Resistir é preciso: a(s) literatura(s) e a(s) ditadura(s), por Lua Gill

Resistir é preciso: a(s) literatura(s) e a(s) ditadura(s), por Lua Gill

Não foi a primeira vez que a Cláudia, idealizadora/editora/cuidadora desse blog, tão bonito, e entusiasta da divulgação científica dos estudos literários, me convidou para escrever aqui. Devo começar dizendo que, a partir de certo momento da minha vida acadêmica, passei a me sentir cada vez mais formatada para um tipo único e padronizado de escrita e, com medo e me sentindo insegura, neguei tentar qualquer outra estrutura. É nesse contexto que me desafio para essa tarefa – ainda que entenda as minhas limitações diante dela. Por outro lado, o convite da Cláudia me pareceu dessa vez irrecusável: contar a minha participação em um evento acadêmico sobre literatura, a III Jornada de Crítica Literária: Literatura e Ditaduras, ocorrido na Universidade de Brasília (UnB) nos dias 4 e 5 de junho de 2018.

Não teria como falar desse evento sem olhar rapidamente para o presente brasileiro, em que as ressonâncias e as consequências do recente passado autoritário parecem cada vez mais fortes. Nas décadas de 1960 e 1970, a América Latina foi tomada por diversos regimes militares. As estruturações e as formas de atuação foram diferentes em cada país, bem como as respectivas transições para a democracia. No caso do Brasil[1], que viveu sob uma ditadura militar de 1964 a 1985, pouco se discutiu e se acolheu das reivindicações de memória e de justiça desde a redemocratização. Nunca levaram os torturadores à Justiça, por exemplo. Não se desmilitarizou a polícia. As famílias não foram efetivamente reparadas pelos mortos, torturados e desaparecidos até hoje. Não se debateu ampla e publicamente o que aconteceu nos 21 anos de ditadura – mesmo quando tínhamos uma presidenta que era ex-guerrilheira ou mesmo depois da abertura de uma Comissão Nacional da Verdade[2] para averiguar o que havia acontecido naquele período.

Já hoje, o sentimento geral é de angústia e de paralisia diante da política. Há dois anos, a primeira presidenta mulher eleita do Brasil sofreu um impeachment. Durante este processo, vimos um pré-candidato à presidência homenagear, em televisão aberta, um reconhecido torturador da ditadura militar brasileira. Desde então, nos sentimos atacados por todos os lados e vemos nossos direitos mais básicos serem ameaçados. Foi aprovada uma PEC que congelou os gastos públicos (inclusive de saúde e educação, por exemplo) por vinte anos e sofremos ataques complicadíssimos à cultura, aos direitos trabalhistas e das mulheres, de LGBTs, e de negros e negras. Há alguns meses, na cidade do Rio de Janeiro, foi decretada uma nova intervenção militar e foi nesta mesma cidade que a quinta vereadora mais votada do município, Marielle Franco, defensora dos direitos humanos, foi brutalmente assassinada, junto de seu motorista, Anderson Gomes. Por fim, recentemente, durante uma das maiores greves dos últimos anos, vimos pedidos explícitos e irresponsáveis de “intervenção militar”, que começaram a pipocar pelo Brasil todo.

Foto por Lua Gill.

E o que tudo isso tem a ver com o evento que assisti em Brasília? Ou como se relaciona com esse blog? A jornada da UnB teve como objetivo principal debater exatamente como a literatura tem pensado e refletido sobre as ditaduras, especialmente as da América Latina e, principalmente, a do Brasil. E por que “voltamos” a debater isso, décadas depois da redemocratização desses países? Por tudo que tem acontecido atualmente, mas também porque, ao contrário do que alguns querem nos fazer acreditar, a literatura e a crítica literária não são isentas, imparciais, mas podem e devem nos fazer tomar partido, nos posicionar.

Para não dizer que não falamos das flores, a ascensão do conservadorismo, antes e agora, não veio sem resistência, inclusive no campo da crítica literária atual, sobre a qual quero discutir aqui. Desde que comecei a pesquisar sobre as relações entre literatura e ditadura, em 2013, o tema vem crescendo, se expandindo, ainda mais nos últimos dois anos (o que, evidentemente, não se dá por acaso): autores e críticos literários têm se debruçado sobre esse assunto na medida em que tentam também entender e atuar no presente. As produções e as críticas artísticas têm debatido o apagamento histórico, apontando para a necessidade de uma política de memória e dando voz àqueles que não tiveram o seu testemunho ouvido.

