Minicontos e Minicontos Digitais: Potencialidades do Gênero para o Desenvolvimento dos Letramentos e dos Multiletramentos, por Matheus Bueno

Matheus Bueno se formou em Letras, na Unicamp, com a monografia “Minicontos e Minicontos Digitais: Potencialidades do Gênero para o Desenvolvimento dos Letramentos e dos Multiletramentos”, sob a orientação da Profa. Roxane Rojo. O texto a seguir é uma síntese de sua pesquisa, na qual ele abordou as relações entre multiletramentos e minicontos, impressos e digitais. Muito obrigada, Matheus, por sua colaboração ao blog Marca Páginas. E boa leitura!

Minicontos e Minicontos Digitais: Potencialidades do Gênero para o Desenvolvimento dos Letramentos e dos Multiletramentos, por Matheus Bueno

PRA COMEÇO DE CONVERSA

Uma coisa é certa: nos dias de hoje vivemos em um mundo cada vez mais urbanizado, globalizado e altamente tecnologizado. As novas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação – ou TDIC, como costumamos nomear – são, com efeito, uma presença inevitável em nosso cotidiano e vêm transformando nossas maneiras de ser e estar no mundo, nossas maneiras de comunicação e, principalmente, nossas maneiras de ler e escrever. Mas por que ocorrem tantas mudanças importantes no campo da leitura e da escrita? Isso se deve ao fato de que, na contemporaneidade, as novas tecnologias e as novas possibilidades digitais disponíveis não só facilitam a circulação e a produção de textos, como também fazem surgir novos tipos de textos – ou novos modos dos textos –; textos que não são apenas verbais, estáticos e impressos, mas que agora são digitais, colaborativos, interativos, hipertextuais e, sobretudo, multissemióticos, ou seja, compostos por uma multiplicidade de semioses (linguagens) para além do verbal escrito ou oral, como a linguagem imagética (imagens estáticas ou em movimento), sonora (música, efeitos sonoros etc.), digital (como objetos 3D, por exemplo) e muitas outras. A grande questão é: para que possamos compreender, interpretar e produzir esses novos textos digitais multissemióticos, precisamos desenvolver novas habilidades/competências de leitura e escrita, ou melhor, precisamos desenvolver novas práticas de letramento que, na atualidade, tornam-se multiletramentos. Se o conceito de letramento refere-se às variadas práticas sociais em que a língua escrita e o ler e o escrever estão envolvidos – tomar um ônibus ou solicitar uma carona por aplicativos de transporte, assistir ao noticiário pela TV ou acessar as notícias pelos sites de redes sociais, escrever um bilhete ou mandar uma mensagem instantânea pelo Whatsapp, todas essas são práticas em que a leitura e a escrita se fazem presentes, por exemplo –, poderemos perceber que as novas tecnologias contemporâneas fazem emergir novos tipos de texto que nos demandam novos letramentos, letramentos que, hoje, não são somente o letramento da letra (do verbal, das palavras), mas também o letramento das múltiplas linguagens (ou multiletramentos).

E A ESCOLA?

Se as escolas são por excelência as mais importantes agências de letramento – como afirma a pesquisadora Angela Kleiman (2007)[1] –, ou seja, se as escolas são as instituições que deveriam promover os letramentos a fim de formar alunos letrados que se apoderem criticamente dos usos sociais da língua escrita, como então os colégios contemporâneos poderiam se apropriar dos novos textos multissemióticos em circulação dentro e fora do ciberespaço com o intuito de desenvolver os (multi)letramentos dos estudantes, tornando-os cidadãos críticos capazes de participar efetivamente das práticas sociais exigidas pelo mundo tecnológico contemporâneo? Em aulas de língua portuguesa – disciplina responsável por discutir língua(gem) e literatura –,  como exercitar os letramentos e multiletramentos utilizando gêneros verbais impressos e gêneros digitais? Em verdade, quais são as potencialidades pedagógicas desses textos digitais? Com o objetivo de responder tais questões, elencamos em nossa pesquisa o miniconto verbal impresso e o miniconto digital multissemiótico como objetos principais de análise: acreditamos que os minicontos – estritamente verbais e também os digitais, frutos dos tempos hipermodernos –, por mobilizarem conteúdo verbal e não verbal e constituírem-se como gêneros literários, são ótimos exemplares desses novos textos que podem colaborar para o desenvolvimento dos letramentos, letramentos literários e multiletramentos dos aprendizes, permitindo que os estudantes exercitem principalmente capacidades e habilidades de fruição, compreensão e leitura crítica e que, de certo modo, possam ainda experimentar também outras esferas sociais de circulação dos textos, das ideias e das práticas letradas; no caso em questão, a esfera artístico-literária e a esfera de práticas de letramento literário.

