O compromisso político de fazer ciência no Brasil hoje

Hoje o dia amanheceu chuvoso em muitas cidades, e aqui em Roma também. Andando pelas ruas, reparei em quantas pessoas carregavam seus guarda-chuvas. Não pude evitar o pensamento: nenhuma delas estava com medo de levar um tiro e morrer por causa do que carregavam. Esse post é em memória de Rodrigo Serrano, brutalmente assassinado no dia 17 de setembro de 2018 pela polícia militar do Rio de Janeiro.

O compromisso político de fazer ciência no Brasil hoje

Quem escolhe ser pesquisador em nosso país (e no mundo todo) acaba se acostumando com o questionamento recorrente sobre a utilidade prática do que faz, do seu trabalho. Nas ciências humanas, esse questionamento é talvez ainda mais frequente porque nossas pesquisas não produzem, na maioria das vezes, resultados imediatos, pragmáticos, mensuráveis pelos parâmetros da sociedade de consumo. Estudar as diversas perspectivas da representação literária ao longo dos anos na literatura brasileira não parece ter o mesmo prestígio que compreender a reprodução de uma bactéria a fim de criar um novo remédio, por exemplo. E por que será que isso acontece? Arrisco um palpite: porque, nessa sociedade, pesquisas que não geram patentes, sobretudo porque não geram lucros, não despertam muito interesse.

Sempre que posso, faço questão de começar meus textos por aí, porque acredito que precisamos lembrar – e relembrar quantas vezes pudermos – que estamos vivendo em uma época em que a formação e a reflexão de tipo humanística correm o risco de cair em desuso. Atualmente, a ideia de trabalho e produção de conhecimento está ligada a valores capitalizados, tecnocráticos, pouco ideológicos ou apolíticos, e, nesse espaço, a maturação de reflexões humanas não tem tempo suficiente para acontecer. Tudo precisa ser rápido e funcional. Já deu para perceber que a conversa é tensa, né? Mas todo esse preâmbulo é para pensarmos juntos como a ideia de produção científica se encaixa nesse contexto – e como fazer ciência, em todas as áreas, principalmente dentro de uma universidade pública, só pode ser entendido como um gesto político.

Nos estudos literários (e talvez posso afirmar que no âmbito das pesquisas sobre linguagem em geral), existe um esforço em se pensar os poderes que estão em disputa. Nosso trabalho muitas vezes se volta à desnaturalização de ideias consolidadas e de pensamentos enraizados em nossa cultura. Nesse sentido, fica difícil imaginar como uma pesquisa desse tipo pode ser considerada apolítica: estamos constantemente exercitando nossa reflexão crítica ao olhar para o mundo e estudar suas diversas manifestações ao longo do tempo.

É por esse caminho que muitos estudiosos pensam na capacidade transformadora que a própria literatura exerce. Escrever seria um gesto de colocar no papel aquilo que precisa ser revisto em nosso mundo e, a partir daí, gerar no leitor um pensamento com potencial para se tornar atitude. Estamos então em um terreno em que a literatura pode ser vista como um espaço público de politização e também de disputa de histórias. Por meio dos livros, seria possível contar uma história que sistematicamente determinadas esferas de poder quiseram (e querem) calar, assim como poderia despertar nos leitores uma reflexão. Ou seja: quanto mais a gente lê, mais a gente se depara com versões diferentes para uma mesma história e dificilmente sairemos dessas leituras da mesma forma que entramos.

Jean Paul Sartre, importante filósofo e escritor francês do século XX, publicou em 1948 o livro Que é a literatura? (Editora Ática, 2004, tradução Carlos Felipe Moisés), no qual discute, após o final da Segunda Guerra Mundial, o que, por que e para quem escrever literatura. Depois das atrocidades cometidas pelos governos fascistas e nazistas nos anos anteriores, Sartre e tantos outros intelectuais voltaram seus pensamentos em direção às ainda possíveis perspectivas de existência humana – e como o ato de pensar e escrever sobre essa existência ainda poderia ter alguma função.

Foto por Daniel Frank.

