Leitura proibida

No episódio “Livros licenciosos = leitura proibida”, do podcast Oxigênio, a Márcia de Azevedo Abreu apresentou o universo dos livros licenciosos, contando também sobre a censura (e a circulação clandestina) deles aqui no Brasil, nos séculos XVIII e XIX. Esse é um dos temas de pesquisa da Márcia, que é professora do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Ela desenvolve pesquisas nas áreas de História do Livro e da Leitura e História da Literatura.

“Ter um livro licencioso em casa, ou vender um livro licencioso, naquela época, era tão perigoso como hoje seria vender droga pesada.” (Márcia Abreu)

 

Márcia Abreu. Foto do currículo Lattes.

 

Livro licencioquê?

 

Alguns sinônimos da palavra “licencioso” são “devasso, libertino, desregrado, impudico, libidinoso, lascivo e indecente”. Isso já dá uma ideia do teor desses livros, mas, para ficar mais preciso: o romance licencioso é um tipo de narrativa que mistura um enredo com cenas de sexo e discussões filosóficas sobre a religião ou sobre a natureza humana, como questões do funcionamento dos corpos, das diferenças entre as culturas ou das relações de poder. Um exemplo clássico de livro licencioso é o Teresa filósofa, um romance, provavelmente escrito pelo francês Jean-Baptiste de Boyer, o Marquês d’Argens, em 1748, mas que está disponível no Brasil em várias edições atuais.

 

Ilustração de François-Rolland Elluin (1745-1810) para o livro Teresa filósofa. Domínio público.

 

A censura de livros (licenciosos)

 

Se até hoje em dia a censura de livros gera discussões, imagina o que os letrados do século XVIII não pensavam sobre livros com cenas de sexo… Só que o problema dos romances licenciosos é até anterior a isso, ele já começa pelo fato de eles serem simplesmente romances. Hoje, a gente acha legal ler romance, mas, naquela época, ele era visto como um gênero literário (um tipo de texto) menor. E existiam três problemas principais relacionados aos romances:

  1. perder tempo: naquela época se acreditava que o nosso tempo na Terra tinha que ser usado para fazer coisas que nos levassem à salvação eterna. A Márcia Abreu até contou de um caso engraçado, em que uma pessoa dizia: “Se Jesus Cristo voltasse à Terra e batesse na porta de uma pessoa hoje em dia, ela não ia atender, porque ela estaria entretida lendo um romance”.
  2. corromper ou estragar o gosto: uma boa leitura, naquele tempo, era verificar quão bem um escritor colocou em prática os preceitos da retórica e da poética. O romance não está previsto em nenhuma retórica ou poética; então, ele era uma complicação. E, por isso, os letrados achavam que ele estragava o gosto das pessoas.  
  3. prejudicar a moral: muita gente – não só os letrados, como também os pais de família e os religiosos, por exemplo – achava que o romance mostrava a vida de pessoas que faziam coisas erradas. Mostrar essas coisas erradas já seria um problema, mas, pra eles, o romance, ainda por cima, mostrava isso de um jeito envolvente, fazendo com que os leitores se identificassem com essas personagens “erradas”, gostassem delas e até entendessem e desculpassem os erros que elas cometeram.

 

A Leitora, Pierre-Auguste Renoir (1841-1919). Domínio público.

 

E se o romance tivesse cenas de sexo e falasse mal da religião e da monarquia, então, era uma combinação incendiária! Os letrados ficavam ainda mais alvoroçados. No caso dos romances licenciosos, uma quarta preocupação é a de que as pessoas passassem da leitura para ação. Os letrados achavam que os comportamentos e os corpos podiam se modificar com a leitura. Dá para imaginar o que acontecia com o corpo durante a leitura de um livro licencioso… O filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, inclusive, brincava que um romance licencioso era um livro que se lia com uma mão só.

Nesse contexto, então, a censura tinha um papel muito importante na imprensa. Todos os livros, sem exceção, tinham que receber uma autorização de publicação. E os censores faziam a leitura dos livros, verificando se não tinha algum problema com a igreja, com a monarquia ou com a moral vigente. Na verdade, eles acabavam fazendo muito mais que isso. A atuação desses censores, que eram pessoas muito cultas, influenciava a qualidade literária das obras; eles corrigiam, por exemplo, problemas de verossimilhança ou de métrica. Além disso, os longos pareceres que eles faziam sobre os livros nos ajudam a entender a recepção dos textos em uma época em que não existia a crítica literária da forma como conhecemos hoje. Só que esses pareceres eram dados para todos os livros enviados para a censura analisar. E, no caso dos romances licenciosos, os autores nem ousavam pedir autorização para publicar. Então, a circulação desses livros era clandestina. E os documentos da censura que a gente tem hoje sobre esse tipo de livro são de quando alguma coisa dava errado, quando acontecia alguma apreensão ou algo do tipo.

