Zoneamento agroecológico a cana

por Glenn Makuta

Quinta-feira, dia 17 de setembro de 2009, foi lançado o zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar (ZAE Cana) no Brasil. é uma iniciativa com muitos aspectos positivos, sim, mas nem por isso são apenas as mil maravilhas. aparentemente apresenta mais pontos positivos que negativos…

Pra começar, eis o vídeo de lançamento do ZAE Cana:

O vídeo é lindo, isso é inegável: belas imagens, frases de impacto, uma musiquinha contínua, calma e com alguma identidade folclórica genuinamente brasileira…

Então vamos ver… vou apontando alguns aspectos que achei relevante, tanto positiva como negativamente:

– a iniciativa é de entidades respeitadas que agiram sinergicamente como embrapa (empresa brasileira de pesquisa agropecuária), unicamp(universidade estadual de campinas), ibge (instituto brasileiro de geografia e estatística), cepagri (centro de pesquisas metereológicas e climáticas aplicadas a agricultura), conab (companhia nacional de abastecimento), inpe (instituto nacional de pesquisas espaciais), cprm (companhia de pesquisa de recursos minerais), além da participação dos ministérios do meio ambiente (MMA), de agricultura, pecuária e abastecimento (MAPA), de minas e energia (MME), ciência e tecnologia (MCT), do planejamento, orçamento e gestão, e da casa civil. o estudo foi detalhado abordando diversos aspectos, como as condições do solo e do clima de cada região, tudo tendo a cana como referencial.

– regulamenta políticas públicas para a ocupação de terras por plantações de cana-de-açúcar, delimitando seu cultivo apenas a áreas já degradadas pela agricultura intensiva ou semi-intensiva, lavouras especiais (perenes, anuais) e pastagens, limitando e ordenando sua expansão. além disso considerou-se características climáticas e do solo, relacionados com os requerimentos desta cultura, classificando cada um dos três tipo de uso da terra (agrícola, pecuária ou agropecuária) em aptidões agrícolas alta, média ou baixa. é possível verificar isso em mapas detalhados em nível nacional ou estadual aqui.

– algumas áreas foram excluídas do zoneamento:

1. as terras com declividade superior a 12%, observando-se a premissa da colheita mecânica e sem queima para as áreas de expansão. [acabar com queimadas para colheita é bem importante, já que os principais fatores de ecotoxicidade assim como de toxicidade humana, estão relacionadas às queimadas. a degradação do solo também é bastante reduzida se suspendermos a queimada. a mecanização da colheita também é um grande diferencial, pois dá condições de trabalho mais dignas ao passo que gera outro grande problema social: emprega mão-de-obra especializada em operar máquinas para colheita de cana em detrimento de mão-de-obra pouco ou nada qualificado que é/era utilizado na colheita manual, agravando ainda mais a situação de oportunidade de trabalho para classes mais baixas];

queimadas da cana para colheita, ainda bastante comuns no estado de são paulo
2. as áreas com cobertura vegetal nativa [ótimo! o que sobra de Cerrado e outros biomas tende a continuar intacto, pelo menos em relação a cana…];
3. os biomas Amazônia e Pantanal [esse ponto é um ponto crítico para gringos, creio eu, já que o que eles conhecem de brasil é que temos o que erroneamente é conhecido como o “pulmão do planeta”. sabiam que os usineiros brasileiros usam como argumento o fato dos canaviais estarem distantes destes biomas para justificar a “sustentabilidade” da produção sucroalcooleira? pois é! os outros biomas nem são levados em consideração!] além da Bacia do Alto Paraguai;
4. as áreas de proteção ambiental e remanescentes florestais;
5. as terras indígenas [também acho ótimo não mexer com terras indígenas, apesar de que há índios muito mais “cara-pálida” que muitos de nós];
6. dunas;
7. mangues;
8. escarpas e afloramentos de rocha;
9. reflorestamentos e
10. áreas urbanas e de mineração.

