto por Erwin Schrödinger, um dos pioneiros da mecânica quântica–não é mera coincidência.
O mecanismo capaz de vibrar e não vibrar ao mesmo tempo é obra de Aaron O’Connell e mais onze colegas do laboratório de Andrew Cleland, na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara (EUA). No artigo publicado 17 de março no site da revista Nature, o grupo explicou como resfriou a peça de metal até quase zero absoluto, deixando o mecanismo em seu estado de movimento mínimo possível, seu “estado quântico fundamental”. Mais parado que isso o mecanismo não pode ficar.
Podiam cantar vitória só com esse feito, mas seguiram em frente. Depois de colocar o oscilador em seu estado fundamental, transmitiram à peça a menor quantidade de energia possível que ela é capaz de absorver, um “quantum de vibração”.
Durante esse experimento, os pesquisadores obtiveram evidências indiretas de que, por alguns instantes, o mecanismo fez algo que apenas feixes de luz, átomos e moléculas individuais fazem normalmente. Algo que por muito tempo se pensava que apenas esses entes tão minúsculos seriam capazes de fazer.
Mundo Quântico X Mundo Clássico
Desde o início do século XX, os físicos descobriram que as leis da física do dia-a-dia, a física clássica–cujas fórmulas aproximadas precisamos decorar para passar no vestibular e que é quase tudo o que os engenheiros precisam saber para construirem pontes e usinas hidrelétricas–funcionam mal e mal no mundo molecular, atômico e subatômico.
Elétrons orbitando o núcleo dos átomos, as partículas de luz que eles emitem e absorvem, tudo isso e muito mais é explicado apenas por outro conjunto de leis, as da mecânica quântica.
A teoria tem esse nome porque, ao contrário da física clássica, onde os objetos podem trocar energia de maneira contínua, a energia na mecânica quântica é trocada na forma de múltiplos de uma porção mínima, os chamados quantum de energia (o plural é quanta). A quantidade de energia de um quantum varia de caso para caso.
As diferenças entre a mecância quântica e a física clássica não param nos quanta. Elétrons, por exemplo, podem agir “como se estivessem em dois lugares ao mesmo tempo”. O que quero dizer com a frase anterior entre aspas fica bem claro com o famoso exemplo em que se faz um elétron passar por duas fendas em uma parede. Tentei achar um link para algum texto que descrevesse esse exemplo, mas não achei nada que preste. Prometo mais para frente escrever sobre isso com mais detalhe. Por ora, basta dizer que quando se faz esse experimento em certas circunstâncias, os resultados sugerem que o elétron percorreu dois caminhos diferentes simultâneamente.
Até dá para dormir sossegado aceitando que elétrons existem em estados além da nossa imaginação. Mas objetos maiores, feitos de muitos átomos? O físico Erwin Schrödinger imaginou em 1935 um gato preso dentro de uma caixa onde um dispositivo lança veneno no ar quando um núcleo atômico emite radiação. Acontence que, até o momento em que alguém abra a caixa, o núcleo pode estar em um desses estados insanos em que ele emite e não emite a radiação, o que faz com que o lançador de veneno tenha sido acionado e não acionado, e o gato esteje morto e vivo ao mesmo tempo.
Isso seria mesmo possível? Um objeto “clássico” poderia se comportar quanticamente? Onde fica a linha que separa o mundo quântico do clássico? Essa linha existe? Será que a mecânica quântica precisa ser corrigida? São essas questões que motivam experimentos com objetos em princípio”clássicos”, feitos de bilhões ou trilhões de átomos, mas pequenos o suficiente para que seja possível vislumbrar efeitos quânticos neles.
Esses experimentos já obtiveram resultados muito interesssantes. Em 2000, físicos observaram a corrente elétrica em um anel supercondutor girar em dois sentidos ao mesmo tempo. Ano passado, outro grupo de pesquisadores emaranhou o estado de dois qubits superconduntores visíveis a olho nu.
Até agora, porém,ninguém havia posto um objeto macroscópico para se mexer quânticamente. Desde os anos 1990, grupos de pesquisadores investigam como fazer isso, construindo aparelhos mecânicos minúsculos e tentando fazê-los vibrar como um “oscilador harmônico quântico“. Foi exatamente o que o pessoal do laboratório de Cleland conseguiu fazer.