MINICONTOS E MINICONTOS DIGITAIS: BREVES, MAS PODEROSOS

Os minicontos começam a surgir no século XX e são o resultado de um processo de miniaturização do conto, como defende o estudioso Marcelo Spalding (2008)[2]. A partir dos anos 1960, depois que o escritor guatemalteco Augusto Monterroso (1921–2003) publicou O dinossauro – considerado por muitos como o miniconto mais famoso do mundo, possuindo apenas sete palavras! –, o gênero em questão começa a ganhar notoriedade, popularizando-se ainda mais na passagem do século XX para o XXI.

Miniconto “O dinossauro”, de Augusto Monterroso

Poderíamos caracterizar o miniconto como um texto contemporâneo extremamente curto e conciso. Mesmo que não exista consenso entre os especialistas sobre o tamanho máximo ou mínimo que uma microficção deveria ter, é fato que os minicontos unifrásicos, de apenas uma frase, são de longe os mais interessantes de serem lidos, pois, apesar de breves, tais textos ainda possuem grandes cargas de narratividade e significação, impactando os leitores intensamente. São textos que podem tematizar múltiplos assuntos e contar diferentes tipos de histórias, mas que são majoritariamente conhecidos por sua natureza mais “ácida”, irreverente, inusitada, ambígua e provocadora. Segundo a Pequena Poética do Miniconto, publicada também por Spalding em 2007[3], a concisão – a representação de um momento-chave da trama –, a narratividade – a capacidade de o miniconto contar uma história –, a exatidão – a utilização minuciosa das palavras –, a abertura – a grande quantidade de implícitos, espaços em branco e lacunas narrativas que devem ser preenchidas pelos leitores conforme seus conhecimentos de mundo e suas experiências (as aberturas são os elementos que convidam o leitor à ação e por isso poderiam ser consideradas a qualidade mais instigante das microficções), e o efeito – a possibilidade de o miniconto provocar fortes reflexões e sentimentos em quem os lê – seriam as características fundamentais do gênero.

Com relação aos minicontos digitais, o interessante é observar como o gênero miniconto, antes estritamente verbal, estático e impresso, adentra o ciberespaço e, na atualidade, valendo-se das possibilidades tecnológicas e digitais contemporâneas, torna-se agora um gênero digital, colaborativo, interativo e principalmente multissemiótico, compondo projetos de literatura digital. Ao se manifestarem como literatura digital, ou seja, ao serem elaborados segundo as potencialidades oferecidas pelas TDIC, os minicontos digitais passam a nos oferecer novas estéticas textuais (novos textos com novas aparências) e também novas e diferentes experiências de leitura e fruição, reivindicando assim novos leitores/autores que saibam explorar as ferramentas de navegação e interação da web (PAGNAN, 2017)[4] e estejam aptos a compreender textos multissemióticos.