– estabelece que o país dispõe de 64,7 milhões de hectares=647 mil km2 de áreas potenciais para ocupação por canaviais. isso corresponde a mais de 7 (SETE) vezes a área remanescente de mata atlântica ou 1,5 vezes maior que o que resta de Cerrado, isso sem mencionar os outros biomas menores (em extensão). considerando isso, restam”apenas” 7,5% do território nacional potenciais para o plantio de cana (se plantassem em toda área com potencial de plantio, seria praticamente um novo bioma pouquíssimo biodiverso e de origem antrópica). isso pelo menos é ótimo pelo fato de que não mais será preciso devastar novas áreas para este fim, uma vez que a vontade econômica dos governantes é de produzir cada vez mais cana.

o brasil é exemplo em alguns aspectos da produção de cana, pois somos capazes de utilizar o máximo da tecnologia a que temos acesso, produzindo muito mais do que seria esperado com a tecnologia vigente. só para ilustrar um fato que foi espantoso para mim quando fiquei sabendo, a lavagem da cana é feito com a água que extraem da própria cana, não necessitando de água de rios para isso.
– segundo o documento, um dos impactos esperados é a produção de biocombustíveis de forma sustentável e ecologicamente limpa. isso parece piada, pois uma coisa é querer reduzir os danos causados no ambiente nos processos de produção e uso dum combustível, mas dizer que se espera produzir um biocombustível limpo é uma mentira. o biocombustível é queimado e emite poluentes e isso já é o suficiente para que não seja limpo.
além disso, um dos grandes problemas da produção de biocombustíveis a partir de cana é a produção de vinhoto: para cada litro de bioetanol obtidos da cana, 14 litros de vinhoto são produzidos. esse grande volume é reutilizado para adubação do solo, mas boa parte acaba caindo em rios nas proximidades do canavial, e claro, sem tratamento.
– ao meu ver esta foi uma ótima forma de conter os ânimos de ruralistas como o ministro da agricultura reinolds stephanes, por que se dependesse dele, o país viraria um gigante deserto agrícola. e obviamente os ruralistas do pantanal e da amazônia devem se sentir injustiçados com isso.
– uma das intenções desse estudo é também a possibilidade de se conseguir créditos de carbono, e atrair investimentos nacionais e internacionais. ao meu ver o que fundamenta créditos de carbono são meram
ente aspectos econômicos e nada ambiental. não acho que concentrar as emissões de carbono seja mais benéfico que fragmentá-lo, ao contrário da lógica aplicada em fragmentos vegetacionais.
Gostaria de conhecer um pouco mais de manejo de solo pois acredito que em longo prazo monoculturas danifiquem muito este recurso natural. por enquanto só fica a suposição quanto a isso.
Mais uma vez friso que este zoneamento parece ser bastante positivo. os pontos fracos ficam no argumento de combustível limpo e do papo furado da sustentabilidade (que teoricamente deveria abranger as sustentabilidade ambiental, social e econômica). a cana brasileira tem em mãos boa fatia do mercado mundial, possibilitando esse tipo de iniciativa. este zoneamentos agroecológicos é bem completo e releva aspectos importantes para que possamos usufruir mais apropriadamente dos recursos naturais disponíveis, minimizando os danos desta atividade na escala em que é praticada (nesta escala, a principal vítima é o cerrado: uma área bastante extensa dela é tomada por atividades não apenas sucroalcooleiras, mas agropecuárias diversas).
já que é opção deste país a produção agrícola em nível industrial, o ideal seria que cada uma das principais culturas fosse feito um zoneamento agroecológico próprio, mas é pouco provável que haja interesses político e econômico tão engajados como no caso da cana.

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Glenn Makuta, biólogo, mestrando em comportamento e ecologia, escreve no blog sinantrópica. Mande seus textos para serem publicados aqui!