Como fizeram
Em um comentário que acompanhou a publicação do artigo na Nature, o físico Markus Aspelmeyer notou que a construção do vibrador quântico macroscópico venceu dois desafios. O primeiro desafio foi resfriá-lo até uma temperatura bem próxima de zero Kelvin (-273 oC), o chamado “zero absoluto”.
Um oscilador harmônico clássico vibra com qualquer energia. Já a sua versão quântica, oscila apenas quando absorve dos átomos do ambiente a sua volta pacotes discretos de energia chamados de “quanta de vibração” ou de fônons. O oscilador só absorve fônons de um determinado valor de energia. Quanto maior a temperatura, mais fônons com a energia certa há no ambiente para o oscilador absorver. Se a temperatura do ambiente for baixa o suficiente, o oscilador não terá fônons para absorver e estará em seu estado de energia mínima, o “estado fundamental”.
O valor do fônon que excita o vibrador depende da frequência de oscilação dele. Quanto maior a frequência, maior a energia de cada fônon e, portanto, maior o valor da temperatura em que o oscilador fica em seu estado fundamental.
Quanto menor o tamanho do oscilador, maior sua frequência. Assim, para colocá-los no estado fundamental, a estratégia dos experimentalistas tem sido resfriar e miniaturizar cada vez mais seus osciladores.
Nos experimentos mais recentes, foram construidos osciladores de frequências na faixa dos megahertz (milhões de oscilações por segundo), exigindo temperaturas da ordem de bilionésimos de Kelvins. Temperaturas tão extremamente próximas do zero absoluto foram obtidas só recentemente e há muito custo, com técnicas de refrigeração de última geração. Os pesquisadores chegaram tantalizadoramente perto do estado quântico fundamental desses osciladores, registrando números médios de até 4 fônons, mas não conseguiram ir além disso
Em vez de seguir com a boiada, resfriando e miniaturizando cada vez mais, o pessoal do laboratório de Cleland teve um ideia genial. Eles aumentaram em mil vezes a frequência do microvibrador deles simplesmente mudando o seu design.
Os osciladores usados geralmente pelos grupos de pesquisa são baseados no deslocamento do centro de massa do objeto, como a vibração de uma prancha de megulho.
Já o oscilador do grupo de Cleland dilata e contrai sua espessura, chegando a uma frequência na faixa dos 6 gigahertz. Com essa frequência eles conseguiram chegar no estado fundamental a meros 25 milikelvins, o que pode ser obtido por meio de um sistema de refrigeração mais “convencional”.
Aliás, curiosamente, o design do novo oscilador foi inspirado em um modelo desenvolvido pela empresa Agilent para ser usado como filtro primário para telefones celulares.
Esquema do oscilador feito de matreial piezoelétrico, que transforma movimento mecânico em um sinal elétrico e vice versa. O mecanismo oscila dilatando e constraindo sua espessura.
O segundo desafio da equipe de Cleland foi medir os fenômenos quânticos acontecendo em seu oscilador com um instrumento delicado o suficiente. Esse instrumento foi “um qubit supercondutor”, que serviu como uma espécie de termômetro quântico. O sistema é complicado de explicar, daria um post só sobre ele. Mas resumindo, o tal qubit supercondutor pode ter apenas dois níveis de energia, o nível excitado e o nível fundamental.
Na figura abaixo, dá para ver o qubit supercondutor acoplado com o oscilador:
Primeiro, os pesquisadores preparavam o qubit em seu nível fundamental. Em seguida, acionavam a ligação do qubit com o vibrador por um microsegundo e voltavam a desligá-la. Logo em seguida mediam o qubit para verificar se a energia de algum fônon vindo do oscilador havia sido transferida para o qubit. Fizeram essa medida várias vezes, variando a diferença de energia entre os níveis do qubit, e o resultado foi nulo. Mostraram assim que o vibrador estava em seu estado de energia mínima com um probalibidade maior que 93%.