Era superperigoso ter ou vender um livro licencioso naquela época. Se uma pessoa fosse pega com um livro desses, ela podia ser presa. Se fosse um livreiro, a loja dele podia ser fechada, e os bens dele confiscados. Apesar dessas complicações todas, pelos registros de apreensão, dá pra saber que os romances licenciosos circulavam bastante aqui no Brasil nos séculos XVIII e XIX. 

No podcast “Livros licenciosos = leitura proibida”, a Márcia falou sobre algumas formas clandestinas que o pessoal encontrava para fazer esses livros circularem. Ela também falou sobre um caso curioso e até meio misterioso. Um dos primeiros romances publicados no Brasil – pela tipografia oficial do rei – foi justamente um romance licencioso: História de dois amantes ou o templo de Jatab. A Márcia contou a história desse livro, e é difícil de entender como que ele passou na censura e foi publicado oficialmente. Se você quiser ouvir essa história, entra lá no podcast.

A série

 

“Leitura de Fôlego” é uma série do podcast Oxigênio que aborda temas de pesquisa de quatro professores do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Além desse episódio sobre os livros licenciosos, foram abordados os seguintes temas: ensaios, silenciamento de personagens femininas da literatura brasileira e utopias. Aqui no “Marca Páginas”, vamos ter mais textos, apresentando também os temas desses outros episódios. 

Ah, todos os episódios da série são transcritos integralmente, para que pessoas surdas ou com alguma deficiência auditiva possam ter acesso ao conteúdo dos programas.

Ler, por Cesare Pavese (tradução Cláudia Alves)

O artigo “Ler” (no original, “Leggere”) foi escrito por Cesare Pavese e publicado pela primeira vez em 20 junho de 1945, no L’Unità, jornal italiano  comunista fundado por Antonio Gramsci, em 1924. Posteriormente, foi recolhido na coletânea póstuma A literatura americana e outros ensaios, de 1951.

Vale lembrar, em brevíssima contextualização, que após o fim da segunda guerra mundial, assim como dos anos vividos sob o regime fascista, a reconstrução da Itália, em todos os sentidos, passará a ser um tema recorrente entre intelectuais e escritores . A reflexão de Pavese localiza-se, portanto, nesse momento em que as relações entre literatura e sociedade se encontram bastante afetadas pela perspectiva de um país que deverá encontrar maneiras de se reerguer culturalmente (e ideologicamente).

Trecho de manuscrito de Pavese (fonte: https://fondazionecesarepavese.it/)

Ler

É verdade que não devemos nos cansar de conclamar os escritores à clareza, à simplicidade, à solicitude para com as massas que não escrevem, mas às vezes se instaura a dúvida de que nem todos saibam ler. Ler é tão fácil, dizem aqueles cujo hábito de ler acabou com qualquer respeito pela palavra escrita. Mas quem, pelo contrário, trata de homens ou de coisas mais do que de livros, e sai pela manhã e volta à noite, endurecido, quando por acaso ele se recolhe a uma página, dá-se conta de ter sob os olhos algo difícil e bizarro, esmorecido e ao mesmo tempo forte, que o agride e o encoraja. Seria inútil dizer que este último está mais perto da verdadeira leitura do que o outro.

Acontece com os livros assim como com as pessoas. São levados a sério. Mas justamente por isso devemos nos precaver de torná-los ídolos, isto é, instrumentos de nossa preguiça. O homem que não vive entre livros, e que deve fazer um esforço para abri-los, tem um capital de humildade, de força inconsciente – a única que vale – que lhe permite se aproximar das palavras com o respeito e a ansiedade com que se aproxima de uma pessoa querida. E isso vale muito mais do que a “cultura”; isso é, na verdade, a verdadeira cultura. Necessidade de compreender os outros, caridade para com os outros, que é afinal o único modo de compreender e amar a nós mesmos: a cultura começa aqui. Os livros não são os homens, são meios para alcançá-los; quem os ama e não ama os homens é um presunçoso ou um condenado.

Existe um obstáculo ao ler – e é sempre o mesmo, em todos os campos da vida –, a excessiva segurança de si, a falta de humildade, a recusa a acolher o outro, o diferente. Sempre nos fere a inaudita descoberta de que alguém viu não mais longe do que nós, mas diferentemente de nós. Somos feitos de hábitos mesquinhos. Amamos nos maravilhar, como crianças, mas não tanto assim. Quando o estupor nos impele a sair de nós mesmos, a perder o equilíbrio para reencontrar talvez um outro mais destemido, então enrugamos a boca, batemos o pé, voltamos realmente a ser criança. Mas das crianças nos falta a virgindade, que é a inocência. Nós temos ideias, temos gostos, já lemos livros: possuímos alguma coisa e, como todo possuidor, estremecemos por esta alguma coisa.