A título de exemplo, poderíamos citar o projeto de literatura digital intitulado Minicontos Coloridos. Organizado por Marcelo Spalding, o site convida o leitor-internauta a pintar seus próprios minicontos a partir da combinação de três diferentes cores (vermelho, verde e azul). Após misturar as tonalidades conforme critérios pessoais, o leitor é levado a uma nova página que revela não só a cor resultante de sua combinação, mas também um miniconto verbal escrito que se relaciona de algum modo à cor gerada. O projeto em questão é atrativo por dois motivos: além de nos proporcionar uma nova experiência de leitura – uma experiência interativa realmente marcante que permite que os visitantes “brinquem” de pintar enquanto leem –, o site também nos oferece novas experiências estéticas e de fruição na medida em que conecta e aproxima textos e cores, promovendo o exercício de uma leitura “sinestésica” em que os leitores devem analisar a maneira como as cores podem adicionar, reforçar ou alterar os sentidos das microficções. Em outras palavras, ao visitar o site idealizado por Spalding, os leitores devem analisar como o conteúdo verbal (os minicontos escritos) e o conteúdo não verbal (as cores) se relacionam, pois só através desta análise poderão interpretar as histórias dos microtextos, acessar as informações implícitas e completar as lacunas narrativas deixadas pelos minicontistas. Você consegue perceber como os multiletramentos – a leitura das múltiplas linguagens – são importantes para que o leitor experimente e mergulhe de fato na proposta digital dos Minicontos Coloridos?

Exemplo de miniconto colorido, de Marcos de Andrade

POTENCIALIDADES PEDAGÓGICAS

Sinteticamente, poderíamos concluir dizendo que trabalhar com minicontos (verbais impressos e digitais multissemióticos) em sala de aula é uma empreitada interessante porque as microficções proporcionam o desenvolvimento de nossas competências leitoras. No que diz respeito ao amadurecimento dos (multi)letramentos dos estudantes, o miniconto seria um relevante instrumento educacional uma vez que exige do leitor sofisticadas habilidades de leitura e clama por uma participação ativo-responsiva, ou seja, solicita um posicionamento ativo/crítico do aluno e permite que ele exercite muitas capacidades de leitura, como a ativação de conhecimento de mundo – capacidade essencial para o entendimento dos minicontos, pois só através desse resgate de saberes o leitor poderá completar as aberturas da história –; a análise dos elementos linguísticos (palavras, sinais de pontuação, figuras de linguagens etc.) que compõem o texto e funcionam ao mesmo tempo como itens estéticos e também como micropistas textuais que guiam o leitor até as interpretações mais coerentes; a formulação de hipóteses e de inferências (deduções e entendimentos sobre a trama); a elaboração de apreciações estéticas e de posicionamentos críticos como uma forma de responder ao texto – o leitor gosta (ou não gosta) da história? Por quê? Ele percebe as críticas e provocações realizadas pelos minicontistas? Concorda com elas? –; e, claro, a interpretação das múltiplas linguagens, no caso dos minicontos digitais.

Com relação aos letramentos literários, cremos que os minicontos (impressos e digitais) são cativantes textos contemporâneos que poderiam introduzir a literatura nas salas de aula de maneira divertida e atrativa, ampliando o repertório e as práticas literárias dos estudantes e fazendo com que se sintam motivados a ler mais dentro e também fora das telas. Por serem tão provocativos e retratarem temas tão diversos, levar os minicontos até as aulas de língua portuguesa também seria uma forma de os alunos descobrirem mais sobre o mundo e sobre si mesmos, desenvolvendo assim suas subjetividades. Sendo o miniconto um gênero extremamente breve, acreditamos ainda que introduzi-lo na escola e garantir sua leitura em sala de aula – ou seja, garantir que os alunos “degustem” diretamente as obras – seriam tarefas que poderiam ser facilmente realizadas pelas instituições, sem o pretexto de que os textos literários são muito longos para que possam ser lidos pelos alunos dentro do espaço e tempo escolares.

