Ler, por Cesare Pavese (tradução Cláudia Alves)

O artigo “Ler” (no original, “Leggere”) foi escrito por Cesare Pavese e publicado pela primeira vez em 20 junho de 1945, no L’Unità, jornal italiano  comunista fundado por Antonio Gramsci, em 1924. Posteriormente, foi recolhido na coletânea póstuma A literatura americana e outros ensaios, de 1951.

Vale lembrar, em brevíssima contextualização, que após o fim da segunda guerra mundial, assim como dos anos vividos sob o regime fascista, a reconstrução da Itália, em todos os sentidos, passará a ser um tema recorrente entre intelectuais e escritores . A reflexão de Pavese localiza-se, portanto, nesse momento em que as relações entre literatura e sociedade se encontram bastante afetadas pela perspectiva de um país que deverá encontrar maneiras de se reerguer culturalmente (e ideologicamente).

Trecho de manuscrito de Pavese (fonte: https://fondazionecesarepavese.it/)

Ler

É verdade que não devemos nos cansar de conclamar os escritores à clareza, à simplicidade, à solicitude para com as massas que não escrevem, mas às vezes se instaura a dúvida de que nem todos saibam ler. Ler é tão fácil, dizem aqueles cujo hábito de ler acabou com qualquer respeito pela palavra escrita. Mas quem, pelo contrário, trata de homens ou de coisas mais do que de livros, e sai pela manhã e volta à noite, endurecido, quando por acaso ele se recolhe a uma página, dá-se conta de ter sob os olhos algo difícil e bizarro, esmorecido e ao mesmo tempo forte, que o agride e o encoraja. Seria inútil dizer que este último está mais perto da verdadeira leitura do que o outro.

Acontece com os livros assim como com as pessoas. São levados a sério. Mas justamente por isso devemos nos precaver de torná-los ídolos, isto é, instrumentos de nossa preguiça. O homem que não vive entre livros, e que deve fazer um esforço para abri-los, tem um capital de humildade, de força inconsciente – a única que vale – que lhe permite se aproximar das palavras com o respeito e a ansiedade com que se aproxima de uma pessoa querida. E isso vale muito mais do que a “cultura”; isso é, na verdade, a verdadeira cultura. Necessidade de compreender os outros, caridade para com os outros, que é afinal o único modo de compreender e amar a nós mesmos: a cultura começa aqui. Os livros não são os homens, são meios para alcançá-los; quem os ama e não ama os homens é um presunçoso ou um condenado.

Existe um obstáculo ao ler – e é sempre o mesmo, em todos os campos da vida –, a excessiva segurança de si, a falta de humildade, a recusa a acolher o outro, o diferente. Sempre nos fere a inaudita descoberta de que alguém viu não mais longe do que nós, mas diferentemente de nós. Somos feitos de hábitos mesquinhos. Amamos nos maravilhar, como crianças, mas não tanto assim. Quando o estupor nos impele a sair de nós mesmos, a perder o equilíbrio para reencontrar talvez um outro mais destemido, então enrugamos a boca, batemos o pé, voltamos realmente a ser criança. Mas das crianças nos falta a virgindade, que é a inocência. Nós temos ideias, temos gostos, já lemos livros: possuímos alguma coisa e, como todo possuidor, estremecemos por esta alguma coisa.

Todos nós, infelizmente, já lemos. E como acontece frequentemente de os pequenos burgueses se importarem mais com o falso decoro e os preconceitos de classe do que os ágeis aventureiros do grande mundo, assim o ignorante que leu alguma coisa se prende cegamente ao gosto, à banalidade, ao preconceito que o tomou, e a partir de então, se ocorre de ele ainda ler, ele julga e condena tudo de acordo com tal medida. É muito fácil aceitar a perspectiva mais banal e se apegar a ela, seguros do consenso da maioria. É muito cômodo supor que todo esforço já acabou e que se conhece a beleza, a verdade, a justiça. É cômodo e vil. É como acreditar que se está absolvido do eterno e temente dever de ter caridade com os homens simplesmente porque de vez em quando dá uma moeda ao pedinte. Nada faremos, nem mesmo aqui, sem o respeito e a humildade: a humildade que entreabre frestas em nós através da nossa substância de orgulho e preguiça, o respeito que nos persuade à dignidade dos outros, do diferente, do próximo enquanto tal.

