No episódio “Livros licenciosos = leitura proibida”, do podcast Oxigênio, a Márcia de Azevedo Abreu apresentou o universo dos livros licenciosos, contando também sobre a censura (e a circulação clandestina) deles aqui no Brasil, nos séculos XVIII e XIX. Esse é um dos temas de pesquisa da Márcia, que é professora do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Ela desenvolve pesquisas nas áreas de História do Livro e da Leitura e História da Literatura.
“Ter um livro licencioso em casa, ou vender um livro licencioso, naquela época, era tão perigoso como hoje seria vender droga pesada.” (Márcia Abreu)
Livro licencioquê?
Alguns sinônimos da palavra “licencioso” são “devasso, libertino, desregrado, impudico, libidinoso, lascivo e indecente”. Isso já dá uma ideia do teor desses livros, mas, para ficar mais preciso: o romance licencioso é um tipo de narrativa que mistura um enredo com cenas de sexo e discussões filosóficas sobre a religião ou sobre a natureza humana, como questões do funcionamento dos corpos, das diferenças entre as culturas ou das relações de poder. Um exemplo clássico de livro licencioso é o Teresa filósofa, um romance, provavelmente escrito pelo francês Jean-Baptiste de Boyer, o Marquês d’Argens, em 1748, mas que está disponível no Brasil em várias edições atuais.
A censura de livros (licenciosos)
Se até hoje em dia a censura de livros gera discussões, imagina o que os letrados do século XVIII não pensavam sobre livros com cenas de sexo… Só que o problema dos romances licenciosos é até anterior a isso, ele já começa pelo fato de eles serem simplesmente romances. Hoje, a gente acha legal ler romance, mas, naquela época, ele era visto como um gênero literário (um tipo de texto) menor. E existiam três problemas principais relacionados aos romances:
- perder tempo: naquela época se acreditava que o nosso tempo na Terra tinha que ser usado para fazer coisas que nos levassem à salvação eterna. A Márcia Abreu até contou de um caso engraçado, em que uma pessoa dizia: “Se Jesus Cristo voltasse à Terra e batesse na porta de uma pessoa hoje em dia, ela não ia atender, porque ela estaria entretida lendo um romance”.
- corromper ou estragar o gosto: uma boa leitura, naquele tempo, era verificar quão bem um escritor colocou em prática os preceitos da retórica e da poética. O romance não está previsto em nenhuma retórica ou poética; então, ele era uma complicação. E, por isso, os letrados achavam que ele estragava o gosto das pessoas.
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prejudicar a moral: muita gente – não só os letrados, como também os pais de família e os religiosos, por exemplo – achava que o romance mostrava a vida de pessoas que faziam coisas erradas. Mostrar essas coisas erradas já seria um problema, mas, pra eles, o romance, ainda por cima, mostrava isso de um jeito envolvente, fazendo com que os leitores se identificassem com essas personagens “erradas”, gostassem delas e até entendessem e desculpassem os erros que elas cometeram.
E se o romance tivesse cenas de sexo e falasse mal da religião e da monarquia, então, era uma combinação incendiária! Os letrados ficavam ainda mais alvoroçados. No caso dos romances licenciosos, uma quarta preocupação é a de que as pessoas passassem da leitura para ação. Os letrados achavam que os comportamentos e os corpos podiam se modificar com a leitura. Dá para imaginar o que acontecia com o corpo durante a leitura de um livro licencioso… O filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, inclusive, brincava que um romance licencioso era um livro que se lia com uma mão só.
Nesse contexto, então, a censura tinha um papel muito importante na imprensa. Todos os livros, sem exceção, tinham que receber uma autorização de publicação. E os censores faziam a leitura dos livros, verificando se não tinha algum problema com a igreja, com a monarquia ou com a moral vigente. Na verdade, eles acabavam fazendo muito mais que isso. A atuação desses censores, que eram pessoas muito cultas, influenciava a qualidade literária das obras; eles corrigiam, por exemplo, problemas de verossimilhança ou de métrica. Além disso, os longos pareceres que eles faziam sobre os livros nos ajudam a entender a recepção dos textos em uma época em que não existia a crítica literária da forma como conhecemos hoje. Só que esses pareceres eram dados para todos os livros enviados para a censura analisar. E, no caso dos romances licenciosos, os autores nem ousavam pedir autorização para publicar. Então, a circulação desses livros era clandestina. E os documentos da censura que a gente tem hoje sobre esse tipo de livro são de quando alguma coisa dava errado, quando acontecia alguma apreensão ou algo do tipo.
Era superperigoso ter ou vender um livro licencioso naquela época. Se uma pessoa fosse pega com um livro desses, ela podia ser presa. Se fosse um livreiro, a loja dele podia ser fechada, e os bens dele confiscados. Apesar dessas complicações todas, pelos registros de apreensão, dá pra saber que os romances licenciosos circulavam bastante aqui no Brasil nos séculos XVIII e XIX.
No podcast “Livros licenciosos = leitura proibida”, a Márcia falou sobre algumas formas clandestinas que o pessoal encontrava para fazer esses livros circularem. Ela também falou sobre um caso curioso e até meio misterioso. Um dos primeiros romances publicados no Brasil – pela tipografia oficial do rei – foi justamente um romance licencioso: História de dois amantes ou o templo de Jatab. A Márcia contou a história desse livro, e é difícil de entender como que ele passou na censura e foi publicado oficialmente. Se você quiser ouvir essa história, entra lá no podcast.
A série
“Leitura de Fôlego” é uma série do podcast Oxigênio que aborda temas de pesquisa de quatro professores do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Além desse episódio sobre os livros licenciosos, foram abordados os seguintes temas: ensaios, silenciamento de personagens femininas da literatura brasileira e utopias. Aqui no “Marca Páginas”, vamos ter mais textos, apresentando também os temas desses outros episódios.
Ah, todos os episódios da série são transcritos integralmente, para que pessoas surdas ou com alguma deficiência auditiva possam ter acesso ao conteúdo dos programas.