Utopia: o sonho que antecede o pesadelo?

Uma sociedade perfeita é um perfeito pesadelo, porque ela elimina a última coisa a ser eliminada do mundo, que é o indivíduo. Pode eliminar tudo, menos o indivíduo, porque, se você eliminar o indivíduo, aí já está tudo eliminado, não tem mais nada. (Carlos Berriel)

No episódio Utopia: o sonho que antecede o pesadelo?, do podcast Oxigênio, o Carlos Eduardo Ornelas Berriel falou sobre utopia. Essa palavra, inventada a partir do grego, quer dizer “não lugar”, “o que não está em lugar nenhum”. A gente fala de utopia normalmente pra se referir a um lugar ou a uma sociedade onde tudo é perfeito. Ou também para se referir a uma situação que tende a não se realizar, um sonho inalcançável. Então, por que será que uma sociedade perfeita seria um perfeito pesadelo? Por que ela eliminaria os indivíduos?

O Berriel é professor e pesquisador do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp, e faz mais de 20 anos que ele tem se dedicado ao tema das utopias literárias. Ele é fundador e editor da Revista Morus – Utopia e Renascimento e dirige o Centro de Estudos sobre Utopias da Unicamp, chamado U-TOPOS. O Berriel também é membro de várias sociedades científicas internacionais voltadas para o problema utópico e tem se dedicado à tradução, ao estudo e à publicação de utopias italianas.

Definição da utopia ou a utopia da definição?

 

A utopia é um campo de reflexão que nasceu no século XX e tem sido especialmente estudado de uns trinta anos para cá. Os estudiosos desse campo, porém, consideram que a utopia ainda está em definição; eles têm realizado uma série de discussões para tentar definir a utopia.

O Berriel, que é mais ligado à área da literatura, enxerga a utopia como um gênero literário, um tipo de texto, que tem características muito específicas: ele nasceu com a sociedade moderna, a sociedade burguesa, e é muito próximo da sátira ou é mesmo uma sátira política, que é típica de períodos de grandes transformações sociais.

A sátira como um tipo de texto surgiu na Roma Antiga, e o Lucílio, que nasceu por volta de 180 a.C., é considerado seu criador. A palavra satura tem a ver com um tipo de bandeja cheia – saturada – de frutas. O autor da sátira imitava outros gêneros: é como se ele misturasse em uma mesma obra (bandeja), vários gêneros literários (frutas) diferentes. Isso acontece, porque, como disse o Berriel, o chão da sátira é uma crise social, uma rachadura na crosta histórica; é como se um mundo estivesse acabando e outro ainda estivesse nascendo.

E, na beira desse abismo, o escritor ainda não podia inventar um gênero novo; então, ele imitava e misturava gêneros “mortos”, gêneros de um mundo que estava acabando. O satirista está no “mundo novo”, mas usa materiais literários do “mundo velho”, o que dá ao texto um sabor irônico, de uma coisa relativamente falsa, de um riso de canto de boca, que é o riso do cachorro, cinus, de onde pode vir o termo “cinismo”. Assim, toda sátira teria um elemento de duplicidade, de um certo riso disfarçado.

O cinismo da utopia e o riso do cachorro. (Foto de Jonathan Daniels, Unsplash)

 

O Berriel considera que a utopia nasceu com a publicação, em 1516, de um livro chamado justamente Utopia, escrito pelo Thomas Morus. Esse livro seria uma sátira, no sentido de que é uma reflexão sobre uma nova sociedade.

Lembra que eu disse que a palavra “utopia” tinha sido inventada a partir do grego? Então, foi o Morus, que não era grego e sim inglês, que criou essa palavra. E ele não só criou a palavra, mas também criou a utopia enquanto esse tipo de texto literário, que descreve uma sociedade supostamente perfeita em todos os sentidos. Mas esse texto não simplesmente descreve essa sociedade – o que poderia acontecer em um tratado político, por exemplo –, ele faz isso por meio de uma ficção, de uma história inventada.