Fala-se sobre livros. E sabe-se que livros, quanto mais ingênua e plana é a sua voz, mais dor e tensão eles custaram a quem os escreveu. É inútil, portanto, ter esperança de tateá-los sem pagar um preço pessoal por isso. Ler não é fácil. E acontece, como se costuma dizer, que quem estudou, quem se move agilmente no mundo do conhecimento e do gosto, quem tem o tempo e os meios para ler, muito frequentemente acaba sem alma, sem amor pelo homem, acaba encrostado e endurecido pelo egoísmo de casta. Enquanto quem aspiraria, como aspira à vida, a este mundo da fantasia e do pensamento, quase sempre se encontra ainda privado dos elementos iniciais: lhes falta o alfabeto de alguma linguagem, não lhes sobram nem tempo, nem forças, ou, pior, estão corrompidos por uma falsa preparação, quase uma propaganda, que lhes barra e deturpa os valores. Quem encara um tratado de física, um texto de contabilidade, a gramática de uma língua, sabe que existe uma preparação específica, um conjunto mínimo de noções indispensáveis para tirar algum proveito da nova leitura. Quantos se dão conta de que uma bagagem técnica análoga é necessária para se aproximar de um romance, um poema, um ensaio, uma reflexão? E, ainda, que essas noções técnicas são incomensuravelmente mais complexas, sutis e fugidias do que as outras, e não podem ser encontradas em nenhum manual, em nenhuma bíblia? Todos acham que um conto, um poema, será naturalmente acessível à atenção humana comum, por falar não ao físico, ao contabilista ou ao especialista, mas sim ao homem que existe em todos eles. E é este o erro. Outro é o homem, outro, os homens. No final das contas, é tola a lenda de que poetas, narradores e filósofos se referem ao homem em absoluto, ao homem abstrato, ao Homem. Eles falam ao indivíduo de uma determinada época e situação, ao indivíduo que tem determinados problemas e procura resolvê-los à sua maneira, inclusive e sobretudo quando lê romances. Será preciso então, para entender os romances, situar-se em sua época e propor-se os seus problemas; o que quer dizer, nesse campo, aprender antes de mais nada as linguagens, a necessidade das linguagens. Convencer-se de que, se um escritor escolhe certas palavras, certos tons e ares insólitos, ele tem pelo menos o direito de não ser subitamente condenado em nome de uma leitura precedente, na qual os ares e as palavras estavam mais organizados, eram mais fáceis ou apenas diferentes. Esse feito da linguagem é o mais vistoso, mas não o mais urgente. Claro, tudo é linguagem em um escritor, mas basta ter compreendido isso para se ver em um mundo mais vivo e complexo, onde a questão de uma palavra, de uma inflexão, de uma cadência, torna-se de repente um problema de costume, de moralidade. Ou até mesmo de política.

Isso basta então. A arte, como dizem, é uma coisa séria. É tão séria quanto a moral e a política. Mas se temos o dever de nos aproximar dessas duas últimas com uma modéstia que mira a clareza – caridade com os outros e dureza conosco –, não é possível compreender com que direito, diante de uma página escrita, nos esquecemos de sermos homens e de que com um homem estamos falando.

Referência bibliográfica

PAVESE, Cesare. La letteratura americana e altri saggi. Livro digital. Turim: Einaudi, 2014, s/p.