O matador de passarinhos

separando o joio do alpiste
por Ricardo Braga Neto (Saci)
O conhecimento humano é mesmo muito vasto. Sabemos como ir à Lua, como escrever uma peça de teatro, a usar veneno de sapo para caçar. Sabemos! No plural: os seres humanos sabem. Eu sou um desses, logo eu sei? Não sou nenhum Neil Armstrong, nem William Shakespeare, quem dera um Yanomami. Bem que eu gostaria. Mas eu sei que eles sabem algo que eu não sei. Se um alienígena chegasse ao planeta agora, eu teria orgulho em contar para ele que o rádio foi uma grande invenção que revolucionou a comunicação entre as pessoas. Mas se foi Guglielmo Marconi que aprimorou idéias malucas de James Maxwell sobre ondas eletromagnéticas que se propagavam no espaço, idéias que foram testadas por outra pessoa, Heinrich Hertz em 1888, seria justo citar apenas um inventor para o rádio? Sabemos, no plural, pois individualmente sabe-se muito pouco, quase nada sobre a maioria das coisas. E a essência da ciência é essa. Nada mais que um acúmulo coletivo de experiências, buscando um meio objetivo de tentar entender o mundo em que evoluímos.
Pouco mais de um século depois, outro grande invento da humanidade deu à comunicação asas velozes do tamanho do mundo. E a produção de ciência acompanhou a ascensão da internet e dos gigabytes. Não existem apenas mais pessoas fazendo pesquisa, cada pessoa faz mais. A comunicação online foi a alavanca dessa conquista, mas em geral os pesquisadores brasileiros exploram pouco os recursos da web. Se por um lado cada pesquisador cumpre sua função publicando suas idéias e resultados relevantes em revistas de alto fator de impacto, ‘peer reviewed’ com um corpo editorial rigoroso, isso está perfeitamente correto. Isso é lastro científico. Porém, por outro lado, a comunicação científica complementar desses mesmos resultados para o restante da sociedade em veículos especializados fica relegada ao terceiro plano, à penúltima página da agenda, a uma idéia lembrada em um momento inoportuno. Infelizmente, muitas vezes os responsáveis pelas pautas jornalísticas cometem gafes com imprecisão, são apressados e não permitem a revisão de conteúdo antes de apertar a tecla PRESS. Contudo, algumas vezes, alguns jornalistas cometem delitos dignos de mea culpa.
Um exemplo fresquinho vem de uma entrevista na revista Época sobre o pesquisador Alexandre Aleixo, do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Ainda que o conteúdo das respostas de Aleixo reflita a experiência e profissionalismo de alguém que é “apenas” o curador da coleção de aves do MPEG, a abordagem da entrevistadora induz o leitor de forma subliminar a se armar contra um absurdo óbvio: estão matando passarinhos indefesos e chamando isso de ciência. A repercussão não foi das menores: a entrevista, publicada em 31/10/08, foi a mais comentada na última semana no site da Época. A Assessoria de Comunicação do MPEG escreveu uma resposta ao editor da revista protestando com toda a razão. Aparentemente, tomando alguns comentários a esse artigo e o posicionamento incisivo da entrevistadora, o público não tem uma idéia clara da realidade de pesquisa básica sobre biodiversidade, seja na Amazônia ou em qualquer outro lugar do mundo.
Esse tipo de desserviço jornalístico à imagem de cientistas brasileiros idôneos e produtivos não deve ficar impune, mas sim gerar uma revolta inteligente por parte dos pesquisadores, uma revolta tranquila, que os leve a tomar as rédeas da comunicação dos resultados de suas pesquisas à sociedade. A ignorância leva ao medo. E o medo ao erro. Pois bem, um bom modo de vencer o medo é dialogar com as pessoas sobre nosso trabalho, usando canais de divulgação rápidos, precisos e eficientes. Este blog [ULE, União Local de Ecólogos (Inpa)] é um exemplo metafísico (e gratuito) que isso não é tão inacessível assim. Acreditamos que isso aumentará muito a visibilidade do nosso trabalho. Um jornalista especializado em meio ambiente me escreveu recentemente: “O blog é bem interessante. Primeiro, porque é um canal de divulgação rápido e preciso; segundo, porque facilita a vida dos repórteres, dado que a maioria dos pesquisadores tem pouquíssimo tempo para atender a jornalistas e com o blog a informação é mais rapidamente divulgada. Boa iniciativa. Espero que prospere. Qualquer novidade é só entrar em contato.”
Parcerias entre jornalistas e pesquisadores devem ser estimuladas, sempre buscando devolver ao público um pouco do investimento; afinal muito dos recursos que bancam as pesquisas são públicos. Críticas saudáveis sempre serão bem-vindas, mas abordagens infantis dentro de um periódico do escopo da revista Época devem ser rechaçadas com veemência.
Publicado originalmente no blog da ULE (União Local de Ecólogos, Inpa) :: http://uleinpa.blogspot.com/
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Saci é biólogo e trabalha com ecologia de fungos na Amazônia. Dentre outras safadezas, escreve para o blog da ULE, União Local de Ecólogos (Inpa) [http://www.uleinpa.blogspot.com/].