DICAS DE LEITURA

  1. Minicontos Impressos
  • Os cem menores contos brasileiros do século (Ateliê Editorial, 2004, organizado por Marcelino Freire
  • Ah, é? (Editora Record, 1994), de Dalton Trevisan.
  • Adeus conto de fadas (Editora 7 Letras, 2006), de Leonardo Brasiliense
  1. Minicontos Digitais

REFERÊNCIAS

[1] KLEIMAN, Angela B. Letramento e suas implicações para o ensino de língua materna. Signo, Santa Cruz do Sul, v. 32, n. 53, p. 1-25, Dezembro, 2007. Disponível em: <http://online.unisc.br/seer/index.php/signo/article/viewFile/242/196>.

[2] SPALDING, Marcelo. Os cem menores contos brasileiros do século e a reinvenção do miniconto na literatura brasileira contemporânea. 2008. 81p. Dissertação de mestrado – Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, 2008.

[3] SPALDING, Marcelo. Pequena poética do miniconto. Digestivo Cultural. 2007. Disponível em :<https://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=2196&titulo=Pequena_poetica_do_miniconto>.

[4] PAGNAN, Celso Leopoldo. Literatura digital: análise de ciberpoemas. Travessias, Cascavel, PR, Campus de Cascavel/Unioeste – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, v. 11, n. 3, p. 308-325, Setembro/Dezembro, 2017.

A universidade para além de seus muros: estudos de poesia italiana fora da Academia, por Helena Bressan

O blog Marca Páginas recebe hoje a contribuição de Helena Bressan Carminati (helenabcarminati@gmail.com), estudante de Letras-Italiano da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Por conta da minha própria pesquisa de doutorado, entrei em contato com um grupo de estudos chamado NECLIT (Núcleo de Estudos Contemporâneos de Literatura Italiana), da UFSC. Sempre admirei o trabalho deles e fiquei ainda mais feliz quando soube que lá também tem gente pensando em formas de transpor as barreiras acadêmicas que, muitas vezes, nos seguram dentro das universidades. Então, quando conversei com a Helena, foi natural convidá-la para dividir aqui no blog seu depoimento sobre o projeto de extensão Geografia e Cultura Italiana por meio da Poesia, que busca discutir poesia com quem não está necessariamente ligado à universidade (um assunto sempre considerado muito difícil por quase todo mundo, mas que é ao mesmo tempo uma das formas mais maravilhosas que o ser humano encontrou para se expressar). Os resultados são incríveis e agradeço muito a oportunidade de compartilhá-los aqui. Esse projeto merece ser conhecido e nos inspira a continuarmos nossos trabalhos de divulgação dos estudos literários. Agradeço a Helena e a equipe NECLIT. E que nunca nos falte poesia!

A universidade para além de seus muros: estudos de poesia italiana fora da academia, por Helena Bressan Carminati

Quando conheci a Cláudia, pelas redes sociais, começamos a conversar e ela me convidou, muito gentilmente, para escrever a respeito do projeto Geografia e Cultura Italiana por meio da Poesia. De imediato, fiquei empolgadíssima e comecei a pensar sobre isso. O que teve início como um projeto de extensão, em 2016, deu origem a um minicurso na XII Semana Acadêmica de Letras da UFSC, em 2018, e gostaria então de compartilhar com vocês um pouco dessa minha experiência.

Em 2016, com o apoio do Edital PROBOLSA/UFSC e a coordenação da Professora Patricia Peterle, do departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da UFSC, o objetivo principal do projeto era oferecer um panorama da geografia e da cultura italiana para a comunidade não acadêmica, buscando ampliar o conhecimento de aspectos relativos à cultura e à língua italiana e disseminar a poesia italiana contemporânea. Tivemos a ideia então de trabalhar esses conteúdos a partir de poemas selecionados para que pudéssemos apresentar, ao mesmo tempo, alguns poetas, as características de suas poesias e também algumas cidades italianas que os inspiraram a escrever. Assim, o público alvo era composto principalmente por pessoas que tinham interesse pela literatura, língua ou cultura italianas, mas que não necessariamente estavam vinculadas a universidades ou ao meio universitário. Naquele momento, tínhamos justamente a intenção de divulgar a poesia italiana para pessoas de fora desses contextos, por isso propusemos um projeto de extensão que, por definição, tenta transpor os muros da universidade e compartilhar os conhecimentos que são produzidos dentro da academia.