A verdade escorregadia para Machado de Assis: ciência, literatura e jornalismo, por Laís Souza Toledo Pereira

Em 1808, com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, houve uma inédita e instantânea transformação no nosso país: ele passou de colônia à sede da Corte. Nesse contexto, algumas condições foram criadas aqui, mesmo que de modo artificial, para servir às necessidades da Corte portuguesa. Uma das primeiras transformações ocasionadas por essa mudança foi o surgimento da imprensa no Brasil, já que o governo agora precisava imprimir aqui seus documentos oficiais. Além disso, qualquer atividade relacionada à imprensa era proibida no nosso país até esse momento, como acontecia também em outras colônias de Portugal. É nesse contexto, evidentemente marcado por um enorme analfabetismo, que surgem os primeiros jornais brasileiros. [1]

O primeiro periódico impresso no Brasil, ainda em 1808, foi a Gazeta do Rio de Janeiro, que já realizava o papel de divulgar assuntos relacionados à ciência. Desse modo, a comunicação de ciência se inicia no Brasil no século XIX, nos seus recém-criados jornais cotidianos, não especializados e voltados ao grande público. Aliás, era assim que a comunicação de ciência ocorria na maioria dos países nessa época, quando os conhecimentos muito especializados não circulavam nos jornais, mas por meio de correspondências entre os cientistas. Depois, foram essas cartas que deram origem ao que conhecemos hoje como periódicos científicos, ou seja, publicações em assuntos de ciência voltadas a especialistas. [2]

Uma característica marcante desse início da comunicação científica no Brasil é que ela era feita, na maior parte das vezes, por “homens ligados à ciência”, como médicos e engenheiros, e havia um grande interesse pelas aplicações práticas da ciência, sobretudo no contexto específico do nosso país, como em temas relacionados à agricultura e à saúde, por exemplo. A ciência, assim, era frequentemente relacionada nessas publicações a termos como “progresso”, “luzes”, “desenvolvimento”, “interesse do Brasil” e “felicidade pública”. [3]

Esse tom ao tratar de assuntos sobre ciência continuou ao longo do século XIX, período em que os cientistas ganharam autonomia, prestígio e poder [4]. As últimas décadas desse século foram marcadas por uma grande euforia, que vinha da esperança na modernidade e na ciência. As novas teorias científicas – o maior exemplo talvez seja a Teoria da Evolução de Charles Darwin, apresentada em 1859 – geravam um sentimento de que todos os mistérios da natureza haviam sido desvendados. Nesse contexto, os “métodos científicos” passaram a fazer parte do cotidiano não só de médicos ou biólogos, por exemplo, como também de artistas e literatos. Para alguns desses literatos, havia o desejo de que o trabalho literário tivesse um engajamento social e reformador. E, assim, anunciando uma decadência dos românticos, surgiram os chamados Naturalistas, que defendiam uma objetividade, uma verdade impessoal na literatura, no lugar da imaginação ou do sentimento, por exemplo.

Foi nesse cenário que Machado de Assis (1839-1908) se inseriu em uma polêmica. O escritor, que dispensa maiores apresentações, tinha uma desconfiança da ideia de que a literatura devesse se unir completamente à ciência e apenas “fotografar” a realidade, revelando uma “verdade” da sociedade. Mais do que isso, Machado sugeria que a própria noção de que as ideias científicas eram objetivas e imparciais não era indiscutível. Para ele, o discurso cientificista, como qualquer outro, era construído de forma provisória, em meio a disputas e tensões, e tinha suas lacunas, contradições e, muitas vezes, até o intuito de atender a interesses particulares. Machado não afirmava que a realidade não existia, mas ele combatia a fragilidade de falas unânimes da ciência no século XIX e também o modo como muitos intelectuais brasileiros aceitavam sem grandes questionamentos essas “novas ideias”. Inclusive, tais ideias, normalmente importadas da Europa, muitas vezes se adaptavam mal ao contexto brasileiro ou até eram aplicadas de um modo que atendesse a certos propósitos das classes dominantes do nosso país, como para justificar desigualdades “naturais” entre os seres humanos e, portanto, legitimar a manutenção da escravidão por aqui.

