Resistir é preciso: a(s) literatura(s) e a(s) ditadura(s), por Lua Gill
Não foi a primeira vez que a Cláudia, idealizadora/editora/cuidadora desse blog, tão bonito, e entusiasta da divulgação científica dos estudos literários, me convidou para escrever aqui. Devo começar dizendo que, a partir de certo momento da minha vida acadêmica, passei a me sentir cada vez mais formatada para um tipo único e padronizado de escrita e, com medo e me sentindo insegura, neguei tentar qualquer outra estrutura. É nesse contexto que me desafio para essa tarefa – ainda que entenda as minhas limitações diante dela. Por outro lado, o convite da Cláudia me pareceu dessa vez irrecusável: contar a minha participação em um evento acadêmico sobre literatura, a III Jornada de Crítica Literária: Literatura e Ditaduras, ocorrido na Universidade de Brasília (UnB) nos dias 4 e 5 de junho de 2018.
Não teria como falar desse evento sem olhar rapidamente para o presente brasileiro, em que as ressonâncias e as consequências do recente passado autoritário parecem cada vez mais fortes. Nas décadas de 1960 e 1970, a América Latina foi tomada por diversos regimes militares. As estruturações e as formas de atuação foram diferentes em cada país, bem como as respectivas transições para a democracia. No caso do Brasil[1], que viveu sob uma ditadura militar de 1964 a 1985, pouco se discutiu e se acolheu das reivindicações de memória e de justiça desde a redemocratização. Nunca levaram os torturadores à Justiça, por exemplo. Não se desmilitarizou a polícia. As famílias não foram efetivamente reparadas pelos mortos, torturados e desaparecidos até hoje. Não se debateu ampla e publicamente o que aconteceu nos 21 anos de ditadura – mesmo quando tínhamos uma presidenta que era ex-guerrilheira ou mesmo depois da abertura de uma Comissão Nacional da Verdade[2] para averiguar o que havia acontecido naquele período.
Já hoje, o sentimento geral é de angústia e de paralisia diante da política. Há dois anos, a primeira presidenta mulher eleita do Brasil sofreu um impeachment. Durante este processo, vimos um pré-candidato à presidência homenagear, em televisão aberta, um reconhecido torturador da ditadura militar brasileira. Desde então, nos sentimos atacados por todos os lados e vemos nossos direitos mais básicos serem ameaçados. Foi aprovada uma PEC que congelou os gastos públicos (inclusive de saúde e educação, por exemplo) por vinte anos e sofremos ataques complicadíssimos à cultura, aos direitos trabalhistas e das mulheres, de LGBTs, e de negros e negras. Há alguns meses, na cidade do Rio de Janeiro, foi decretada uma nova intervenção militar e foi nesta mesma cidade que a quinta vereadora mais votada do município, Marielle Franco, defensora dos direitos humanos, foi brutalmente assassinada, junto de seu motorista, Anderson Gomes. Por fim, recentemente, durante uma das maiores greves dos últimos anos, vimos pedidos explícitos e irresponsáveis de “intervenção militar”, que começaram a pipocar pelo Brasil todo.
E o que tudo isso tem a ver com o evento que assisti em Brasília? Ou como se relaciona com esse blog? A jornada da UnB teve como objetivo principal debater exatamente como a literatura tem pensado e refletido sobre as ditaduras, especialmente as da América Latina e, principalmente, a do Brasil. E por que “voltamos” a debater isso, décadas depois da redemocratização desses países? Por tudo que tem acontecido atualmente, mas também porque, ao contrário do que alguns querem nos fazer acreditar, a literatura e a crítica literária não são isentas, imparciais, mas podem e devem nos fazer tomar partido, nos posicionar.