Os módulos do projeto aconteceram a cada 15 dias, nos meses de junho, agosto, setembro e outubro daquele ano, e foram organizados e ministrados por duas ou três pessoas, no Círculo Ítalo Brasileiro (CIB), no centro de Florianópolis. Cada módulo teve duração de 4 horas e foi estruturado da seguinte forma: introdução sobre um autor e sua poesia, suas principais características, a cidade escolhida como tema dos poemas, de forma a situarmos o público em relação ao que estávamos tratando, além da leitura da versão italiana e da tradução dos poemas selecionados (geralmente, dois poemas por módulo) para, em seguida, propor uma discussão em conjunto (ministrantes e participantes), acompanhada finalmente da análise dos poemas. A análise era enfim um dos momentos mais interessantes e importantes do módulo, pois quem o estava ministrando procurava deixar a participação do público bastante livre, enfatizando sempre que a análise e a interpretação de poesia estão sujeitas a novos olhares e a diferentes possibilidades de leitura, principalmente se mantivermos em mente que não há apenas uma resposta correta para as perguntas que surgem durante esse processo.

Acredito que esse foi um dos fatores essenciais que contribuíram para que tivéssemos um feedback positivo por parte dos participantes, pois eles percebiam que, mesmo não estando na universidade e/ou não estudando aquele determinado assunto, tinham capacidade de fazer suposições, dar suas opiniões, analisar os poemas e se expressar para um grupo maior sobre um tema geralmente temido pela maioria das pessoas, como é a poesia. Era um momento de troca, em que falávamos e escutávamos o que todos tinham para compartilhar.

Estabelecer relações entre a geografia e a cultura italiana, partindo da leitura de textos poéticos, foi e continua sendo desafiador por alguns motivos. Um deles talvez seja o de tirar o texto literário da sala de aula e ver como ele pode falar e ser recebido por leitores menos especialistas, mas com sensibilidades diferentes, visto que pensar a geografia e a poesia de uma cidade implica também pensar a sua própria cultura, os habitantes que nela vivem e seus comportamentos. Também por isso os participantes se mostravam tão interessados, pois, ao mesmo tempo em que mostrávamos a eles realidades diferentes, a todo momento relacionávamos aquilo ao nosso contexto aqui no Brasil. Por exemplo, no primeiro minicurso sobre a Roma da poeta Patrizia Cavalli, discutimos sobre as diferentes concepções de praça para um italiano e para um brasileiro, o que gerou pensamentos e argumentos bastante interessantes e diversificados. Um deles foi que aqui no Brasil temos a praça como um espaço público utilizado para lazer, geralmente bastante arborizado, com bancos, parques para crianças, enquanto que na Itália a praça constitui-se historicamente como um lugar de fala, um espaço de lutas em que são feitas as manifestações políticas, e, em sua maioria, possuem fontes ou monumentos em seu centro, também como uma forma de criar aquele ambiente que faz parte da vida social dos cidadãos. Assim, pudemos dialogar a respeito dessas diferenças que fazem de cada país um lugar particular.

Para que esse tipo de diálogo com o público fosse possível, escolhemos algumas cidades já conhecidas, e também outras um pouco menos, como foi o caso da Milão periférica do escritor Milo de Angelis, que escreveu poemas a partir de sua experiência como professor no Presídio de Segurança Máxima de Milão, chamado Opera. Para escolher tais autores, fizemos um mapeamento de poetas que no século XX e XXI trataram e tratam em seus textos da cultura local, do espaço urbano, das periferias, e acabamos escolhendo Patrizia Cavalli, Giorgio Caproni, Franco Fortini, Milo de Angelis e Umberto Saba e as respectivas cidades de Roma, Gênova, Florença, Milão e Trieste.