Uma vez que tinham certeza de que o oscilador estava em seu estado fundamental, os pesquisadores resolveram demonstrar a transferência de um quantum de energia do qubit para o oscilador. Fizeram isso primeiro preparando o qubit em seu estado excitado. Em seguida acionaram a interação entre o qubit e o oscilador. Repetiram o procedimento várias vezes, variando o tempo em que a interação entre qubit e oscilador permanecia ligada. Um dos resultados foi o gráfico abaixo:
Gráfico da probabilidade do qubit estar no estado excitado ao longo do tempo (em nanosegundos)
Essa oscilação é sinal de que um único quantum de energia ia e vinha entre o qubit e o vibrador. No máximos da curva o quantum está no qubit e nos mínimos, no vibrador. Nos demais pontos, o qubit e o vibrador estão em um estado que só existe na mecânica quântica, um “estado emaranhado”. É como se o conjunto estivesse em uma combinação de estado “qubit no estado fundamental e vibrador excitado” e “qubit excitado e vibrador no estado fundamental”. Em outras palavras, é como se o oscilador estivesse em dois estados de movimento ao mesmo tempo.
Ano passado um grupo de pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) fez exatamente o contrário, medindo o estado do qubit com um vibrador clássico acoplado. O resultado foi celebrado na época, pois a esperança do grupo era de reverter o processo e usar o qubit para observar o oscilador antes clássico se comportar quanticamente. Mas, seus concorrentes conterrâneos de Santa Bárbara chegaram na frente…
As figuras todas foram extraídas do artigo científico original:
O’Connell, A., Hofheinz, M., Ansmann, M., Bialczak, R., Lenander, M., Lucero, E., Neeley, M., Sank, D., Wang, H., Weides, M., Wenner, J., Martinis, J., & Cleland, A. (2010). Quantum ground state and single-phonon control of a mechanical resonator Nature, 464 (7289), 697-703 DOI: 10.1038/nature08967
Vuvuzelas, aprenda a amá-las sem ficar surdo
Shaya Vuvuzela! Após um longo silêncio, volto a blogar ao som das vuvuzelas do apocalipse, discutindo a acústica da corneta maldita. Shosholoza bafana!
A cacofonia da torcida berrando com as vuvuzelas irrita especialmente quem não curte atividades, digamos assim, carnavalescas, como este que vos escreve. Semana passada, os vuvuzeleiros de plantão do centro de São Paulo puseram minha paciência à prova, enquanto trabalhava na já ruidosa assessoria de imprensa da Reitoria da Unesp.
Não à toa, portanto, me chamou a atenção a entrevista a New Scientist do engenheiro de som Trevor Cox, da Universidade de Salford, Reino Unido, explicando as propriedades do som da torcida de vuvuzelas.
A vuvuzela é uma corneta de uma nota só. Um instrumentista profissional, capaz de soprar uniformemente e manter constante o movimento dos lábios, pode até tirar um som agradável da vuvuzela (veja o vídeo abaixo). Um torcedor médio, porém, tira um tom desafinado.
O som de toda nota musical cantada ou tocada por um instrumento é feito de uma soma de ondas sonoras com frequências de oscilação fixa. A frequência principal é chamada de primeiro harmônico. Os valores das demais frequências são múltiplos do valor do primeiro harmônico e chamadas de segundo harmônico, terceiro harmônico etc.
O Prof. Dulcídio, do blog Física na Veia, estimou a frequência do primeiro harmônico de uma vuvuzela aproximando a forma da vuvuzela por um tubo sonoro cilíndrico. Pela conta que todo vestibulando deveria saber repetir (atenção às questões sobre vuvuzelas, meninada), o som da vuvuzela é feito principalmente de ondas de compressão do ar oscilando mais ou menos 250 vezes por segundo, isto é, a uma frequência de 250 Hertz. O valor exato, segundo Cox, é 235 Hz. Imagino que a diferença entre a estimativa e o valor medido pelos engenheiros deva ser por conta da forma real da vuvuzela, que está mais para cônica do que cilíndrica.
Além disso, instrumentos de forma cônica, Cox explica na entrevista, produzem harmônicos superiores com frequências mais altas do que os produzidos por instrumentos cilíndricos. É por isso, por exemplo, que o som do saxofone é mais alto que o do clarinete. Os harmônicos da vuvuzela, de acordo com Cox, são 235, 470, 700, 940, 1171, 1400 e 1630 Hz.
Resumindo, o que faz da vuvuzela irritante são os harmônicos altos e o som tonal mas desafinado de milhares de torcedores tocando aleatoriamente.