Para não dizer que não falamos das flores, a ascensão do conservadorismo, antes e agora, não veio sem resistência, inclusive no campo da crítica literária atual, sobre a qual quero discutir aqui. Desde que comecei a pesquisar sobre as relações entre literatura e ditadura, em 2013, o tema vem crescendo, se expandindo, ainda mais nos últimos dois anos (o que, evidentemente, não se dá por acaso): autores e críticos literários têm se debruçado sobre esse assunto na medida em que tentam também entender e atuar no presente. As produções e as críticas artísticas têm debatido o apagamento histórico, apontando para a necessidade de uma política de memória e dando voz àqueles que não tiveram o seu testemunho ouvido.
O evento em Brasília foi um exemplo grandioso dessa atenção. O local escolhido para a realização da jornada, isto é, a UnB, por si só já diz bastante. Nessa universidade, professores e alunos resistiram amplamente durante o regime militar. Tão perto da Esplanada dos Ministérios e do Palácio do Planalto, hoje ela se abre novamente para novas formas de resistência da crítica literária, especialmente graças ao Grupo de Estudos em Literatura Contemporânea Brasileira – referência nessa temática para o Brasil inteiro –, da UnB, por meio dos professores Regina Dalcastagnè, Rejane Pivetta e Paulo César Thomaz. Não por acaso, o primeiro curso sobre o Golpe de 2016 foi proposto e houve tentativa de censura na mesma universidade. Por tudo isso, foi, para mim, um privilégio ter a oportunidade de estar com pesquisadores, escritores e professores extremamente reconhecidos e competentes em seus trabalhos, ver e ouvir pessoas que li, dar rosto a quem saía apenas das palavras impressas, além de ter a possibilidade de realizar uma troca efetiva sobre o meu tema de pesquisa (o que não é tão comum para a maioria das pesquisas de estudos literários feitas em nosso país).
O próprio evento, na sua organização, se estruturou de forma extremamente democrática, destacando-se de outros eventos dos quais já participei. Estiveram lado a lado, nas falas, nas mesas e na organização, pesquisadores e professores da área, estudantes de graduação e de pós-graduação e autores de romance e poesia, muitos deles testemunhas vivas do tempo da ditadura. Outra coisa que me chamou a atenção foi a presença massiva, nas mesas, de mulheres, as quais totalizaram mais de 70%, o que também não costuma ser comum em eventos desse tipo.
É muito recorrente ouvirmos pessoas justificarem a ditadura brasileira dizendo que a perseguição atingiu apenas um grupo de pessoas: uma certa classe média, branca, intelectual, do sudeste do Brasil, “comunista e terrorista”, como se isso o justificasse. Se, por um lado, o número de mortos da CNV mantém esse dado, tal definição é bastante redutora e problemática. Devemos lembrar, como mostraram as falas no evento, que o regime militar afetou o Brasil como um todo e principalmente grupos minoritários, subjugados politicamente (há um cálculo de algo como 8 mil indígenas mortos durante a ditadura e mil camponeses, para além do número de 434 mortos, apresentado e mantido pela CNV). Durante as falas, pude ouvir outras perspectivas e testemunhos desse tempo, a exemplo de Sonia Bischain, uma das fundadoras do Sarau da Brasa, a qual relatou o contexto de produção literária e resistência na periferia paulista durante o regime; a pesquisadora e poeta negra Lívia Nathalia, que apresentou a produção negra contemporânea e denunciou o genocídio da juventude negra de ontem e de hoje; a escritora indígena Eliane Potiguara, que demonstrou o histórico de escravização e perseguição das diversas etnias indígenas e o esforço pela manutenção da cultura e da língua; a apresentação do livro “O fuzil e as flechas”, no qual o jornalista Rubens Valente recupera mais um capítulo apagado da história da ditadura civil-militar brasileira e analisa mais de 80 entrevistas de indígenas, sertanistas, indigenistas e antropólogos; ou ainda a apresentação da pós-graduanda Leocádia Chaves, sobre o testemunho do período ditatorial de uma transexual, Ruddy Pinho.