Retrato “Sir Thomas More”, Hans Holbein (1527)

 

Comunidade X Sociedade

 

Como o Berriel disse, a Utopia do Morus seria uma sátira por refletir sobre uma nova sociedade. E que nova sociedade seria essa? O ano era 1516: navegações, chegada ao Novo Mundo, desenvolvimento de uma nova economia (o capitalismo mercantil)… Além disso, uma nova classe social, a burguesia, começa a tomar conta da sociedade. Thomas Morus está dentro desse quadro de grande convulsão social. Ele é um intelectual, um escritor, que absorve elementos históricos que estão chegando para ele como uma avalanche (imagina viver naquela época!). Mas, ao mesmo tempo, ele tem um olhar conservador, porque lamenta o desaparecimento de certos elementos da comunidade feudal.

A comunidade é uma forma de vida coletiva que é regida por uma tradição e não pelo dinheiro. O que é diferente da sociedade burguesa que estava nascendo naquela época. Nessa sociedade, as relações entre as pessoas eram mais utilitaristas, mais focadas nos indivíduos, o que, por um lado, é bom, porque a pessoa passa a ter liberdade pra buscar outros vínculos, mais baseados no interesse dela do que em uma tradição. Porém, por outro lado, essa mudança gerava um problema central dentro da Utopia, que é o descarte, o abandono, da população… 

Apesar de a comunidade ser dura, ter dominadores e dominados, dentro dela, todos tinham um lugar, definido em uma estrutura hierárquica: Deus estava acima de tudo, depois vinham os nobres, os cavaleiros e vai descendo até chegar ao mais humilde dos servos, um homem comum. Era essa comunidade feudal, com essa organização, que estava desaparecendo na época em que o Morus escreveu a Utopia. No caso da Inglaterra, onde ele morava, esse desaparecimento era acelerado pelo surgimento de manufaturas de tecido, o que expulsava as pessoas do campo para colocar ovelhas nesses locais, animais que dariam a lã utilizada na produção dos tecidos.

O Morus lamentava o desaparecimento dessa estrutura feudal, que era a forma de poder da Igreja Católica, a qual estruturava a visão de mundo nessa época. E, com o desenvolvimento do capitalismo, a Igreja não iria se sustentar se ficasse do mesmo jeito (o protestantismo viria a ser a expressão religiosa da burguesia).

Então, o Morus – que inclusive foi canonizado, virou santo – mesmo que criticasse os problemas da igreja, como a corrupção e a ociosidade de alguns religiosos, estava preocupado com o fim do feudalismo em seu país, porque os camponeses estavam sendo expulsos do campo, estavam perdendo o lugar (ainda que injusto) que ocupavam antes. Com isso, acontecia um aumento da pobreza e da criminalidade; muitas pessoas eram condenadas à morte por cometerem crimes como roubo. Essa é a questão do descarte da população, que é central na Utopia.

Na visão do Berriel, o Morus teria escrito esse livro para discutir esse fato, lamentar a perda desse passado, o que deixa o livro extremamente contraditório, como as utopias costumam ser. Enquanto gênero literário, as utopias seriam essa captura de um momento de grande transição da sociedade. Mas não é só isso…

Diagnóstico e remédio

 

A utopia é a percepção de um desenvolvimento histórico e uma reflexão sobre ele, mas ela não é só um diagnóstico dos problemas sociais daquele contexto. Ela oferece também um fármaco, um remédio, para os males sociais, em uma forma ficcional, em uma narrativa, na qual ela projeta uma sociedade inventada que tem a solução para todos os problemas identificados pelo escritor.

A Utopia do Morus, assim como algumas das outras utopias que vieram depois, era movida por um desejo de criticar a sociedade da sua época, mas também por um desejo de propor reformas, mesmo que provavelmente os escritores de utopias não acreditassem que aquela sociedade que eles estavam descrevendo, inventando, fosse realizável. Por isso, as utopias costumam ser datadas, porque são bem ligadas a problemas históricos específicos. Além disso, como já disse o Berriel, elas são também contraditórias, ambíguas… Essa característica já aproximaria as utopias das distopias, que são narrativas que descrevem sociedades perfeitamente imperfeitas ou sociedades perfeitas em seus defeitos.

O problema da perfeição

 

O Berriel acredita que a distopia é um galho do tronco da utopia, porque, em grande parte, o procedimento, o material da distopia, já está na utopia. As utopias têm um problema grave, marcante, que é o seguinte: o utopista oferece uma solução, um modo de organizar a vida. Então, as utopias inventam uma sociedade completa. Completa no sentido de que elas preveem como as pessoas vão morar, como elas vão trabalhar, como elas vão casar, como elas vão morrer, como elas se relacionam com a ciência, com a natureza, com outros países. É completa. Essa é uma exigência das grandes utopias, das utopias clássicas: fazer um desenho completamente suficiente do que seria uma sociedade. Ela funciona inteira, não está faltando nada, ela já nasce pronta. 