Machado de Assis. Divulgação da campanha “Machado de Assis Real”, feita pela Faculdade Zumbi dos Palmares

Machado se envolveu nessa polêmica debatendo sobre o assunto com outros literatos de seu tempo (houve até quem o acusasse de não ter uma “educação científica”, já que Machado, de origem humilde, não estudou na Europa, como era costume na época). E o seu conhecido romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em folhetim, ou seja, publicado nos jornais, ao longo do ano de 1881, seria fruto também de suas reflexões sobre esse tema e uma forma de Machado, por meio da literatura, afirmar seu posicionamento. No entanto, além de abordar tais questões em seus textos mais puramente teóricos ou literários, o bruxo do Cosme Velho, como Machado é conhecido, também tratou desse assunto em suas crônicas.

O significado original da palavra “crônica” vem do grego “kronos”, tempo, e se refere ao relato de acontecimentos em ordem cronológica. Porém, hoje, no Brasil, quando falamos de crônica, não pensamos mais em crônica histórica, mas em um comentário despretensioso sobre um fato da atualidade presente no noticiário dos jornais ou até um fato corriqueiro do dia-a-dia. Talvez você conheça alguma crônica de Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector ou Fernando Sabino, por exemplo.

De modo geral, a crônica é um tipo de texto simples (mas difícil de definir) que nasceu quando o jornal se tornou cotidiano e, além de ter um pé no jornalismo e outro na literatura, ela tem uma relação ainda com outro tipo de texto, os ensaios, por também encarar a escrita de forma leve e livre, como uma tentativa (um ensaio) que não tem o compromisso de chegar a uma conclusão. Mas não se engane. Ainda que tratando os temas de modo despretensioso e, muitas vezes, com graça, não são poucas as crônicas que abordam assuntos sérios e também não são poucos os cronistas que as enxergam como uma forma de comentar e ordenar eventos históricos, intervindo, assim, na realidade de seu tempo. Nesse sentido, podemos dizer que Machado de Assis foi um desses cronistas. [5]

A relação do bruxo do Cosme Velho com as crônicas começou em 1860, quando ele tinha cerca de 20 anos, e durou, passando por diversos jornais, quase até o fim de sua vida, dando um saldo de algumas centenas de crônicas [6]. Essa relação entre Machado de Assis e as crônicas foi mudando ao longo da trajetória do escritor, assim como ele foi definindo as características desse tipo de texto no Brasil, aproximando-o de uma elaboração literária e de um tom mais humorístico. Machado, como ele mesmo dizia em suas crônicas, foi unindo o útil e o fútil, o sério e o frívolo, foi metendo o nariz onde ninguém mais metia e apertando os olhos para ver as coisas miúdas que também importavam [7]. Desse modo, não é de se estranhar que Machado tenha comentado em suas crônicas a questão polêmica da relação entre literatura e ciência e dos limites de uma “verdade” objetiva e isenta nos discursos científicos de sua época. Machado escreveu crônicas abordando esse tema, por exemplo, na série coletiva “Balas de Estalo”, publicada na Gazeta de Notícias. De julho de 1883 a março de 1886, Machado publicou 125 textos nessa série, assinando com o pseudônimo de Lélio. Além dele, outros jornalistas e “homens de letras”, todos usando pseudônimos, se revezavam para escrever os mais de 900 textos que compõem as “Balas de Estalo”. Um desses autores foi Ferreira de Araújo, que era também médico e um dos donos da Gazeta. Resultado de um processo de modernização pelo qual a imprensa brasileira passou no final do século XIX, esse jornal foi fundado em 1875 com os objetivos de ser popular, barato e atingir os mais variados públicos. A Gazeta de Notícias defendia um compromisso com a leveza e com o humor e foi um dos primeiros jornais a ser vendido de forma avulsa nas ruas da cidade, ou seja, sem a necessidade de assinatura. Assim, já no fim da década de 1880, a Gazeta era um dos 3 maiores jornais do Rio de Janeiro. Alinhada aos princípios do jornal, a série “Bala de Estalos” também tinha um programa geral, uma ideia de unidade, que era zombar dos fatos inusitados do cotidiano e da política imperial, “ferindo docemente”, unindo a “artilharia e os confeitos” (lembrando aqui que “bala de estalo” é um tipo de doce). E, como Machado, já aos 44 anos e consagrado por Brás Cubas, entrou na série 3 meses após sua criação, ele teve que se adaptar ao que seus colegas já vinham desenvolvendo.