O evento em Brasília foi um exemplo grandioso dessa atenção. O local escolhido para a realização da jornada, isto é, a UnB, por si só já diz bastante. Nessa universidade, professores e alunos resistiram amplamente durante o regime militar. Tão perto da Esplanada dos Ministérios e do Palácio do Planalto, hoje ela se abre novamente para novas formas de resistência da crítica literária, especialmente graças ao Grupo de Estudos em Literatura Contemporânea Brasileira – referência nessa temática para o Brasil inteiro –, da UnB, por meio dos professores Regina Dalcastagnè, Rejane Pivetta e Paulo César Thomaz. Não por acaso, o primeiro curso sobre o Golpe de 2016 foi proposto e houve tentativa de censura na mesma universidade. Por tudo isso, foi, para mim, um privilégio ter a oportunidade de estar com pesquisadores, escritores e professores extremamente reconhecidos e competentes em seus trabalhos, ver e ouvir pessoas que li, dar rosto a quem saía apenas das palavras impressas, além de ter a possibilidade de realizar uma troca efetiva sobre o meu tema de pesquisa (o que não é tão comum para a maioria das pesquisas de estudos literários feitas em nosso país).

O próprio evento, na sua organização, se estruturou de forma extremamente democrática, destacando-se de outros eventos dos quais já participei. Estiveram lado a lado, nas falas, nas mesas e na organização, pesquisadores e professores da área, estudantes de graduação e de pós-graduação e autores de romance e poesia, muitos deles testemunhas vivas do tempo da ditadura. Outra coisa que me chamou a atenção foi a presença massiva, nas mesas, de mulheres, as quais totalizaram mais de 70%, o que também não costuma ser comum em eventos desse tipo.

É muito recorrente ouvirmos pessoas justificarem a ditadura brasileira dizendo que a perseguição atingiu apenas um grupo de pessoas: uma certa classe média, branca, intelectual, do sudeste do Brasil, “comunista e terrorista”, como se isso o justificasse. Se, por um lado, o número de mortos da CNV mantém esse dado, tal definição é bastante redutora e problemática. Devemos lembrar, como mostraram as falas no evento, que o regime militar afetou o Brasil como um todo e principalmente grupos minoritários, subjugados politicamente (há um cálculo de algo como 8 mil indígenas mortos durante a ditadura e mil camponeses, para além do número de 434 mortos, apresentado e mantido pela CNV). Durante as falas, pude ouvir outras perspectivas e testemunhos desse tempo, a exemplo de Sonia Bischain, uma das fundadoras do Sarau da Brasa, a qual relatou o contexto de produção literária e resistência na periferia paulista durante o regime; a pesquisadora e poeta negra Lívia Nathalia, que apresentou a produção negra contemporânea e denunciou o genocídio da juventude negra de ontem e de hoje; a escritora indígena Eliane Potiguara, que demonstrou o histórico de escravização e perseguição das diversas etnias indígenas e o esforço pela manutenção da cultura e da língua; a apresentação do livro “O fuzil e as flechas”, no qual o jornalista Rubens Valente recupera mais um capítulo apagado da história da ditadura civil-militar brasileira e analisa mais de 80 entrevistas de indígenas, sertanistas, indigenistas e antropólogos; ou ainda a apresentação da pós-graduanda Leocádia Chaves, sobre o testemunho do período ditatorial de uma transexual, Ruddy Pinho.

Além dessas novas e extremamente ricas perspectivas para o debate contemporâneo de recuperação da memória, guardarei com carinho três outras falas: Maria Pilla, autora de Volto semana que vem (2015); Maria José Silveira, autora de O fantasma de Luis Buñuel (2004) e A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas (2002); e Pedro Tierra, autor de Poemas do povo da noite (1979). Todos eles são escritores e ex-guerrilheiros. Os seus testemunhos sobre as perseguições, a clandestinidade e as torturas que sofreram, e o processo posterior de elaboração e de testemunho, através da literatura, foram emocionantes e serviram de inspiração, principalmente para mim (e imagino que para grande parte do público presente) que não teve que lutar para ter seus direitos mais básicos garantidos.

Programação do evento Literatura e Ditaduras.