Além dessas novas e extremamente ricas perspectivas para o debate contemporâneo de recuperação da memória, guardarei com carinho três outras falas: Maria Pilla, autora de Volto semana que vem (2015); Maria José Silveira, autora de O fantasma de Luis Buñuel (2004) e A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas (2002); e Pedro Tierra, autor de Poemas do povo da noite (1979). Todos eles são escritores e ex-guerrilheiros. Os seus testemunhos sobre as perseguições, a clandestinidade e as torturas que sofreram, e o processo posterior de elaboração e de testemunho, através da literatura, foram emocionantes e serviram de inspiração, principalmente para mim (e imagino que para grande parte do público presente) que não teve que lutar para ter seus direitos mais básicos garantidos.
Depois dessa experiência, convido os leitores a acompanharem as produções que virão desses pesquisadores e autores citados, inclusive por meio das falas desse evento, que devem ser publicadas em breve. Hoje, mais do que nunca, precisamos reforçar a defesa da Universidade pública, do investimento à pesquisa (também de crítica literária), da autonomia universitária e da liberdade de expressão. Os atos de debater com nossos amigos, colegas, irmos a eventos, fazermos as nossas pesquisas são essenciais nesse contexto. Hoje, nosso trabalho também se dá como uma forma de resistirmos. Isso não é pouco. Não é hora de omissões. Como no passado, as futuras gerações dependem disso e do nosso compromisso com a memória e com a justiça.
Da minha parte, fica o agradecimento à UnB e aos professores organizadores, pela acolhida, pela atenção ao tema e pela organização de um evento tão importante para o debate atual, político e literário. Senti, ao fim dos dois dias, um sopro de esperança diante das angústias sentidas. Resistimos juntos. Assim como Maria José Silveira apontou, a resistência partia, e ainda parte, de uma profunda crença de que o afeto, a solidariedade e a felicidade, enfim, devem ser coletivos e de todos.
Deixo por fim uma breve lista de romances que tematizam a questão e que, entre outros, valem a pena serem lidos:
Em câmara lenta (1979), de Renato Tapajós
Memórias do esquecimento (1999), de Flávio Tavares
Não falei (2004), de Beatriz Bracher
Soledad no Recife (2009), de Uraniano Mota
Azul-corvo (2010), de Adriana Lisboa
Nem tudo é silêncio (2010), de Sônia Bischain
K. – relato de uma busca (2011), de Bernardo Kucinski
Volto semana que vem (2015), de Maria Pilla
Antes do passado (2015), de Liniane Haag Brum
Ainda estou aqui (2015), de Marcelo Rubens Paiva
A resistência (2015), de Julián Fuks
Outros cantos (2016), de Maria Valéria Rezende
[1] Um breve histórico sobre a ditadura civil-militar brasileira: iniciou-se em 1964, quando as Forças Armadas, apoiadas por parte da sociedade civil, perpetraram o golpe contra o governo eleito do presidente João Goulart. O Regime Militar chegou ao seu ápice em 1968, quando entrou em vigência o Ato Institucional nº 5, conhecido como AI-5, que intensificou o poder dado aos governantes para punir arbitrariamente toda e qualquer pessoa que fosse considerada “inimiga do regime”. Nesse momento, o estado de exceção passou a controlar efetivamente não só as instituições, como também as pessoas, em seus cotidianos privados e em suas relações sociais e públicas. O número de mortos, desaparecidos e torturados é enorme.
[2] A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi instituída em 2012 pela então presidenta Dilma Rousseff e teve como objetivo investigar os graves desrespeitos dos direitos humanos cometidos entre 1946 e 1988. Em 2014, a Comissão entregou seu relatório final depois de entrevistar agentes envolvidos, organizar audiências públicas e pesquisar, em diferentes contextos e lugares, as perseguições do período militar. Entre as conclusões, está o fato de que as detenções ilegais e arbitrárias, como tortura, violência sexual, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres, foram uma prática generalizada e de política estatal, caracterizando-se como crimes contra a humanidade.