As ministrantes dos módulos eram alunas de graduação e pós-graduação da UFSC que aceitaram fazer parte desse projeto, o qual tinha ainda uma bolsista principal responsável pela organização geral dos módulos. Além disso, destaco a importância de um projeto de extensão como esse e tantos outros que acontecem nas universidades e que permitem para a comunidade fora das universidades o acesso a diferentes conteúdos ditos “acadêmicos”, a divulgação das pesquisas científicas feitas pelos alunos e o contato com pessoas diferentes, possibilitando criar diálogos fora da Academia, o que é tão relevante no momento que vivemos hoje.

Fazer parte desse projeto me fez enxergar possibilidades de uma vida acadêmica fora da “Academia” e, mais, me fez perceber que todo o conhecimento produzido por nós estudantes se torna muito mais interessante quando compartilhado. Apresentar a poesia italiana para um público não universitário foi desafiador e gratificante, pois ao mesmo tempo em que eu estava ali para transmitir conhecimento, nossos encontros eram uma grande troca. O público percebeu que poderia estudar poesia e compreendê-la, pois a palavra poética toca a alma humana, e foi exatamente isso que tentamos fazer ao propor esse projeto. Nesse sentido, acredito que o movimento de ir além dos muros da universidade é essencial para ultrapassarmos limites e partilharmos os conhecimentos.

 

Para que serve a literatura?, por Mario Barenghi (tradução Cláudia Alves)

Para que serve a literatura?*

Mario Barenghi 

A meu ver, questionar-se sobre “o que é literatura?” ou “o que é um texto literário?”, como Giovanni Bottiroli[1] fez, não é a maneira mais adequada de encarar o problema do ensino de literatura na universidade, muito menos na escola. A questão colocada não deveria ser ontológica, mas sim funcional. Vale interrogar-se sobre o escopo da literatura, o que quer que isso seja: sobre sua razão de ser. Para que serve? Para que nós a usamos? Com quais motivações? E com quais objetivos e vantagens? Tendo que dar uma definição genérica, tomo emprestada a fórmula que o linguista israelense Daniel Dor[2] usa para definir a linguagem.

A literatura é uma técnica de “instrução da imaginação”, que não serve simplesmente para “comunicar”, mas para fazer viver experiências simuladas. Por meio de uma prática de simulação socialmente compartilhada (portanto, diferente da fantasia individual), o leitor tem a possibilidade de ampliar sua própria complexa experiência existencial: de clareá-la e de enriquecê-la, de articulá-la e de ampliá-la, adquirindo assim novos instrumentos para enfrentar os desafios da vida real.

Também podemos formular essa ideia em termos moralmente mais comprometidos. O final das obras literárias deveria servir para nos ajudar a viver. Servem para viver: assim soa o título de um ensaio inteligente de Bruno Falcetto (subtítulo: Por uma educação com uso de literatura)[3]. Para viver, ou para sobreviver, ou para nos fazer viver melhor, como escreveu Tzvetan Todorov em um livro de 2007, A literatura em perigo[4]; e como reiterou Antoine Compagnon, no mesmo ano, em sua aula inaugural ao Collège de France, Literatura para quê?[5], a literatura serve para nos fazer mais felizes. Ou menos infelizes. E para nos fazer melhores: mais sábios, mais conscientes, mais sensíveis, mais perspicazes (aqui, Compagnon cita uma célebre passagem do ensaio “O miolo do Leão”, de Calvino); em geral, mais preparados para interpretar o mundo que nos circunda, o mundo humano in primis. Como consequência, melhor inseridos no ambiente que nos é próprio: mais hábeis em compreender nossos semelhantes, suas ações e suas atitudes, assim como as dinâmicas das relações que nos ligam a eles; mais preparados para compreender o sentido e o peso das palavras, nossas e dos outros.