Sartre defende a ideia de que “através da literatura (…) a coletividade passa à reflexão e à mediação, adquire uma consciência infeliz, uma imagem não equilibrada de si mesma, que ela busca incessantemente modificar e aperfeiçoar” (2004, p. 217). Sua posição parece estar entre dois caminhos já bastante trilhados quando se pensa no fazer literário: a ideia de que a literatura vai salvar a humanidade, despertando-lhe a consciência necessária para isso, mas também a ideia de que essa consciência é infeliz, desequilibrada, mediada, o que significa que não necessariamente ela atingirá seu potencial de conscientização nos indivíduos.

Muito complicado? É mais ou menos pensar que ler não é sinônimo de caráter – há muitos exemplos por aí de gente que já leu muito, mas continua tendo comportamentos questionáveis. E também que nem toda literatura é questionadora e progressista, afinal é também no âmbito literário que versões opressoras da história se consolidam. O ponto principal é que, repito, parece que estamos diante do potencial de reflexão e de crítica que pode emanar da literatura. A ideia de que, com esse esforço de leitura, a coletividade pode tomar conhecimento de si mesma, reconhecer onde estão suas falhas e, a partir daí, buscar modificá-las e aperfeiçoá-las. Em outras palavras, escrever e pensar a literatura como pequenos movimentos de transformação.

O lugar que ocupamos como pesquisadoras e pesquisadores, me parece, passa também por essas mesmas questões. A ideia de produzir ciência, ou seja, de produzir conhecimento, em um país com tantas desigualdades (sociais, econômicas, culturais) como o nosso não deve estar isenta de sua potencialidade de reflexão e de transformação social. Porque são ausências políticas em momentos conturbados como os que estamos vivendo ultimamente que podem criar monstruosidades históricas com as quais certamente não queremos conviver.

E assim chegamos ao Brasil do ano de 2018, onde ainda é preciso debater machismo, racismo, homofobia e tantos outros preconceitos enraizados na nossa história. Esse debate, que perpassa todas as esferas públicas de produção de conhecimento (e por isso também todas as universidades, programas de pós-graduação e institutos de pesquisa), não pode ser diminuído ou silenciado, pois estamos disputando a história que se fará daqui por diante. A reflexão humanística, que deveria ser uma guia aos estudos literários e também às demais ciências, reafirma sua importância nesse processo como aquela que não nos deixa esquecer os momentos em que a humanidade se viu ameaçada por seu próprio desenvolvimento e capacidades destrutivas. Posicionar-se politicamente em todas as esferas que nos cabem é então reconhecer a função pública que cada indivíduo carrega em si e estimular a reflexão crítica em todas as frentes imagináveis. Resistir em todos os espaços que ocupamos: esse é o compromisso científico e político do qual não podemos nos isentar.

 

O camelo pelo buraco da agulha e outras histórias estranhas de tradução, por Stant Litore (tradução Jacqueline Plaça)

A tradução de textos literários já foi assunto aqui no blog algumas vezes[1]. É um tema que merece nossa atenção porque, além de ser um trabalho bastante atencioso e exaustivo por parte de quem se propõe a fazê-lo (e que merece nosso reconhecimento por isso), é também um exercício de escolhas – e toda escolha é também uma sutil demonstração de poder.

O texto que publicamos hoje aqui no blog, escrito pelo escritor de ficção Stant Litore e traduzido pela roteirista e tradutora Jacqueline Plaça, discute justamente os pequenos poderes que surgem quando alguém se propõe a traduzir um texto, sobretudo quando se trata de algum texto sagrado ou canônico, como a Bíblia, que carrega consigo milhares de anos de história e que é um grande influenciador da nossa sociedade até os dias de hoje.

Camelo e corda são palavras semelhantes na sua origem e foram confundidas no meio do caminho, mas será que obedecer e ouvir também foram meros erros de leitura e interpretação? São só nuances, pequenos detalhes, mas que demonstram escolhas políticas que afetam em sua essência a forma como tais textos serão lidos. Não podemos ser ingênuos quanto a isso.