Depois dessa experiência, convido os leitores a acompanharem as produções que virão desses pesquisadores e autores citados, inclusive por meio das falas desse evento, que devem ser publicadas em breve. Hoje, mais do que nunca, precisamos reforçar a defesa da Universidade pública, do investimento à pesquisa (também de crítica literária), da autonomia universitária e da liberdade de expressão. Os atos de debater com nossos amigos, colegas, irmos a eventos, fazermos as nossas pesquisas são essenciais nesse contexto. Hoje, nosso trabalho também se dá como uma forma de resistirmos. Isso não é pouco. Não é hora de omissões. Como no passado, as futuras gerações dependem disso e do nosso compromisso com a memória e com a justiça.

Da minha parte, fica o agradecimento à UnB e aos professores organizadores, pela acolhida, pela atenção ao tema e pela organização de um evento tão importante para o debate atual, político e literário. Senti, ao fim dos dois dias, um sopro de esperança diante das angústias sentidas. Resistimos juntos. Assim como Maria José Silveira apontou, a resistência partia, e ainda parte, de uma profunda crença de que o afeto, a solidariedade e a felicidade, enfim, devem ser coletivos e de todos.

Deixo por fim uma breve lista de romances que tematizam a questão e que, entre outros, valem a pena serem lidos:

Em câmara lenta (1979), de Renato Tapajós

Memórias do esquecimento (1999), de Flávio Tavares

Não falei (2004), de Beatriz Bracher

Soledad no Recife (2009), de Uraniano Mota

Azul-corvo (2010), de Adriana Lisboa

Nem tudo é silêncio (2010), de Sônia Bischain

K. – relato de uma busca (2011), de Bernardo Kucinski

Volto semana que vem (2015), de Maria Pilla

Antes do passado (2015), de Liniane Haag Brum

Ainda estou aqui (2015), de Marcelo Rubens Paiva

A resistência (2015), de Julián Fuks

Outros cantos (2016), de Maria Valéria Rezende

[1] Um breve histórico sobre a ditadura civil-militar brasileira: iniciou-se em 1964, quando as Forças Armadas, apoiadas por parte da sociedade civil, perpetraram o golpe contra o governo eleito do presidente João Goulart. O Regime Militar chegou ao seu ápice em 1968, quando entrou em vigência o Ato Institucional nº 5, conhecido como AI-5, que intensificou o poder dado aos governantes para punir arbitrariamente toda e qualquer pessoa que fosse considerada “inimiga do regime”. Nesse momento, o estado de exceção passou a controlar efetivamente não só as instituições, como também as pessoas, em seus cotidianos privados e em suas relações sociais e públicas. O número de mortos, desaparecidos e torturados é enorme.

[2] A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi instituída em 2012 pela então presidenta Dilma Rousseff e teve como objetivo investigar os graves desrespeitos dos direitos humanos cometidos entre 1946 e 1988. Em 2014, a Comissão entregou seu relatório final depois de entrevistar agentes envolvidos, organizar audiências públicas e pesquisar, em diferentes contextos e lugares, as perseguições do período militar. Entre as conclusões, está o fato de que as detenções ilegais e arbitrárias, como tortura, violência sexual, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres, foram uma prática generalizada e de política estatal, caracterizando-se como crimes contra a humanidade.

Vai ter Racionais na universidade sim! Entrevista com Alan Osmo

Quem tem acompanhado a imprensa e as redes sociais nas últimas semanas certamente viu uma novidade que movimentou as discussões na área dos estudos literários: o álbum Sobrevivendo no inferno (1997), do grupo de rap Racionais MC’s, passou a fazer parte do vestibular da Unicamp. A inclusão desse álbum na lista de leituras obrigatórias mexe com muitos pressupostos, teóricos e sociais, e traz tanto para as escolas, quanto para as universidades, questões que são importantíssimas de serem debatidas.

É interessante pensar que o rap também vem sendo estudado na academia e, para falar sobre isso, convidei Alan Osmo para uma entrevista. Ele gentilmente aceitou o convite e se dispôs a partilhar conosco aqui no blog seu ponto de vista sobre o assunto. Alan é graduado em Psicologia e em Letras pela USP e é mestre em Psicologia, também pela USP. Atualmente, faz doutorado no programa de Teoria e História Literária do IEL-Unicamp, com a pesquisa “A literatura tomada de assalto: testemunho e resistência em produções periféricas de São Paulo”, sob orientação do Prof. Márcio Seligmann-Silva.

Marca Páginas: A Comvest, comissão que organiza o vestibular da Unicamp, anunciou recentemente a inclusão do álbum Sobrevivendo no inferno na lista de leituras obrigatórias do vestibular 2020. Essa atitude abre precedentes para uma série de mudanças, como a ruptura de certas barreiras sociais que isolariam o rap nas periferias, o qual passa a ser acolhido em ambientes escolares e acadêmicos historicamente ocupados pelas classes média e alta. Que tipo de impacto você acredita que uma ação como essa pode ter na nossa sociedade?