O utopista escreve, então, uma narrativa em que ele expõe as ideias dele sobre um mundo perfeito, completo. Já dá pra ver um problema nisso, se a gente pensar que a ideia de perfeição normalmente é diferente pra cada pessoa: o sonho de alguns pode ser o pesadelo de outros. Só que o problema da perfeição não para por aí…

Ilustração da Ilha de Utopia, autor desconhecido (1516)

 

A sociedade da Ilha de Utopia, do Thomas Morus, não nasceu de um desenvolvimento natural, em que a população foi vivendo a sua história, errando, acertando, corrigindo, refletindo… Simplesmente, praticamente do nada, chega uma pessoa, com um exército, que é o rei Utopus, com uma constituição já definida nos mínimos detalhes. E essa constituição, essas leis que ele traz são tidas como perfeitas. E, se elas são perfeitas, a perfeição é um problema grave, porque ela significa o congelamento da história. Se algo é perfeito, você não pode aperfeiçoar.

Na Utopia do Morus qualquer problema do mundo real que você possa imaginar, na economia, nas relações humanas, enfim, qualquer problema, já está solucionado. E ele está solucionado antes de qualquer coisa, não pela experiência das pessoas, mas por uma lei fixa, racional, sem defeitos. O modo de operar dessa sociedade não pode ser alterado, porque já é perfeito. Então, aquela sociedade fica congelada no tempo. Como tudo está perfeito, nada pode ser mexido. Dessa forma, a história é eliminada. E, se você elimina a história, você elimina também os indivíduos, que são histórias individuais, que se misturam, formam histórias coletivas, dos povos… Na utopia não existe história.

A nossa individualidade depende da nossa história, da passagem do tempo, das nossas experiências, de conflitos, dos nossos erros, dos nossos enganos… E na utopia não tem nada disso. Como a história é eliminada, o tempo fica congelado em uma sociedade que é tida como perfeita; é como se as pessoas vivessem em um eterno presente. A gente pode perceber isso, inclusive, na forma como o texto é escrito: na utopia não tem personagens, parece que só tem funcionários:

Você imagina aqueles funcionários com uma bata branca, uma cara plácida, trazendo a sabedoria perfeita. Uma coisa horrível, né? Uma sociedade perfeita é um perfeito pesadelo, porque ela elimina a última coisa a ser eliminada do mundo, que é o indivíduo. Pode eliminar tudo, menos o indivíduo, porque, se você eliminar o indivíduo, aí já está tudo eliminado, não tem mais nada. (Carlos Berriel)

De fato, na utopia você não tem doenças, não tem fome, não tem guerra, não tem epidemias, você não tem uma série de coisas, porque todo o Estado funciona que é uma maravilha, às custas da própria alma da história, que é o indivíduo. Portanto, a primeira utopia já é uma distopia. No entanto, será necessária a passagem dos séculos para que a gente tenha essa outra visão…

Se você quiser saber mais sobre as distopias, confira o episódio Utopia: o sonho que antecede o pesadelo?.   Lá a conversa com o Berriel continuou, e ele falou sobre algumas características específicas dessas “primas” das utopias, ilustrando essa questão com o exemplo de um episódio da série britânica Black Mirror e mostrando o elemento distópico que as tecnologias trazem para a sociedade atual, quando colocamos objetos tecnológicos para mediar as nossas relações com outras pessoas…

O “espelho preto”, black mirror, que a gente carrega para todos os lados seria um elemento distópico da nossa época? (Foto de Jamie Street, Unsplash)

 

A série

 

 

“Leitura de Fôlego” é uma série do podcast de jornalismo e divulgação científica Oxigênio, produzido por alunos do Labjor-Unicamp e coordenado por Simone Pallone. Essa série sobre literatura aborda temas de pesquisa de quatro professores do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Aqui no “Marca Páginas”, já temos textos sobre os outros episódios da série: um sobre os livros licenciosos, que, por conterem cenas de sexo (entre outros motivos), eram proibidos no Brasil dos séculos XVIII e XIX, mas que circularam bastante por aqui nessa época; outro sobre os ensaios, um tipo de texto que dá liberdade para o seu autor se mostrar, com suas dúvidas e imperfeições; e, por fim, um sobre livros brasileiros em que narradores homens, ao narrarem um conflito amoroso, tentam silenciar as vozes de suas parceiras (mas as vozes das mulheres conseguem escapar e se inserir na narrativa).