 

O camelo pelo buraco da agulha e outras histórias estranhas de tradução

Stant Litore[2]

Tradução: Jacqueline Plaça[3]

Revisão: Samira Spolidorio e Cláudia Alves

 

Alguém mencionou o versículo do homem rico passando pelo buraco de uma agulha ontem, e claro que eu comecei a meditar sobre traduções incorretas e o poder sublime da linguagem. O camelo e a agulha é um dos meus exemplos preferidos de traduções problemáticas, e fica ainda mais engraçado porque, não importa como você traduza, a mensagem da metáfora permanece basicamente a mesma. Para quem não sabe, explico o que aconteceu. Muito provavelmente, o rabino Yeshua [mestre Jesus] disse aos seus discípulos, há 2 mil anos, que era mais fácil passar uma corda (como aquelas usadas em redes de pesca no Mar da Galileia) pelo buraco de uma agulha de costura do que um homem rico entrar no reino dos céus. Mas em aramaico – o idioma em que ele estava falando e o idioma no qual o texto fonte dos evangelhos sinóticos provavelmente foi escrito – “camelo” e “corda” têm a mesma grafia: “gml”. Elas têm sonoridades diferentes, mas a escrita aramaica nem sempre apresenta vogais. Então alguém respeitosamente escreveu “gml”. O caso fica mais engraçado quando os evangelhos sinóticos aparecem e as pessoas começam a traduzir as palavras de Cristo para o grego comum. Porque em grego comum, “camelo” e “corda” TAMBÉM são a mesma palavra, distinguíveis na escrita por apenas uma vogal, mas com a pronúncia quase idêntica. Camelo é “kamelon” e corda é “kamilon”. Em latim e inglês [e em português], claro, “camelo” e “corda” são facilmente distinguíveis. Mas tanto em aramaico, quanto em grego comum, não. Então, por mais que já seja bem frustrante tentar passar uma corda cheia de nós pelo buraco de uma agulha de costura, cá estamos nós com a imagem de um imenso dromedário sendo comprimido pelo buraco de uma agulha, com corcova e tudo, deixando o homem rico não só numa bagunça, mas numa cena cômica. Tudo por causa de uma vogal!

É um caso divertido porque o significado é similar em ambas as traduções. Além disso, “camelo” se encaixa no estilo dos ensinamentos de Jesus, quem geralmente fazia um uso cômico das hipérboles.

Outras traduções equivocadas são mais sinistras, como a popular versão de “arsenokoites” para “homossexuais”, o que é um pouco absurdo, já que existe uma palavra grega diferente para isso. “Arsenokoite” é cognato de “homem” e “cama”, e não se sabe o que ela significa porque seu uso é bem raro. Sugere-se que seja uma referência a gigolôs, mas é um palpite igualmente sem fundamento. A palavra aparece ao lado de “malakos” (luxuoso), por isso é mais provável que se refira aos cidadãos ricos e amantes da vida fácil (que são mais criticados no Novo Testamento do que os camelos). Malakos (suave) também se traduz erroneamente por “afeminado”, principalmente para manipular a leitura de “arsenokoites” como “homossexuais”. Mas “malakos” não significa afeminado; também existe outra palavra para isso. Malakos significa amante do luxo, para quem a vida é fácil, cercada de almofadas macias. Na Grécia, esse conceito não carregava conotações de gênero. Os romanos associaram esse termo a “ser como uma mulher” e, como os romanos tinham questões com feminilidade/masculinidade, nós herdamos tanto sua interpretação, quanto seu equívoco.  Porém, os gregos não tinham essa questão. (Eles tinham outras) Não existem evidências de que os “malakoi arsenokoites” tivessem qualquer coisa a ver com orientação sexual, identidade de gênero ou virilidade, nem com a ausência dessa última. Grécia não é Roma. Malakoi arsenokoites são muito provavelmente homens ricos amantes da boa vida, que passam o dia na cama comendo uvas e ignorando o sofrimento do seu próximo vivendo em pobreza. É esse tipo de atitude que era frequentemente criticada no Novo Testamento e é nela que as cartas onde foram escritas essas palavras se focavam. Uma vida de luxo, de riqueza e de ostentação era um defeito que os gregos costumavam desprezar e tratar com deboche. Eles teriam dado gargalhadas da Trump Tower.

Outros casos problemáticos incluem “ezer kenegdo” (que no Ocidente foi traduzido como “ajudante”, o que no século XVII sugeria simplesmente “cooperador”, mas que para nós hoje soa como “subordinado”), para descrever a posição das mulheres em relação aos homens, mas que em hebraico significa simplesmente parceria, sem pressupor hierarquia (e é também a mesma palavra usada para descrever a posição de Deus em relação à humanidade); ou a tradução equivocada de “kephale” (cabeça) significando autoridade (autoridade é uma palavra diferente) devido a uma expressão idiomática latina que herdamos e que não existe em grego (a palavra latina para cabeça também significa líder, mas em grego “kephale” indica simplesmente origem, como a origem de uma família ou de um rio, mas não autoridade).