Alan Osmo: Acho importante destacar que o rap, assim como o funk, é bastante ouvido em diversas classes sociais, não ficando, portanto, restrito apenas às periferias. No caso especificamente do Racionais MC’s, é bastante curioso que, mesmo entre os “playboys” (que são tematizados em diversas canções), há também muitos fãs do grupo. Acredito que o rap e o Racionais não estejam isolados na periferia, pois já possuem uma grande circulação social. Mas é claro que, pelo fato de se tratar de produções que vêm das periferias e, mais importante, de vozes que afirmam uma identidade negra e periférica, elas são vistas por parcela da sociedade, principalmente das elites, com uma série de preconceitos. Nesse sentido, cabe destacar que os ambientes escolares e acadêmicos no Brasil historicamente foram bastante fechados a produções de cultura popular, principalmente àquelas de matrizes afro-brasileira e indígena. Ao levarmos em conta que o Brasil era até poucas décadas atrás um país predominantemente analfabeto, aquilo que era considerado literatura nos ambientes escolares e acadêmicos, com raras exceções, se restringia ao que era produzido por pessoas que tinham certa circulação dentro de uma elite branca das grandes cidades, que tinham contato com o que estava sendo produzido na Europa no campo das artes e da literatura. Desse modo, a visão da literatura também passou de alguma forma a ser marcada e valorizada pelos padrões que eram definidos na Europa. Enquanto isso, no Brasil, toda uma tradição riquíssima de cultura popular, que se manifestava sobretudo na música e na dança, era desvalorizada como não sendo um objeto digno de ser estudado nas escolas e universidades. Acredito que essa escolha do disco do Racionais é uma iniciativa (ainda tímida, é verdade) no sentido de tornar aquilo que é estudado nas escolas e universidades um pouco mais representativo da diversidade brasileira e da complexidade de nossa realidade social.

Mano Brown, compositor e cantor do Racionais MC’s. Fonte: Instagram.

Marca Páginas: Ainda sobre a decisão da Comvest, vimos que muita gente questionou a credibilidade dessa inclusão, seja pela temática, que desagrada um público mais conservador, seja pela forma, já que música pode não ser vista como literatura de acordo com certa crítica tradicional. Na sua opinião, a presença desse álbum na lista de leituras obrigatórias abala as discussões dentro da academia? De que maneira o rap tem sido recebido e pesquisado nas universidades brasileiras?

Alan Osmo: É importante não deixarmos de ter um ponto de vista crítico em relação ao vestibular – à forma como ele determina aquilo que é estudado nas escolas, e ao fato de ele funcionar como um filtro social de quem vai estudar nas universidades públicas. Nesse sentido, a inclusão de uma obra que traz uma voz que representa uma parcela da população que não costuma ser abarcada sob aquilo que se legitima como “literatura” é ainda uma mudança tímida. É importante considerarmos também o novo contexto das universidades públicas, com as cotas sociais e raciais. Os alunos das universidades públicas agora representam um pouco mais a diversidade da população brasileira. Além disso, uma parcela de jovens que historicamente se viu privada de cursar o ensino superior passou a estudar em locais que antes eram quase que restritos a pessoas brancas de classe média e alta. Com uma mudança do perfil dos alunos das universidades públicas, acho compreensível o questionamento daquilo que é estudado e pesquisado nessas universidades. No caso de um curso de Letras ou Estudos Literários: por que se estudam tão poucos autores africanos, autores negros, autores indígenas? Na minha opinião, as críticas que são feitas sobre a inclusão da obra do Racionais na lista do vestibular, seja usando o argumento da temática das canções, seja usando o argumento de que se trata de música e não de literatura, partem de um ponto de vista conservador. Ora, a temática do disco do Racionais é sobretudo a violência da sociedade brasileira na década de 1990, o cotidiano vivido na periferia de uma grande cidade no Brasil, as terríveis desigualdades que geram verdadeiros abismos entre parcelas da população, o racismo e a violência policial voltados principalmente a jovens negros da periferia. Se essa temática choca, é porque nossa realidade social é chocante. Querer ignorar esses temas, estudando apenas autores que abordam outros assuntos, é também querer ignorar algo que marca profundamente a realidade social em que vivemos. E é importante destacar que a obra do Racionais aborda esses temas partindo do ponto de vista do negro morador da periferia, um ponto de vista que costuma ser bastante ignorado e silenciado por aquilo que tradicionalmente se considera “literatura”. Também considero conservador o ponto de vista que vê uma divisão nítida entre música e literatura, de modo que uma canção não possa ser vista como uma poesia. Se pegarmos a distinção de gêneros estabelecida na Grécia Antiga entre a poesia lírica, épica e dramática, a poesia lírica era aquela que era cantada e acompanhada de instrumentos musicais (o nome lírica vem do fato de ela ser acompanhada pela lira). Mesmo se pegarmos do ponto de vista de uma história da literatura mais tradicional, diversos poemas foram inicialmente feitos para ser musicados, ou então foram musicados em um período posterior. Pelo fato de um poema ser acompanhado de música, ele deixa de ser literatura? No Brasil, há toda uma tradição de canção popular que é riquíssima do ponto de vista poético e acredito ser uma grande perda para a área dos estudos literários ignorá-la. No caso do rap, é interessante destacar também que as letras que compõem o nome rap são frequentemente associadas a rhythm and poetry – ritmo e poesia. É característico desse gênero o destaque para aquilo que é falado, de modo a se enfatizar a parte poética da canção. Além disso, o rap já vem sendo objeto de diversas pesquisas acadêmicas no Brasil (principalmente em mestrados e doutorados) em distintas áreas do conhecimento: ciências sociais, geografia, educação, canção brasileira, estudos literários, linguística aplicada… Ainda assim, é bastante frequente uma certa resistência para se estudar o rap na área de estudos literários. Dificilmente é um assunto que vai ser abordado num curso de literatura brasileira, por exemplo. Torçamos para que essa inclusão da obra do Racionais na lista do vestibular da Unicamp contribua para mudar um pouco isso.