Página da Gazeta de Notícias

Essa série, então, foi um espaço onde Machado teceu seus comentários sobre a verdade, tanto na literatura, quanto na ciência ou ainda no próprio jornalismo, que, no momento também tentava afirmar um ideal de “modernidade”, pautando-se por uma neutralidade e ligando-se mais à notícia que à opinião. Esse espaço do jornal era oportuno, pois a “mentira” da crônica era publicada ao lado do fato “verdadeiro” da notícia, o que permitia ao leitor conhecer ao menos duas maneiras de se contar o mesmo acontecimento. Essa comparação evidenciava que quem narrava o fato fazia toda a diferença, ou seja, que a realidade não é objetiva e pode ser contada de diversas formas.

Lélio, o pseudônimo escolhido por Machado, mais do que proteger a identidade de seu autor (que, na época, era funcionário do Ministério da Agricultura), constituía uma voz ficcional muitas vezes distinta dos pensamentos de Machado e até pouco confiável, o que tornava os textos mais complexos. O “baleiro-filósofo”, como ficou conhecido Lélio entre os outros “baleiros”, via as ideias como nozes e as ia quebrando para desvendar seus conteúdos. Em várias de suas “Balas”, ele testava até os limites os argumentos das teorias científicas que se difundiam no Brasil daquele momento, procurando, assim, combater a atitude de aceitação sem crítica que a intelectualidade brasileira adotava. Ele também tentava mostrar que essas teorias tinham mais significado do que apenas explicar os fenômenos naturais que regem o mundo. Ao longo das “Balas de Estalo”, Lélio consultou um padre defunto sobre questões de latim, passeou pelo Rio de Janeiro com um grego do século VII a. C., reproduziu uma conversa de Deus com São Pedro sobre a sucessão de “remédios milagrosos”, conversou com os vermes de um cemitério e até tirou dúvidas científicas com o espírito de Newton. Esses poucos exemplos já dão pistas da inventividade de Machado e de como o absurdo pode revelar “verdades”, às vezes de modo mais eficaz que um discurso objetivamente sisudo, que pode deixar a “verdade” (com ou sem intenção) acabar escorregando.

Para dar um gostinho…

Um trecho da crônica de Lélio publicada em 25 de novembro de 1884:

O Sr. Dr. Castro Lopes escreveu um trabalho para provar que a atração não governa os astros, e o Sr. conselheiro Ângelo Amaral refutou-o com uma carta inserida, hoje, no jornal País.

Tratando-se de uma teoria de Newton, e não entendendo eu nada de astronomia, pareceu-me que o melhor de tudo era consultar o próprio Newton, por meio do espiritismo. Acabo de fazê-lo; e eis aqui o que me respondeu a alma do grande sábio:

– Estou acabrunhado. Imaginava ter deixado a minha ideia tão solidamente estabelecida, que não admitisse refutações do Castro Lopes, nem precisasse a defesa do Ângelo Amaral; enganei-me. Homem morto, é o diabo. […] A mim refutam-me: e (o que é pior) defendem-me. Palavra; isto tira toda a vontade de ser gênio…

Para saber mais

[1] Em entrevista de 2011, Márcia Abreu, professora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), falou sobre esse assunto ao apresentar o livro Impresso no Brasil: dois séculos de livros brasileiros, que ela ajudou a organizar (e com o qual ganhou o prêmio Jabuti) a respeito da história da imprensa no Brasil. Entrevista está disponível em:  https://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/novembro2011/ju514_pag67.php

[2] Mais informações sobre essa questão podem ser conferidas no artigo de Maria Helena de Almeida Freitas, “Considerações acerca dos primeiros periódicos científicos brasileiros”. O artigo foi publicado na revista Ciência da Informação, em 2006. Disponível em: http://revista.ibict.br/ciinf/article/view/1113/1244

[3] Ildeu de Castro Moreira e Luisa Massarani, no artigo “Aspectos históricos da divulgação científica no Brasil”, abordam esse assunto. O texto foi publicado no livro Ciência e público: caminhos da divulgação científica no Brasil, em 2002.