Ou ainda a tradução errônea de “hupotassomenoi” para “submisso”, como no versículo “mulheres, sede submissas aos seus maridos”, sendo que “hupotassomenoi” não significa submissão em grego (há outra palavra para isso). Hupotossomenoi é bem difícil de traduzir para o inglês. Significa “organizarem-se sob”, o que pode ou não sugerir o que os romanos pensavam. É um termo militar para mobilização de tropas, então os romanos aproveitaram a interpretação possível de hierarquia. Romanos amam hierarquia. Mas no contexto, em diversas passagens, o termo é usado quando Paulo está falando tanto das dificuldades de mulheres cristãs com maridos não cristãos e de como enfrentar o mundo juntos e falar da sua fé para um marido grego ou romano que acredita que você é propriedade dele (esse é o caso da carta aos Coríntios), quanto das passagens que nos exortam a vestir a armadura de Deus e resistir às tentações (na carta aos Efésios). É importante lembrar que naquele tempo as cartas estavam sendo escritas para confrontar a hierarquia, não apoiá-la, e para propor um igualitarismo radical nas relações humanas, e que a maioria da população cristã na Europa do século I era formada por mulheres. O ensinamento de que somos todos um só corpo em Cristo era mais difícil de assimilar para os homens durante o Império Romano do que para as mulheres. As cartas aos Coríntios descrevem maridos não cristãos como vulneráveis, ainda apegados a velhas formas de pensamento, meio adormecidos, vivendo como soldados à beira do território inimigo. No contexto, hupotossomai provavelmente significa mobilizar-se para dar suporte ao seu esposo contra o inimigo.

“Hupakoe”, que continua sendo traduzido como obedecer, e usado para crianças, nunca para esposas, no Novo Testamento, tampouco significa “obedecer”. Significa “ouvir”. Trata-se de um conselho para crianças, que escutem e aprendam, não que obedeçam cegamente. Novamente, contexto. São cartas exortando as pessoas a não voltarem a viver como seus pais, a abandonarem sistemas opressivos e viverem de forma radicalmente diferente de seus antepassados. Isso criará um mundo de embates entre diversas gerações de famílias gregas. Por isso a carta encoraja os filhos a escutarem com cuidado e os pais a não provocarem a ira de seus filhos durante seus conflitos.

E assim por diante.

O texto é belo e tem mais nuances do que aparenta na tradução, e nós constantemente o pervertemos porque o tratamos como um texto latino/romano ao invés de uma coleção de textos gregos e hebraicos. (Quando você traduz textos radicais ou subversivos para o idioma do Império, você eventualmente criará textos imperiais.)

E também porque insistimos em lê-los como se os autores estivessem escrevendo nos dias de hoje, com nossas conotações, figuras de linguagem e temores culturais, quando, na verdade, seus temores culturais e suas figuras de linguagem eram completamente diferentes, e os detalhes aos quais nos apegamos nem teriam passado pela cabeça deles.

E isso me leva a pensar no poder da palavra. Como escritor, sou um pouco tendencioso ao considerar a importância da linguagem escrita. Entretanto, quando analisamos um livro sagrado que foi traduzido correta e incorretamente e construídos e desconstruído ao longo de 2 mil e 2 mil e 500 anos (ou, se você quiser um exemplo mais recente, com menos de 250 anos de existência, no nosso próprio idioma e sem as inconveniências de tradução, pense na Constituição dos Estados Unidos), é difícil evitar a conclusão de que às vezes o uso de uma única palavra pode dar forma a sistemas políticos e culturas inteiras. É um pensamento que nos faz mais humildes.

[1] Por exemplo, aqui: https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2017/04/20/traducao-de-textos-literarios-parte-1/.

[2] Publicado originalmente em: <https://stantlitore.com/2018/06/01/a-camel-through-the-eye-of-a-needle-and-other-wild-tales-of-translation/>. Aconselhamos sua leitura, sobretudo das notas e dos comentários, pois há uma discussão muito interessante ocorrendo por causa dessa publicação.

[3] Jacqueline Plaça é roteirista e tradutora. Ativista pelos direitos das mulheres e pelo estado verdadeiramente laico. Formada em cinema, trabalhou na produção de festivais e curtas-metragens em São Paulo e Buenos Aires.