Marca Páginas: “Capítulo 4 Versículo 3” escancara a realidade das periferias da cidade de São Paulo: “60 por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais / Já sofreram violência policial”. Depois de mais de 20 anos do lançamento do álbum, de que maneira você acha possível falar sobre esse assunto? Em sua pesquisa de doutorado, como você aborda a questão da representação dessa realidade?

Alan Osmo: A forma como esses e os outros dados são apresentados no início da canção “Capítulo 4 Versículo 3” é muito interessante. São dados reais, objetivos, que poderiam estar sendo apresentados em um jornal ou na televisão. Além disso, são dados escandalosos que escancaram a violência e o racismo que caracterizam nossa sociedade. Mas o curioso é que esses dados não têm repercussão, ou não repercutem da forma como deveriam, isto é, na grande mídia e na elaboração de políticas públicas pelo governo. O racismo continua sendo negado por parcela da sociedade que acredita no mito da “democracia racial” e a violência segue sendo vista de forma simplista, como se fosse um problema de bandidos versus mocinhos. É impressionante também que esses dados apresentados na canção desse disco de 1998 seguem extremamente atuais, mesmo 20 anos depois: essas estatísticas mudaram muito pouco, ou inclusive pioraram. Seguimos com uma taxa elevadíssima de homicídios, principalmente de jovens negros. Seguimos com abordagens policiais violentas nas periferias, tendo como alvo sobretudo jovens negros, de modo que ao ouvirmos isso na canção, hoje, somos lembrados de que essa realidade pouco mudou. É como se o Racionais, na canção, jogasse na cara como nossa sociedade é hipócrita e segue ignorando esse problema, ou ao menos segue não sendo efetiva para mudar essa realidade de injustiça. Nesse sentido, cabe destacar que a canção do Racionais se insere em um contexto de luta política, sendo a música também vista como um instrumento de transformação social. Por meio do rap, são denunciadas injustiças e são reivindicadas mudanças. Por isso eu me interessei pelo Racionais, para pensar a violência no Brasil no período que se inicia na democratização pós-ditadura militar e segue até hoje. As décadas de 1980 e 1990, sobretudo, podem ser caracterizadas por um contexto de crescimento das desigualdades sociais; crescimento desordenado das grandes cidades, com condições de moradia precárias, falta de saneamento e uma quase ausência de serviços públicos; a consolidação de um mercado ilegal altamente lucrativo das drogas; e uma política sem sentido por parte do Estado de guerra às drogas. Nesse contexto, houve um grande crescimento dos índices de homicídio. É possível pensar também que, apesar de a ditadura militar oficialmente ter acabado em 1985, o aparato repressor continuou muito forte e presente, agindo sobretudo na população negra e periférica. Acredito que o Racionais, em suas canções, fala de forma eloquente sobre esse contexto. O primeiro disco do grupo, lançado em 1990, chama-se Holocausto urbano. Ou seja, logo de início eles se propuseram a falar sobre um verdadeiro extermínio que atinge parcela da população nas grandes cidades. É importante destacar que essa violência atinge de forma extremamente desigual a sociedade. Na cidade de São Paulo da década de 1990, por exemplo, enquanto havia bairros com índices de homicídio comparáveis aos dos países da Escandinávia, ou seja, baixíssimos, em outros bairros os índices eram comparáveis às regiões mais violentas do mundo. Acredito que as canções do Racionais testemunham sobre essa realidade de violência, fazendo isso a partir de um ponto de vista do jovem negro da periferia.