S. de Down: uma possibilidade de um futuro melhor?

Por Sandra Goraieb
Talvez em futuro breve, uma gestante que se descubra esperando um bebê portador da Síndrome de Down vai poder minimizar os efeitos da Síndrome através de terapia intrauterina. Isto porque um estudo conduzido pela Dr.a Catherine Spong da National Institutes of Health – Bethesda, e publicado na Obstetrics and Gynecology, conseguiu reduzir os sinais e sintomas da síndrome em ratos, que atingiram as metas de desenvolvimento da mesma forma que ratos normais.
Para entender melhor, a Síndrome de Down ocorre quando o feto humano possui um cromossomo 21 a mais, ou seja, onde deveria existir um par, existem 3 cromossomos 21. Em ratos, uma síndrome similar ocorre na trissomia do gene 16. Em ambos os casos acontecem retardos no desenvolvimento motor e sensorial e poderão ter dificuldade no aprendizado e sofrer de sintomas de Alzheimer na vida adulta.
Em ratos trissomicos, a inibição de um neurotransmissor chamado GABA (ácido gamaaminobenzóico), pode melhorar as capacidade cognitivas. Isto levou a se pensar que este tratamento pudesse ser aplicado também às crianças portadoras da Síndrome. Porém, este tratamento só seria possível após o nascimento. O ideal seria poder iniciar a correção das alterações ainda na fase intrauterina.
Outras alterações acontecem nas células da Glia. Estas são células que fazem parte do sistema nervoso que sustentam e regulam o desenvolvimento dos neurônios através da liberação de algumas proteínas, como a ADNP. No caso da Síndrome de Down ocorre uma diminuição da disponibilidade destas proteínas. Além disso, alguns segmentos destas proteínas chamados NAP e SAL, quando agregados a culturas de neurônios de pessoas portadoras da síndrome e que degenerariam, parecem exercer um efeito protetor sobre estes neurônios.
Então o grupo da Dr.a Spong, injetou NAP e SAL em ratas grávidas (modelo Ts65Dn para S. de Down) com fetos trissômicos obtendo resultados bastante interessantes, pois ao nascerem, os ratos tratados demonstraram-se similares aos ratos sadios em 4 de 5 parâmetros motores e um de quatro parâmetros sensitivos. Considerando que ratos trissômicos apresentam-se em deficit em todos os parâmetros, o resultado foi bastante significativo (p<0,01). Os ratos tratados também mostraram níveis normais de ADNP nas células da glia. Os pesquisadores agora observam como os ratos tratados se comportarão em relação ao aprendizado.
Apesar destes resultados, não é certo que este procedimento poderá ser efetivo também em humanos, mas existe um certo otimismo entre os especialistas.
Tomara que aconteça de verdade. Muitas crianças poderiam ter garantidos um desenvolvimento motor e cognitivo melhor e consequentemente um futuro mais tranquilo para eles e seus pais.
Para saber mais:
Toso L, Cameroni I, Roberson R, Abebe D, Bissell S, Spong CY.
Prevention of Developmental Delays in a Down Syndrome Mouse Model.
Obstet Gynecol. 2008 Dec;112(6):1242-1251.
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Sandra Goraieb é médica, especialista em Anestesiologia e em Medicina Intensiva, e diretora científica do Projeto Millebolleblu. Escreve o blog Mamãe passou açúcar em mim.

A Ciência e sua sombra.