E também a intensidade do barulho, claro, arrebenta o ouvido. Segundo artigo de pesquisadores sul africanos e norte americanos, a vuvuzela soprada com vontade chega a emitir um som cuja intensidade pode alcançar 131 decibéis na boca do instrumento e 113 decibéis a 2 metros dela. É mais intenso que o som de um britadeira, que fica entre 90 e 100 decibéis. Em outro artigo, os mesmos pesquisadores reportam casos de surdez temporária e de danos permanentes à audição de torcedores durante um jogo amistoso em estádio sul africano em 2009.
A FIFA deveria escutar esses dados. Proibir as vuvuzelas seria ofensivo e antipático. Mas bolar algum tipo de regulação para o número e o volume delas nos estádios é questão de saúde pública.
Mercado Anti Vuvuzela
Nas transmissões dos jogos pela TV, o zumbido de vuvuzelas não chega a estourar os timpanos, mas irrita, principalmente os espectadores do Reino Unido e da Alemanha, ao que parece. Haja vista a notícia do jornal britânico Telegraph (via Discoblog) de que um engenheiro de som alemão, Clemence Schlieweis, anda vendendo na internet um arquivo de áudio MP3 de 45 minutos de duração que ele afirma ser capaz de fazer desaparecer o som das vuvuzelas das transmissões.
O arquivo MP3 vendido por quase 3 euros no site Anti Vuvuzela Filter é nada mais que o áudio de uma transmissão de jogo qualquer da copa do mundo com as ondas sonoras invertidas pelo engenheiro. No lugar das cristas das ondas de som, vales, no lugar dos vales, cristas.
Segundo Schlieweis, quando seu som é tocado na sala junto do som da TV, a parte idêntica de áudio de qualquer jogo da copa, isto é, o zumbido das vuvuzelas, é cancelado. Melhor que isso, só um CalaBocaGalvao Filter.
Mas o que o alemão espertalhão não conta é que seu som só funcionaria se o zumbido de vuvuzelas fosse idêntico em cada jogo, o que obviamente nunca acontece, como bem observou Trevor Cox ao Telegraph.
Alternativas mais efetivas não faltam. Na entrevista a New Scientist, Cox cita o site do Centro para Música Digital da Universidade Queen Mary de Londres (LINK), onde você pode baixar um “devuvuzelator”.
A figura abaixo é uma análise das frequências sonoras de uma transmissão de jogo da copa feita pelo grupo da Queen Mary. Os harmônicos da voz do narrador do jogo são o som mais intenso (em dourado). Interferindo nos harmônicos do narrador estão os harmônicos das vuvuzelas (em roxo).
A partir dessa análise, os engenheiros identificaram o que seriam as frequências do primeiro e segundo harmônicos das vuvuzelas e as eliminaram com o tal devuvuzelator. Escutei o resultado e, para ser sincero, notei pouca diferença entre a gravação original e a gravação tratada com o software.
Com a mesma estratégia, o autor do blog Die Surfpoeten produziu um filtro que extrai do áudio da TV o som das frequências que ele afirma serem os harmônicos mais fortes das vuvuzelas: 233, 466, 932 e 1864 Hz. A solução do alemão não é exclusiva e o pessoal do blog Ars Technica dá a dica para um geek fazer o mesmo com Linux (soube via @astrorho). Esses filtros parecem funcionar melhor que o do grupo da Queen Mary, mas também não são perfeitos. O som do zumbido das vuvuzelas é simplesmente complexo demais para ser eliminado.
Zen com as Vuvuzelas
Melhor que o devuvuzelator, é o conselho do pessoal da Queen Mary: desista de lutar e aceite a vuvuzela!
Difícil? Não achei depois de descobrir que a vuvuzela é derivada de um instrumento tradicional sul africano, a mhalamhala e que existe até uma orquestra de vuvuzelas (site por enquanto fora do ar), coordenado pelo músico Pedro Espi-Sanchis.
Neste vídeo do The Guardian, um dos músicos da orquestra, Samora Ntsebeza, explica como tocar a vuvuzela direito.
Dá para conferir as performances da orquestra no canal de Espi-Sanchis no Vimeo, em vídeos como este abaixo. Shosholoza!