[4] A partir desse momento, exceto quando indico outras referências nas 3 notas seguintes, este texto de divulgação se baseia nas ideias discutidas por Ana Flávia Cernic Ramos, em seu livro As máscaras de Lélio: política e humor nas crônicas de Machado de Assis (1883-1886), publicado em 2016. Esse livro é resultado da pesquisa de doutorado em História Social da Ana Flávia, realizada na Unicamp.

[5] Para apresentar brevemente a crônica, utilizei alguns textos como base. Para quem quiser se aprofundar no assunto, aqui vão as referências: “Fragmentos sobre a crônica” de Davi Arrigucci Júnior, publicado em 1987 no livro Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência; “A vida ao rés-do-chão”, de Antonio Candido, publicado em 1992 no livro A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, e “Ensaio e crônica” de Afrânio Coutinho, publicado em 1986 no livro A Literatura no Brasil.

[6] Recentemente, foram descobertas crônicas ainda inéditas de Machado. A fascinante descoberta é fruto de anos de pesquisa de Sílvia Maria Azevedo, que conseguiu atribuir a autoria desses textos, de fato, a Machado e acabou de publicá-los no livro Badaladas do Dr. Semana, de Machado de Assis, de 2019. Para quem se interessar, há este texto apresentando o livro de Sílvia Maria: https://jornal.usp.br/artigos/novas-badaladas-de-machado/ .

[7] Trecho baseado em “O folhetinista”, uma das primeiras crônicas de Machado, de 1859, e em outra crônica sua, “O nascimento da crônica”, de 1877. 

Literatura, Política e Resistência! Em nome da cultura me retiro do Prêmio Strega, por Pier Paolo Pasolini (tradução Cláudia Alves)

A Guilherme Ivo, com quem tive a honra de compartilhar o ofício da tradução, a alegria pelas leituras e o desajuste em nosso mundo. Se hoje ouso traduzir Pasolini, é porque um dia ele me disse que eu poderia (e deveria) fazer isso.

Em 1968, o escritor italiano Pier Paolo Pasolini decidiu se retirar de um dos maiores prêmios literários da Itália (senão o maior) por não concordar com a forma como a produção literária vinha sendo tratada em seu país. Sua maior crítica estava relacionada à transformação do mercado editorial em mais uma engrenagem do complexo sistema de dominação da indústria cultural e do consumismo. Com essa atitude, o escritor mostrou estar disposto a colocar em prática uma reflexão que começava a ganhar consistência em seus escritos jornalísticos. Seu gesto de protesto reflete, por sua vez, o compromisso com suas reflexões críticas e não com um mercado editorial sedento por enjaular escritores em um sistema de produção comercial. Movido por seus “interesses culturais”, isto é, pela crença de que a verdadeira literatura só poder ser criada com total liberdade de pensamento, Pasolini se retirou de uma cadeia de produção que, infelizmente, está presente em nossa vida literária hoje mais do que nunca. Coerência de conduta: Pasolini foi um dos poucos em nossa história que teve coragem de viver sua vida com a mesma criticidade com que observava as mudanças sociais e políticas de sua época. E é por isso que seu texto abre a nova série sobre Literatura, Política e Resistência que se inicia hoje aqui no blog Marca Páginas. Porque precisamos protestar e defender, sempre, aquilo em que acreditamos, em todas os espaços da nossa existência. Boa leitura a todos!

 

Em nome da cultura me retiro do Prêmio Strega[1]

Pier Paolo Pasolini

Tradução: Cláudia T. Alves

 

A primeira reação de um observador pragmático e um pouco indiferente quando descobre que, pouco antes da segunda votação, um participante retira seu livro do Prêmio Strega é que se trata de uma ação incorreta. Pois bem, e é mesmo. Trata-se de um erro formal, e sabe-se que o acerto formal é uma das bases da convivência democrática. Ainda que isso não tenha exigido muito esforço, precisei então usar uma certa violência contra mim mesmo nessa decisão de me retirar do prêmio (formalmente, de acordo com o regulamento, a minha saída não existe na prática: meus 62 eleitores estão portanto livres para fazer o que quiserem – e sabemos que sou plenamente grato a eles por seus votos, inclusive porque 40 deles foram inesperados).