Por Daniel Christino.
Dentre todos os objetos disponíveis ao escrutínio da razão nenhum é mais interessante do que o próprio homem. Há muito o intelecto humano se diverte com esse movimento de virar-se sobre si mesmo. Somos, neste aspecto, bastante únicos na natureza. Segundo Rilke, ao contrário de nós, os animais conseguem “vislumbrar o aberto”. Não estão obrigados a olhar sempre sobre o próprio ombro.
Não têm história ou mundo. Não são capazes de perceber sua sombra como um índice de si mesmos.
Dentre os possíveis discursos que escolhemos para falar de nós mesmos dois se destacam. O primeiro encontra-se no domínio do mito e das religiões e podemos defini-lo, grosso modo, como moralidade. O Bem e o Mal. Via de regra tal discurso aponta para uma dimensão transcendental da qual é possível colocar a natureza humana sob perspectiva. Seu pressuposto é o de que precisamos ir além do homem para poder pensá-lo. O contrário seria equivalente a tentar “saltar a própria sombra”.
O segundo pertence ao âmbito da ciência, e afirma ser possível compreender o homem a partir da própria condição humana, isto é, como ele se dá enquanto fenômeno material e finito, sem o auxílio de uma perspectiva transcendental de tipo religioso. Segundo esta vertente supor que esteja aberto ao homem uma perspectiva não humana é simplesmente absurdo. Ao homem só é possível o que está dentro dos limites de sua humanidade. Ambos são, como dizia Cassirer, “construções simbólicas”, derivadas da capacidade de enunciação da nossa linguagem e, neste aspecto, limitados por ela.
A ferramenta teórico-epistemológica que o discurso cientí fico desenvolveu para pensar o problema do homem e sua sombra foi a dúvida. Obviamente não meramente a dúvida hiberbólica e argumentativa de Descartes, embora esta esteja, de fato, no centro da questão, mas a dúvida metodológica, integrada às próprias condições do exercício da atividade científica. Isto se dá porque ciência é método e não a confiança cega no método. Este é um erro que se comete amiúde, pensar a ciência como se fosse uma crença na verdade ou na capacidade do homem de encontrar uma verdade universal racionalmente justificável. Este valor ideológico do Iluminismo não sobreviveu ao próprio desenvolvimento científico, em última análise. A razão tornou-se muito mais humilde em sua busca pela verdade e abraçou, em seu método, a incompletude e o raciocínio aproximativo. Quem melhor exemplificou este frescor intelectual e esta dinâmica epistemológica foi Richard Feynman. Numa conferência em 1966 ele elabora esta posição metodológica numa fórmula genial: “Science is the belief in the ignorance of the experts”.
Obviamente cada ramo científico determina suas condições de verdade, mas elas não são mais universais e absolutas e têm validade provisória. O que, entretanto, dispara o processo de superação ou substituição destas condições de verdade é a dúvida, ou melhor, as consequências rigorosas do fato de que se pode duvidar, desde que metodologicamente embasado, das próprias condições de verdade de um determinado campo ou subcampo científico. O importante é perceber que a historicidade da ciência não significa uma relativização de seus princípios fundamentais, mas um aprofundamento. Longe de ser uma prática engessada e imóvel, a atividade científica é sempre aberta e fluida . Discutir esta condição em relação a si mesma e seu objeto é o que mantém a ciência perpetuamente diante de si mesma. Dito de outro modo, em cada experimento, em cada projeto de pesquisa, está não apenas uma questão problema relacionada a um tópico específico, mas toda a ciência. É como ela joga luz sobre a própria sombra.
PS. O link para a conferência do Feynman é este http://www.fotuva.org/online/frameload.htm?/online/science.htm
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Daniel Christino escreve no Pasmo Essencial. É graduado em jornalismo e filosofia, mestre em filosofia e doutorando em comunicação. Atualmente é professor da Universidade Federal de Goiás.

Muito além do River Raid

Por Daniel Christino.
Eu adoro jogar videogame. Essa confissão já me rendeu alguns olhares estranhos na Universidade. “Mas você não tem algo mais importante para fazer?”, diziam. “Não!”, respondia meio injuriado. Embora seja uma chatice jogar “a sério” qualquer jogo de videogame, pensar sobre o impacto das novas mídias sobre os modelos de produção cultural já canonizados é um campo de estudos acadêmicos cada vez mais promissor.
Sem querer entrar numa de “peer-reviewing”, pelo menos não agora, indico dois artigos muito legais sobre como os estudos sobre games atravessam diversas áreas de pesquisa: Dynamic Lighting for Tension in Games e Tragedies of the ludic commons – understanding cooperation in multiplayer games.
O primeiro deles possui uma ligação bastante clara com o cinema e com a narratologia (ou teoria da narrativa). O modo como um jogo explora os efeitos de luz para compor um determinado clima supõe uma noção de narratividade visual muitas vezes importada do cinema. Por outro lado, os games, por trabalharem com um ambiente completamente virtual e manipulável (dentro de certos limites tecnológico de velocidade de processamento e memória), potencializam os usos possíveis da iluminação para criação destes efeitos. Ao contrário do cinema, os games têm controle completo sobre o ambienta no qual a ação ocorre. No cinema, isso só acontece nas CGI (imagens geradas por computador).