Todos os programas da série estão integralmente transcritos na descrição dos episódios no site do Oxigênio, para que pessoas surdas ou com alguma deficiência auditiva possam ter acesso ao conteúdo. Os episódios podem ser acessados pelo site do Oxigênio, pelo site da Rádio e TV Unicamp, pelo canal no Youtube da TV Unicamp ou por agregadores como Google Podcasts e Spotify.

Ensaio em cena

No episódio “O ensaio em cena ou o espetáculo da dúvida”, do Podcast Oxigênio, o Alexandre Soares Carneiro falou sobre o ensaio, um tipo de texto muito livre, que pode ter várias formas e tratar de diferentes assuntos. O ensaio também dá espaço para quem o escreve mostrar suas dúvidas e seus pensamentos, mostrar a si mesmo sem enfeite nem edição. O Alexandre pesquisa assuntos como Literatura Medieval, Renascimento e, há mais de dez anos, ele estuda o nascimento e as transformações do gênero ensaístico. Ele é professor e pesquisador do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp.

Ensaiando uma definição
Algumas capas de livros de ensaios…

Michel de Montaigne, George Orwell, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Luis Borges, Antonio Candido, Robert Louis Stevenson, Pier Paolo Pasolini, Emil Cioran… Escritores muito diferentes, como os dessa pequena lista, escreveram ensaios igualmente muito diferentes. E toda essa diferença já mostra que definir “ensaios”, de forma geral, não é uma tarefa simples. O Alexandre Carneiro, porém, ensaiou uma definição.

Para o pesquisador, apesar de poder assumir variados aspectos, o ensaio tende a incorporar as dúvidas do processo de reflexão, o que se relaciona à característica dialógica do ensaio, ou seja, à sua aproximação a um tom de conversa. Normalmente, as conversas não são sistemáticas e elas dão a liberdade para a gente ir testando ideias, até mesmo aquelas insólitas, estranhas…     

“Podemos identificar a tal liberdade do ensaio no fato de o ensaísta expressar não apenas o resultado final, mas um pouco do processo irregular do pensamento, desde a formulação de um problema, uma dúvida, um paradoxo que ele observou, passando pelas hipóteses iniciais, as hesitações, desvios, correções.” (Alexandre Soares Carneiro)

Então, apesar de não ser fácil definir um ensaio, muitas vezes encontramos nesses textos algumas características em comum: pessoalidade, liberdade e um esforço de descrever um problema, de uma forma necessariamente não sistemática e em um tom parecido com o de uma conversa.

Um livro de boa-fé

Mais fácil do que definir um ensaio é dizer quando essa palavra passou a ser usada para se referir a esse tipo de texto. O francês Michel de Montaigne (1533-1592) teria inaugurado o uso dessa palavra para tal fim ao dar o título Ensaios para uma série de 3 livros que ele foi escrevendo e reescrevendo desde 1571 até a sua morte. A palavra “ensaios” – que nos remete a tentativas, esboços – revelava a modéstia do escritor, que começou com reflexões breves a partir de leituras que fazia e depois foi se sentindo mais à vontade para falar sobre si mesmo, sobre a própria escrita, sobre acontecimentos de sua época… Apenas para dar uma ideia da diversidade de temas abordados por Montaigne, estes são alguns dos títulos de seus ensaios:

Somente depois da morte podemos julgar se fomos felizes ou infelizes; De como filosofar é aprender a morrer; Da amizade; Dos canibais; Como uma mesma coisa nos faz rir e chorar; Da solidão; Dos odores; Da incoerência de nossas ações; Da embriaguez; Dos polegares; A covardia é mãe da crueldade; Dos correios; Da inconveniência de se fingir de doente.

Retrato de Michel de Montaigne (pintor desconhecido). Esse escritor francês, autor dos livros Ensaios, é a grande referência para o gênero ensaístico.