Mas atenção: a literatura não produz esses efeitos de maneira automática. Pelo contrário, pode acontecer que ela não os produza de maneira nenhuma. Não apenas e nem tanto porque, além da grande literatura, exista também a literatura ruim, mas sobretudo porque (o caso dos textos sagrados ensina) não existe livro bom de que não se possa fazer mau uso, do mesmo jeito que não existe utensílio (ferramenta, equipamento, competência ou conhecimento) de que não possam se aproveitar os “estúpidos” e os “bandidos”, para usar duas categorias de Cipolla, de Allegro ma non troppo[6]. Podemos nos consolar, talvez, ao pensar que o contrário também é verdadeiro: de um livro medíocre pode se fazer um uso positivo. Fato é que o ensino de literatura deveria seguir esse escopo: aumentar as possibilidades de que, na experiência literária dos alunos, os efeitos considerados profícuos, desejáveis, esperados prevaleçam aos considerados negativos. (…)

Pode-se ensinar literatura? Nisso Bottiroli tem razão: “o que um professor de Letras pode fazer é criar condições para que seja possível uma experiência estética. Não pode impô-la, mas pode favorecê-la”. E tem também razão ao sustentar que o professor não deve criar obstáculos. Eu diria, mais drasticamente, que deveria evitar criar danos: primum non nocere[7], de acordo com o aviso dourado da Escola Médica Salernitana. Concordo menos quando Bottiroli coloca em oposição a atenção dada aos “textos” e a atenção dada aos “contextos”, denunciando as consequências nefastas do “contextualismo” (“o contextualismo mata a literatura”). Com certeza, tratar um texto da mesma forma que um simples documento de qualquer outra coisa, reduzindo-o a um suporte para investigações de ordem histórica, psicológica, social, “cultural”, significa sufocá-lo. Danos não menos graves, todavia, foram produzidos – principalmente na escola, até onde sei – pelo abuso de noções e grades elaboradas pela teoria literária. Não se lê um romance para aprender o que significam as palavras “prolepse” e “analepse”.

O que está matando a literatura, na minha opinião, é a indiferença nos enfrentamentos por parte dos leitores. Eu não diferenciaria tanto “artefato” e “objeto virtual” (termos com os quais Bottiroli se refere ao “conjunto das interpretações possíveis”), mas sim “texto” e “obra”, onde obra é o texto concretamente reativado pela leitura: executado – no sentido musical da palavrapor um leitor ou por uma comunidade de leitores. Franco Brioschi cita várias vezes – por exemplo, no prefácio a Gli immediati dintorni: primi e secondi, de Vittorio Sereni[8] – o epigrama citado por Possídio no final de sua biografia de Santo Agostinho. A intenção do poeta latino era celebrar a função eternizante da poesia, mas esses dois versos servem bem para representar a reativação do texto e da obra pelo leitor: Vivere post obitum vatem vis nosse, viator? Quod legis, ecce loquor; vox tua nempe mea est (“Queres saber, viajante, se o poeta vive após a morte? Tu lês, e então eu digo: a tua voz é a minha”[9]). A poesia revive, ou antes, vive literalmente na leitura. Ora, se a literatura conta enquanto simulação de experiências, não se pode ignorar o fato de que cada experiência é contextual. Dito de outra maneira, quem ensina, ensina sempre a alguém: e qualquer um dos sujeitos implicados leva consigo um conjunto de contextos que não podem ser desconsiderados (ainda que seja obviamente necessário olhar com cuidado os devaneios impressionistas). (…)