There are many lighting design techniques exhibited in theatre, film, architecture and dance that address the role of lighting on emotions and arousal. Currently, game developers and designers adopt cinematic and animation lighting techniques to enrich the aesthetic sense of the virtual space and the gaming experience. For example, game lighting designers manually manipulate material properties and scene lighting to set a mood and style for each level in the game.

O segundo entende o videogame como um modelo de interação social, ou seja, discute o modo como um contexto de simulação pode iluminar aspectos comportamentais dos indivíduos. O estudo retira sua força da metáfora do jogo e enfatiza uma das suas principais características: a relação entre os jogadores. Mesmo as brincadeiras de amarelinha ou pique-pega podem ser entendidas como simulações. Há um conjunto de regras não-naturais em funcionamento normatizando o modo como a ação pode ou não acontecer. O legal dos videogames é sua capacidade modelar, ou seja, nele possuímos algum controle sobre o ambiente no qual a ação se desenvolve e, por conta disso, podemos isolar ou testar variáveis de modo muito mais preciso. Neste caso os pesquisadores optaram por estudar o modo com o jogo apresenta alguns conflitos e a relação entre a solução destes conflitos e a vida social “real” do indivíduos. Em outras palavras, o artigo pressupõe que a simulação dos games pode nos ajudar a entender melhor a dinâmica social de pequenos grupos. É o caso quando eles estudam a trapaça (cheating) como um dilema social. O game dado como exemplo é o Diablo.

Accounts of cheating in games almost always invoke the eloquent example of Blizzard’s Diablo (Blizzard Entertainment, 1996), among the first truly successful commercial online games. It is generally acknowledged that the gaming experience was seriously affected by the amount of cheating apparent among many participants. In a somewhat informal survey conducted by the gamer magazine Games Domain (Greenhill 1997), 35% of the Diablo-playing respondents confessed to having cheated in the game (n=594). More interesting, however, were the answers to the question of whether a hypothetical cheat and hack free gaming environment would have increased or decreased the game’s longevity and playability. Here, 89% of the professed cheaters stated that they would have preferred not being able to cheat. This response distribution clearly tells of a social dilemma. Arguably, the players queried are tempted to cheat but understanding that this temptation applies to other players as well, would prefer that no-one (including themselves) have full autonomy.

Certo. Os artigos foram linkados a partir do site da Game Studies cuja base de dados encontra-se, hoje, aberta ao público. Há outros tantos em bases de dados restritas. Os games não são apenas diversão interessante, são também objetos acadêmicos relevantes tanto por sua popularidade quando pelas questões que levantam. Estamos muito além do River Raid. Divirtam-se.
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Daniel Christino escreve no Pasmo Essencial. É graduado em jornalismo e filosofia, mestre em filosofia e doutorando em comunicação. Atualmente é professor da Universidade Federal de Goiás.

Sobre blogs de ciências

por Charles Morphy D. Santos.

"Tudo o que tem a fazer é escrever uma frase verdadeira. Escreva a frase mais verdadeira que souber (…) Se começasse a escrever rebuscadamente, ou como se estivesse defendendo ou apresentando alguma coisa, achava logo que podia cortar esses floreados ou ornamentos, jogá-los fora e começar com a primeira proposição afirmativa verdadeira e simples que tivesse escrito"

Ernest Hemingway, A moveable feast (Paris é uma festa), p. 29.

O filósofo John Wilkins, no seu artigo The roles, reasons and restrictions of science blogs, publicado na edição de agosto da Trends in Ecology and Evolution , define um blog como "fundamentalmente uma página da web atualizada constantemente, com entradas (‘postagens’) que têm uma data, tempo e, se muitos autores contribuírem para o blog, selos com autor e nome". Para ele, um das razões flagrantes para a existência de blogs é a comunicação científica. Além disso, essa também é uma forma de desmistificar a ciência e de fazer frente a perspectivas contrárias, presentes no discurso público (e.g., anti-evolucionistas), àquelas científicas. Ainda segundo Wilkins, um blog que representa uma comunidade científica ou subdisciplina irá ele mesmo se transformar em uma comunidade.