 

A nota “Ao leitor”, que Montaigne escreveu como abertura de seus ensaios, mesmo que com um quê de dissimulação (para conquistar a generosidade dos leitores), mostra as motivações despretensiosas do escritor, que aproximam os seus textos a uma conversa entre amigos.

Eis aqui, leitor, um livro de boa-fé.

Adverte-o ele de início que só o escrevi para mim mesmo, e alguns íntimos, sem me preocupar com o interesse que poderia ter para ti, nem pensar na posteridade. Tão ambiciosos objetivos estão acima de minhas forças. Voltei-o em particular a meus parentes e amigos, e isso a fim de que, quando eu não for mais deste mundo (o que em breve acontecerá), possam nele encontrar alguns traços de meu caráter e de minhas ideias e assim conservem mais inteiro e vivo o conhecimento que de mim tiveram. Se houvesse almejado os favores do mundo, ter-me-ia enfeitado e me apresentaria sob uma forma mais cuidada, de modo a produzir melhor efeito. Prefiro, porém, que me vejam na minha simplicidade natural, sem artifício de nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto. Vivos se exibirão meus defeitos e todos me verão na minha ingenuidade física e moral, pelo menos enquanto o permitir a conveniência. Se tivesse nascido entre essa gente de quem se diz viver ainda na doce liberdade das primitivas leis da natureza, assegure-te que de bom grado me pintaria por inteiro e nu. [1]

Folha de rosto do terceiro livro dos Ensaios (1588).

 

Essa aproximação entre os ensaios e uma conversa mais íntima, entre amigos, pode ser relacionada a um acontecimento da vida do ensaísta francês…

Porque era ele, porque era eu

Montaigne foi muito amigo do Étienne de La Boétie, que ficou conhecido por ter escrito, ainda na adolescência, o Discurso da servidão voluntária. Só que, com 33 anos, o La Boétie ficou doente e morreu. Isso abalou muito o Montaigne. E o crítico literário suíço Jean Starobinski fala que, na falta de La Boétie, os Ensaios seriam uma tentativa do Montaigne de estender esse diálogo que ele tinha com o amigo.

Inclusive, em um trecho do documentário Chico Buarque – Cinema, de 2006, dirigido por Roberto de Oliveira, o músico e escritor brasileiro, ao comentar sua música “Porque era ela, porque era eu”, fala dessa história famosa da amizade entre os dois franceses:

Desde criança, todo mundo lá [na França] sabe quem é o Montaigne, e essa frase dele [“porque era ele, porque era eu”] se refere à amizade dele com o La Boétie, que era um outro escritor, foi um grande amigo dele de juventude. E o Montaigne […] escrevia ensaios e, ao longo da vida, ele foi reescrevendo alguns ensaios; eles eram publicados e republicados e tal. E uma vez ele falou isso. Perguntavam a razão dessa grande amizade que ele tinha tido com esse outro escritor, o La Boétie, que morreu jovem. E ele falava que não sabia explicar. […] Eu gostava dele e não sabia justificar porque gostava dele e ponto. Depois, mais adiante, quinze anos depois, ele, revendo esse ensaio dele, escreveu ao lado da página assim “eu gostava dele, porque era ele”, ponto. Aí foi impresso na nova edição dos ensaios, “eu gostava dele, porque era ele” e ponto. Quinze anos depois, ele olhou essa frase e anotou de novo, num canto da página, “eu gostava dele, porque era ele e porque era eu” e ponto.

O documentário está disponível no canal da produtora do filme, RWR. O trecho citado acima pode ser assistido por meio deste link.

Documentário Chico Buarque – Cinema, 2006.

 

No episódio de podcast “O ensaio em cena ou o espetáculo da dúvida”, não falamos sobre esse trechinho da fala do Chico. Porém, a conversa com o professor Alexandre não parou nesse ponto da amizade entre Montaigne e La Boétie.