Concluo. Talvez fosse possível considerar que uma certa familiaridade generalizada com a experiência literária se cumprisse na universidade de um tempo atrás. Os estudantes, pelo menos na Faculdade de Letras, nutriam um interesse consistente pela literatura: se não por todos os autores do nosso cânone histórico-literário, ao menos por muitos clássicos da modernidade. Não sei se essas circunstâncias se reproduzem hoje em alguma ilha privilegiada do arquipélago acadêmico. Pessoalmente, dou aula em cursos de graduação nos quais a literatura não é uma prioridade no pensamento dos estudantes, então não posso não colocar para mim como problema despertar-lhes interesse. Esforço-me sim para fazer com que as leituras que proponho interajam com suas consciências – entende-se com isso nos modos próprios da literatura. Sei com certeza que não consigo com todos, nem – temo – com a maior parte, mas me alegro por conseguir ao menos com algum. Com todos tento, entretanto, exigir que percebam a densidade do texto literário, a gravidez no uso das palavras, a complexidade da construção do discurso, a importância dos temas tratados. Tudo isso não será suficiente para que ocorra uma experiência estética verdadeira; mas se nesse ínterim eu conseguir não suscitar um desgosto excessivo, uma reação de repulsa pela literatura em geral, poderá valer, quem sabe, como pressuposto ou plataforma para experiências futuras. Não é muito, mas é melhor do que nada.

* Tradução do excerto por Cláudia Alves. Texto na íntegra em: http://www.doppiozero.com/materiali/cosa-serve-la-letteratura. Mario Barenghi é crítico literário e professor de literatura italiana contemporânea na Universidade de Milão.

[1] Disponível em italiano, La letteratura se iniziassimo davvero a estudiarla: http://www.doppiozero.com/materiali/la-letteratura-se-iniziassimo-davvero-studiarla.

[2] Em inglês, The Instruction of Imagination: Language as a Social Communication Technology (2015): http://www.oxfordscholarship.com/view/10.1093/acprof:oso/9780190256623.001.0001/acprof-9780190256623?rskey=4hjRbX&result=2.

[3] Em italiano, “Servono per vivere: verso un’educazione all’uso della letteratura”, no volume La didattica della letteratura nella scuola delle competenze (2014): http://www.edizioniets.com/scheda.asp?n=9788846739445.

[4] Disponível em português. A literatura em perigo, trad. Caio Meira, Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

[5] Disponível em português. Literatura para quê?, trad. Laura Taddei Brandini, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. Sugestão de leitura dada aqui no blog, no post https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2016/06/07/afinal-por-que-pensar-sobre-literatura/.

[6] Em italiano. Allegro ma non troppo con Le leggi fondamentali della stupidità umana (1988): https://www.ibs.it/allegro-ma-non-troppo-con-libro-carlo-m-cipolla/e/9788815019806.

[7] “Em primeiro lugar, não fazer mal.”

[8] Em italiano. Gli immediati dintorni. Primi e secondi (2013): https://www.ibs.it/immediati-dintorni-primi-secondi-libro-vittorio-sereni/e/9788842819394.

[9] Tradução do italiano: “Vuoi sapere, viandante, se il poeta vive dopo la morte? Tu leggi, ed ecco io parlo: la tua voce è la mia”.

Sinestesia

Compartilho o link de um vídeo (em inglês, com legenda) do TED-Ed que explica o fenômeno neurológico da sinestesia.

Se você achava que sinestesia era apenas aquela figura de linguagem que aprendemos na escola, está aí uma explicação de como 4% da população mundial convive com a sensação de experimentar vários sentidos ao mesmo tempo, nas mais variadas situações de seu cotidiano.

O que me leva a pensar: não é incrível que a literatura, por meio de palavras, também consiga criar esse tipo de sensação?

Um exemplo de sinestesia literária estaria presente nesse trecho de Mário de Andrade: “Esta chuvinha de água viva esperneando luz e ainda com gosto de mato longe, meio baunilha, meio manacá, meio alfazema”.

Chuva com gosto de mato… Quem nunca teve essa sensação antes? Há sinestesia em tudo, e a literatura pode descrevê-la de várias formas.

E, em tempos de Bob Dylan recebendo o prêmio Nobel de Literatura, já deixo uma isca para um próximo post: a sinestesia e tantas outras figuras de linguagem são muito utilizadas em letras de música também. Você consegue pensar em algum exemplo?