Marca Páginas: Por último, podemos dizer que a lista de leituras para vestibulares é uma grande influenciadora do que os jovens brasileiros leem. Em geral, o movimento é que uma obra seja cobrada pelos vestibulares e que, a partir disso, passe a integrar os materiais didáticos e a terem sua leitura cobrada em sala de aula. No caso do álbum do Racionais MC’s, porém, é possível que presenciemos, pela primeira vez, o caminho inverso; isto é, muitos jovens possivelmente já escutam e gostam da obra, independentemente da obrigatoriedade escolar. De que maneira você acredita que esse movimento inverso pode desempenhar um papel diferencial na formação desses jovens? Se pensarmos na representatividade que o rap carrega consigo, você acha que os jovens podem sentir sua realidade contemplada pelos conteúdos escolares e, consequentemente, pelo próprio vestibular?

Capa do álbum Sobrevivendo no Inferno

Alan Osmo: Eu concordo bastante com sua colocação. É muito frequente que a “literatura” ensinada nas escolas seja vista pelos jovens como algo distante e descolado de sua realidade. Desse modo, pode ser difícil se interessar por algo que diga pouco a respeito da realidade em que você vive, que fale de personagens com os quais você não se identifica, enfim, que fale de um contexto que se distancie muito, seja temporalmente, seja espacialmente daquele em que você se insere. Como consequência, a “literatura” pode acabar sendo vista como uma coisa chata e difícil. Pelo fato de muitos jovens já conhecerem e se interessarem pelo Racionais MC’s, é possível que seja um assunto mais fácil de ser abordado em sala de aula. Além disso, esses jovens podem se surpreender com o fato de que aquilo que é falado nas canções que eles gostam também pode ser considerado “literatura” e que, portanto, a “literatura” pode ser interessante e dizer respeito a algo próximo da realidade em que vivem. Além disso, há, nas canções, o ponto de vista do negro morador da periferia que dificilmente aparece em obras que se costumam estudar nas salas de aula. Isso pode propiciar que os jovens se identifiquem com os personagens de que falam as canções.

Marca Páginas: Antes de terminar, você gostaria de acrescentar mais alguma informação?

Alan Osmo: Eu gostaria apenas de destacar a importância da canção “Diário de um detento”, presente no disco Sobrevivendo no inferno, ainda mais em nosso contexto de hoje. De 1998 para cá, a população carcerária no Brasil aumentou de forma significativa, de modo que hoje o Brasil possui uma das maiores populações carcerárias do mundo. A canção “Diário de um detento” tem muita importância por falar da realidade de um presídio a partir do ponto de vista de um detento. Além disso, a canção é uma das mais importantes produções feitas sobre o Massacre do Carandiru, de 1992, em que pelo menos 111 presos foram brutalmente assassinados pela polícia militar. Já se passaram mais de 25 anos desse fato, mas ele segue sendo uma ferida aberta em nossa sociedade. No início de 2017, vimos novos massacres em diversos presídios no Brasil, em que pelo menos 133 pessoas foram mortas em 15 dias. Recentemente, no final de 2016, o julgamento que havia condenado os policiais militares envolvidos no Massacre do Carandiru foi anulado. Depois dessa decisão, o caso vai voltar para o tribunal do júri, para ser julgado novamente desde o início. Caso crimes como o do Massacre do Carandiru não sejam julgados, tendo seus fatos esclarecidos e punindo os responsáveis, podemos sempre recear que crimes parecidos voltem a acontecer. A pergunta feita no final da canção do Racionais – “Mas quem vai acreditar no meu depoimento?” – continua em aberto, lembrando que os sobreviventes e familiares das vítimas do Massacre do Carandiru ainda não tiveram o devido reconhecimento e reparação pelo crime que ocorreu.