A conversa continua…

Mas não aqui no blog. Se você está gostando desse assunto, ouça o que mais rolou nessa conversa. Só para dar um gostinho: lá, o Alexandre falou sobre o ensaio “Do pedantismo”, no qual o Montaigne discute a ideia de que a educação pode ajudar, mas pode também atrapalhar o nosso julgamento. Além disso, para o ensaísta, às vezes é mais importante como a gente sabe do que quanto a gente sabe…

[Alguns] Sabem dizer “como observa Cícero”, “eis o que fazia Platão”, “são palavras de Aristóteles”, mas que dizemos nós próprios? Que pensamos? Que fazemos? Um papagaio poderia substituir-nos. […] E conheço um [sujeito] que ao ser indagado acerca do que lhe cumpre saber, vai logo buscar um livro para mostrar e jamais ousaria dizer que tem o traseiro sarnento sem previamente procurar em dicionário a significação de sarna e de traseiro. (Do pedantismo, Michel de Montaigne) [2]

A gente ainda conversou sobre o ensaísmo brasileiro (que é mais importante do que parece) e sobre a relação entre o ensaísmo e a crítica literária brasileira. Por fim, o Alexandre deu algumas dicas de ensaístas de várias épocas e lugares para quem se animou para ler esse tipo de texto.

A série

“Leitura de Fôlego” é uma série do podcast de jornalismo e divulgação científica Oxigênio, produzido por alunos do Labjor-Unicamp e coordenado por Simone Pallone. Essa série sobre literatura aborda temas de pesquisa de quatro professores do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Além desse episódio sobre os ensaios, foram abordados os seguintes temas: livros licenciosos, silenciamento de personagens femininas na literatura brasileira e utopias. Aqui no “Marca Páginas” já temos um post sobre os livros licenciosos, que, por conterem cenas de sexo (entre outros motivos), eram proibidos no Brasil dos séculos XVIII e XIX, mas que circularam bastante nessa época. Em breve, também vamos ter mais textos, apresentando os temas dos outros dois episódios.

Todos os programas da série estão integralmente transcritos na descrição dos episódios no site do Oxigênio, para que pessoas surdas ou com alguma deficiência auditiva possam ter acesso ao conteúdo. Os episódios podem ser acessados pelo site do Oxigênio, pelo site da Rádio e TV Unicamp, pelo canal no Youtube da TV Unicamp ou por agregadores, como Google Podcasts e Spotify.

Referências

[1] Tanto os títulos dos ensaios quanto essa nota “Ao leitor” foram retirados da edição dos Ensaios publicada no Brasil pela Editora 34, em 2016. A tradução é do escritor Sérgio Milliet.

[2] Esse trecho está nas páginas 174 e 175 da edição citada na nota anterior.

Leitura proibida

No episódio “Livros licenciosos = leitura proibida”, do podcast Oxigênio, a Márcia de Azevedo Abreu apresentou o universo dos livros licenciosos, contando também sobre a censura (e a circulação clandestina) deles aqui no Brasil, nos séculos XVIII e XIX. Esse é um dos temas de pesquisa da Márcia, que é professora do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Ela desenvolve pesquisas nas áreas de História do Livro e da Leitura e História da Literatura.

“Ter um livro licencioso em casa, ou vender um livro licencioso, naquela época, era tão perigoso como hoje seria vender droga pesada.” (Márcia Abreu)

 

Márcia Abreu. Foto do currículo Lattes.

 

Livro licencioquê?

 

Alguns sinônimos da palavra “licencioso” são “devasso, libertino, desregrado, impudico, libidinoso, lascivo e indecente”. Isso já dá uma ideia do teor desses livros, mas, para ficar mais preciso: o romance licencioso é um tipo de narrativa que mistura um enredo com cenas de sexo e discussões filosóficas sobre a religião ou sobre a natureza humana, como questões do funcionamento dos corpos, das diferenças entre as culturas ou das relações de poder. Um exemplo clássico de livro licencioso é o Teresa filósofa, um romance, provavelmente escrito pelo francês Jean-Baptiste de Boyer, o Marquês d’Argens, em 1748, mas que está disponível no Brasil em várias edições atuais.

 

Ilustração de François-Rolland Elluin (1745-1810) para o livro Teresa filósofa. Domínio público.