Todos nós, infelizmente, já lemos. E como acontece frequentemente de os pequenos burgueses se importarem mais com o falso decoro e os preconceitos de classe do que os ágeis aventureiros do grande mundo, assim o ignorante que leu alguma coisa se prende cegamente ao gosto, à banalidade, ao preconceito que o tomou, e a partir de então, se ocorre de ele ainda ler, ele julga e condena tudo de acordo com tal medida. É muito fácil aceitar a perspectiva mais banal e se apegar a ela, seguros do consenso da maioria. É muito cômodo supor que todo esforço já acabou e que se conhece a beleza, a verdade, a justiça. É cômodo e vil. É como acreditar que se está absolvido do eterno e temente dever de ter caridade com os homens simplesmente porque de vez em quando dá uma moeda ao pedinte. Nada faremos, nem mesmo aqui, sem o respeito e a humildade: a humildade que entreabre frestas em nós através da nossa substância de orgulho e preguiça, o respeito que nos persuade à dignidade dos outros, do diferente, do próximo enquanto tal.

Fala-se sobre livros. E sabe-se que livros, quanto mais ingênua e plana é a sua voz, mais dor e tensão eles custaram a quem os escreveu. É inútil, portanto, ter esperança de tateá-los sem pagar um preço pessoal por isso. Ler não é fácil. E acontece, como se costuma dizer, que quem estudou, quem se move agilmente no mundo do conhecimento e do gosto, quem tem o tempo e os meios para ler, muito frequentemente acaba sem alma, sem amor pelo homem, acaba encrostado e endurecido pelo egoísmo de casta. Enquanto quem aspiraria, como aspira à vida, a este mundo da fantasia e do pensamento, quase sempre se encontra ainda privado dos elementos iniciais: lhes falta o alfabeto de alguma linguagem, não lhes sobram nem tempo, nem forças, ou, pior, estão corrompidos por uma falsa preparação, quase uma propaganda, que lhes barra e deturpa os valores. Quem encara um tratado de física, um texto de contabilidade, a gramática de uma língua, sabe que existe uma preparação específica, um conjunto mínimo de noções indispensáveis para tirar algum proveito da nova leitura. Quantos se dão conta de que uma bagagem técnica análoga é necessária para se aproximar de um romance, um poema, um ensaio, uma reflexão? E, ainda, que essas noções técnicas são incomensuravelmente mais complexas, sutis e fugidias do que as outras, e não podem ser encontradas em nenhum manual, em nenhuma bíblia? Todos acham que um conto, um poema, será naturalmente acessível à atenção humana comum, por falar não ao físico, ao contabilista ou ao especialista, mas sim ao homem que existe em todos eles. E é este o erro. Outro é o homem, outro, os homens. No final das contas, é tola a lenda de que poetas, narradores e filósofos se referem ao homem em absoluto, ao homem abstrato, ao Homem. Eles falam ao indivíduo de uma determinada época e situação, ao indivíduo que tem determinados problemas e procura resolvê-los à sua maneira, inclusive e sobretudo quando lê romances. Será preciso então, para entender os romances, situar-se em sua época e propor-se os seus problemas; o que quer dizer, nesse campo, aprender antes de mais nada as linguagens, a necessidade das linguagens. Convencer-se de que, se um escritor escolhe certas palavras, certos tons e ares insólitos, ele tem pelo menos o direito de não ser subitamente condenado em nome de uma leitura precedente, na qual os ares e as palavras estavam mais organizados, eram mais fáceis ou apenas diferentes. Esse feito da linguagem é o mais vistoso, mas não o mais urgente. Claro, tudo é linguagem em um escritor, mas basta ter compreendido isso para se ver em um mundo mais vivo e complexo, onde a questão de uma palavra, de uma inflexão, de uma cadência, torna-se de repente um problema de costume, de moralidade. Ou até mesmo de política.

Isso basta então. A arte, como dizem, é uma coisa séria. É tão séria quanto a moral e a política. Mas se temos o dever de nos aproximar dessas duas últimas com uma modéstia que mira a clareza – caridade com os outros e dureza conosco –, não é possível compreender com que direito, diante de uma página escrita, nos esquecemos de sermos homens e de que com um homem estamos falando.

Referência bibliográfica

PAVESE, Cesare. La letteratura americana e altri saggi. Livro digital. Turim: Einaudi, 2014, s/p.