Tomadas em conjunto, essas idéias parecem expressar, no geral, o que pensam as pessoas que se dedicam a escrever nesses veículos que – erroneamente – são considerados como web 2.0 (essa denominação foi usada inclusive no artigo sobre blogs científicos veiculado na edição de julho da Scientific American Brasil. A tal web 2.0 – discutida por muitos teóricos que trabalham com cibercultura, entre eles o brasileiro André Lemos – demandaria muito mais interação e possibilidade de interferência que o simples postar-comentar-responder dos blogs). Porém, há sempre o outro lado da moeda, que o próprio Wilkins lembra: blogs carecem de controle de qualidade e editoração adequada. Além disso, ainda há o preconceito da "velha guarda" da ciência (sem conotação pejorativa), que privilegia o trabalho "real" em detrimento do que é divulgado na rede.

Assim como o papel das revistas de hard-science , blogs são meios para a divulgação de idéias. É inocente quem pensa que o trabalho publicado (impresso) passa por um crivo tão grande de qualidade quanto seria de se esperar – basta relembrarmos dos recentes episódios de manipulação de dados em artigos da prestigiada Science . Além do mais, mesmo publicações de menor índice de impacto, mas de vital importância para áreas específicas das ciências, também têm problemas com o peer-review . Pesquisadores da "periferia" da ciência, como os brasileiros, sempre sofrem mais para terem seus artigos publicados, sendo eles valiosas contribuições para o campo de escrutínio ou não. Enquanto isso, profusões de textos "copy-and-paste " saem todos os meses, mais onerando do que desenvolvendo as ciências como um todo.

Nesse ínterim, o que talvez conspire contra os blogs seja o próprio rótulo ‘blog’, muito relacionado a diários pessoais on-line que, para muitos, caracterizam a geração e-mail (geração web? geração internet? geração orkut?). Blogs científicos podem significar muito mais do que isso. Para tanto, ao serem preparados, e independentemente da linha de argumentação ou do assunto comentado, as postagens precisam ser cuidadosamente construídas e divulgadas. É claro que a ciência exposta não deve ser vetusta e hermética, sob o risco de afastarmos ainda mais o público já pouco afeito a exposições aprofundadas sobre o conhecimento científico. No entanto, não há motivos para que uma postagem em um blog não seja tão zelosa sobre seu conteúdo e forma quanto um texto para uma revista tradicional. Quem leu o artigo do Wilkins pôde perceber claramente que não há nada ali que já não havia sido discutido anteriormente na própria blogosfera.

Um outro aspecto interessante, levantando no Roda da Ciência, diz respeito ao papel dos blogs na educação. Escrevi anteriormente no blog “Um longo argumento” o seguinte parágrafo:

"A aula não pode se ater à superficialidade dos livros didáticos, devendo ser acrescida das discussões filosóficas e históricas pertinentes. A leitura é fundamental para o professor, incluindo as obras originais e compêndios sobre os tópicos estudados. Atualmente, há ferramentas disponíveis na internet, tais como blogs, revistas de divulgação online, portais com obras completas de autores consagrados das ciências e da filosofia, e sítios com apresentações, exercícios e documentários que podem ser importantes fontes de informação para o docente – e também para os alunos, especialmente quando orientados de forma adequada".

Blogs não são substitutos da divulgação tradicional (em papel) e não devem ser vistos dessa forma. Não obstante, eles são ferramentas complementares, que permitem uma dimensão extra para a publicação da pesquisa científica, com recursos próprios que permitem grande dinamismo e um maior alcance para o que é discutido. Obviamente, a importância dos blogs para a comunidade científica ainda não pode ser analisada em uma perspectiva histórica, mas seu impacto no ensino de ciências, por exemplo, pode ser notado por muitos dos que utilizam tal ferramenta.

Independentemente do rótulo, o que se escreve deve ser "verdadeiro", como Hemingway diz. O meio faz parte, mas não é ele próprio a mensagem.

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Charles Morphy D. Santos escreve no Um longo argumento e é doutor em ciências pela USP-RP.