Por que usei desta violência contra o meu legalismo e o meu respeito pelas formalidades democráticas? Porque eu estava diante de um dilema: ou sair incorretamente – e isso seria ruim – ou ficar – corretamente – e isso seria pior ainda. É muito simples dizer o porquê. Mas, primeiro, quero fazer um resumo do que aconteceu nesses dias.

Como o leitor talvez saiba, na primeira votação do prêmio os candidatos estavam restritos a 5 nomes: Bevilacqua (103 votos), eu (62 votos), Cattaneo (56 votos), Barolini (52 votos) e Zavattini (37 votos). Eu tinha decidido participar do prêmio como se fosse um jogo (ou uma loteria, como disse Zavattini): para ter a satisfação infantil de ser premiado. Enfim, participei com leveza, com o gosto do risco, com curiosidade, com vaidade – talvez para agradar a minha mãe, como eu fazia quando voltava para casa, durante a primeira série, e mostrava lá da rua, ela olhando da janela, a fita verde da medalha de primeiro aluno da classe, conquistada semanalmente (ai, que hábito maldoso). Bom, aos poucos a minha leveza se mostrou ingenuidade e essa ingenuidade, cumplicidade.

É verdade que outras vezes já participei do prêmio: com Ragazzi di vita, em 1955 ou 1956, e com Una vita violenta, em 1959. Os eleitores (escolhidos arbitrariamente, e por isso digo que quem decide participar do prêmio Strega decide participar de um jogo e não de uma “competição democrática”) decretaram minha derrota de forma exemplar. Mas aqueles eram outros tempos, eram os anos 50, com a Itália ainda paleocapitalística, com o Sul, com seus subgovernos etc. etc. Hoje tudo mudou. Enquanto o Prêmio Strega era, como dizem, uma coisa de família, participar dele parecia jogar bingo com os vizinhos – ou seja, todas as pequenas bagunças, as míseras alianças, as contratações forçadas faziam parte de uma “imoralidade”, contra a qual nem valia a pena polemizar. Hoje, por outro lado, o Prêmio Strega se tornou parte integrante da chamada “indústria cultural” e se enquadra em um novo tipo de Itália burguesa, sobre a qual não paira mais a ameaça romântica e ultrapassada de uma revolução operária, a qual no final das contas não aconteceu. A “imoralidade” portanto não é mais um fenômeno parcial, no cerne de uma particularidade social (a vida literária), mas é um fenômeno total, relacionado ao conjunto da sociedade italiana.

A imoralidade que imperava no Prêmio Strega nos anos anteriores ao novo rumo da sociedade italiana não me ofendia mais do que parcialmente e eu me permitia um certo cinismo, mas hoje não mais. Quando aceitei concorrer ao prêmio esse ano, estava iludido – por culpa da minha natureza relutante em reconhecer o mal e a má fé – de que as coisas não seriam tão graves. A minha ingenuidade me fez cometer um erro; seria estúpido se eu agora não reconhecesse publicamente esse erro e não tentasse repará-lo talvez até erroneamente, isto é, cometendo uma nova ingenuidade.