 

A censura de livros (licenciosos)

 

Se até hoje em dia a censura de livros gera discussões, imagina o que os letrados do século XVIII não pensavam sobre livros com cenas de sexo… Só que o problema dos romances licenciosos é até anterior a isso, ele já começa pelo fato de eles serem simplesmente romances. Hoje, a gente acha legal ler romance, mas, naquela época, ele era visto como um gênero literário (um tipo de texto) menor. E existiam três problemas principais relacionados aos romances:

  1. perder tempo: naquela época se acreditava que o nosso tempo na Terra tinha que ser usado para fazer coisas que nos levassem à salvação eterna. A Márcia Abreu até contou de um caso engraçado, em que uma pessoa dizia: “Se Jesus Cristo voltasse à Terra e batesse na porta de uma pessoa hoje em dia, ela não ia atender, porque ela estaria entretida lendo um romance”.
  2. corromper ou estragar o gosto: uma boa leitura, naquele tempo, era verificar quão bem um escritor colocou em prática os preceitos da retórica e da poética. O romance não está previsto em nenhuma retórica ou poética; então, ele era uma complicação. E, por isso, os letrados achavam que ele estragava o gosto das pessoas.  
  3. prejudicar a moral: muita gente – não só os letrados, como também os pais de família e os religiosos, por exemplo – achava que o romance mostrava a vida de pessoas que faziam coisas erradas. Mostrar essas coisas erradas já seria um problema, mas, pra eles, o romance, ainda por cima, mostrava isso de um jeito envolvente, fazendo com que os leitores se identificassem com essas personagens “erradas”, gostassem delas e até entendessem e desculpassem os erros que elas cometeram.

 

A Leitora, Pierre-Auguste Renoir (1841-1919). Domínio público.

 

E se o romance tivesse cenas de sexo e falasse mal da religião e da monarquia, então, era uma combinação incendiária! Os letrados ficavam ainda mais alvoroçados. No caso dos romances licenciosos, uma quarta preocupação é a de que as pessoas passassem da leitura para ação. Os letrados achavam que os comportamentos e os corpos podiam se modificar com a leitura. Dá para imaginar o que acontecia com o corpo durante a leitura de um livro licencioso… O filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, inclusive, brincava que um romance licencioso era um livro que se lia com uma mão só.

Nesse contexto, então, a censura tinha um papel muito importante na imprensa. Todos os livros, sem exceção, tinham que receber uma autorização de publicação. E os censores faziam a leitura dos livros, verificando se não tinha algum problema com a igreja, com a monarquia ou com a moral vigente. Na verdade, eles acabavam fazendo muito mais que isso. A atuação desses censores, que eram pessoas muito cultas, influenciava a qualidade literária das obras; eles corrigiam, por exemplo, problemas de verossimilhança ou de métrica. Além disso, os longos pareceres que eles faziam sobre os livros nos ajudam a entender a recepção dos textos em uma época em que não existia a crítica literária da forma como conhecemos hoje. Só que esses pareceres eram dados para todos os livros enviados para a censura analisar. E, no caso dos romances licenciosos, os autores nem ousavam pedir autorização para publicar. Então, a circulação desses livros era clandestina. E os documentos da censura que a gente tem hoje sobre esse tipo de livro são de quando alguma coisa dava errado, quando acontecia alguma apreensão ou algo do tipo.

Era superperigoso ter ou vender um livro licencioso naquela época. Se uma pessoa fosse pega com um livro desses, ela podia ser presa. Se fosse um livreiro, a loja dele podia ser fechada, e os bens dele confiscados. Apesar dessas complicações todas, pelos registros de apreensão, dá pra saber que os romances licenciosos circulavam bastante aqui no Brasil nos séculos XVIII e XIX. 

No podcast “Livros licenciosos = leitura proibida”, a Márcia falou sobre algumas formas clandestinas que o pessoal encontrava para fazer esses livros circularem. Ela também falou sobre um caso curioso e até meio misterioso. Um dos primeiros romances publicados no Brasil – pela tipografia oficial do rei – foi justamente um romance licencioso: História de dois amantes ou o templo de Jatab. A Márcia contou a história desse livro, e é difícil de entender como que ele passou na censura e foi publicado oficialmente. Se você quiser ouvir essa história, entra lá no podcast.

A série

 

“Leitura de Fôlego” é uma série do podcast Oxigênio que aborda temas de pesquisa de quatro professores do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Além desse episódio sobre os livros licenciosos, foram abordados os seguintes temas: ensaios, silenciamento de personagens femininas da literatura brasileira e utopias. Aqui no “Marca Páginas”, vamos ter mais textos, apresentando também os temas desses outros episódios. 

Ah, todos os episódios da série são transcritos integralmente, para que pessoas surdas ou com alguma deficiência auditiva possam ter acesso ao conteúdo dos programas.