Em resumo, tomei consciência dos fatos (dos quais, infelizmente, não posso e, acho, nunca poderei ter provas) que me convenceram de que o Prêmio Strega está completa e irreparavelmente nas mãos do arbítrio neocapitalístico; que aquilo que aconteceu em 1966 não foi um caso, mas um precedente: e que esse ano as coisas estão se repetindo. Devo me tornar cúmplice? Um editor certamente tem o direito de exercer as pressões que deseja, os seus interesses são do tipo industrial e, diante da concorrência, sabemos que os “patrões”, mesmo que adocicados pelo novo rumo, são capazes de qualquer coisa. Os meus interesses, pelo contrário, são de tipo cultural e, para mim, ser capaz de qualquer coisa pode significar apenas uma atitude: protestar. Assim me retiro incorretamente da segunda votação do prêmio, em protesto: protesto contra a interferência do editor industrial em um campo que considero ainda, arcaicamente, não industrial, a qual se concretiza na criação de valores falsos e na extinção de valores verdadeiros. Digo extinção porque o neocapitalismo não tem escrúpulos: a América reacionária o educa. Circulam palavras de ordem e velinas[2]. Sobre esse livro podem falar, sobre esse outro se calam; este livro ganha um prêmio, esse outro não. E ai de você, Editor de revista, se publicar boas resenhas sobre esse livro. E se você, Escritor, não fizer uma boa resenha sobre esse outro, você vai me pagar caro por isso: nenhum dos meus periódicos vai mais falar de você. Ah, e você, Literato, é amigo de outro literato? Pois bem, traia-o, se não eu não renovo seu contrato com a minha editora. Você é jurado de algum prêmio? Ótimo, me dê a cédula de votação ou entre na lista dos banidos. Vai, pegue esse dinheiro e me dê a cédula. Ah, velhos tempos, quando uma delegação de jurados do Strega ia até algum escritor (bom) para pedir-lhe que se retirasse do prêmio porque a filha de algum outro escritor (bom) precisava se casar, e então o dinheiro do prêmio ia para ela! Hoje, a indústria do livro tende a transformá-lo em um produto como outro qualquer, para puro consumo, logo não há necessidade de bons escritores. E isso responde perfeitamente à exigência da nova burguesia, que parece completamente dona da situação, das obras de entretenimento, de escape e de falsa inteligência.

Repito: não quero me tornar cúmplice desse estado das coisas de jeito nenhum. E assim como odeio a cumplicidade, odeio também o compromisso. Eu poderia continuar formalmente fingindo ser um concorrente democrático e, de acordo com Maria Bellonci, apoiando pela última vez, fosse com uma vitória ou com uma derrota apertada, o Prêmio Strega assim como ele é: isto é, um campo de operações do consumismo mais brutal. Na verdade, a senhora Bellonci me prometeu que para o próximo ano o prêmio seria reformado, garantindo um nível melhor das obras apresentadas etc.

Não. Não quero fazer parte de tal acordo. Acredito que somente um protesto completo, rigoroso e sem compromissos possa ser útil para que o prêmio, se precisar ser reformulado, seja reformulado por completo, recolocando-o integralmente em discussão. Estou convencido de que só assim poderá existir um “outro” Prêmio Strega, que garanta de fato os interesses culturais “contra” os interesses industriais. Se querem chegar a isso por meio de acordos, compromissos, silêncios, então quer dizer que a boa vontade não existe de verdade.

Para terminar, gostaria de dizer que sei que a essa altura alguém poderia perguntar por que estou sozinho, ou com poucos amigos – outros concorrentes ao prêmio, por exemplo –, a travar essa batalha, e se por acaso não existe um “sindicato dos escritores” que intervenha, com força e autoridade (em dose dupla: sindical e literária), para defender seus filiados da verdadeira “escravidão” à qual estão começando a serem reduzidos pela indústria cultural. Pois bem, essa é uma pergunta que faço a mim mesmo sem saber respondê-la, mas à qual se deve, agora ou depois, dar uma resposta.

[1] Publicado originalmente no jornal Il Giorno, em 24 de junho de 1968. Integra a coletânea Saggi sulla politica e sulla società, na coleção I Meridiani (Milão: Arnaldo Mondadori Editore, 1999), pp. 151-155. Os direções autorais do texto pertencem portanto à editora Mondadori e por isso a presente publicação da minha tradução deve ser utilizada apenas com a finalidade de leitura e estudo.

[2] Velina era uma espécie de nota emitida pelo governo fascista italiano (1922-1943) com o intuito de manipular e regular o que e como as notícias circulariam na imprensa da época. Foram proibidas em 1943, mas foram usadas até 1945.