Gonçalves Dias na bibliotequinha antropofágica?

As rãs, a antropofagia e o índio de lata de bolacha

 

O que as rãs têm a ver com o Movimento Antropofágico?

 

Um grupo de amigos se reuniu para jantar em um restaurante especializado em rãs. Quando o prato chegou, um dos amigos se levantou e começou a brincar, fazendo um elogio das rãs. Citando autores imaginários, ele concluiu que esses animais faziam parte da linha da evolução biológica do ser humano. A companheira desse homem entrou na brincadeira e afirmou que, então, ao comerem as rãs, os amigos eram uns quase antropófagos. O homem que fez o elogio era Oswald de Andrade. A mulher que deu corda para a brincadeira era Tarsila do Amaral. E teria sido assim que, em 1928, começou o Movimento Antropofágico. [1]

Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade: o que começou como uma brincadeira em um restaurante se transformou no Movimento Antropofágico

 

Esse movimento, basicamente, propunha a combinação de estéticas estrangeiras, de modernização, com expressões brasileiras, nativas, para que, assim, fossem produzidas “coisas novas, coisas nossas”. [2] Os elementos estrangeiros deveriam ser assimilados de forma crítica, deveriam ser consumidos e “deglutidos”, sendo que partes deles seriam aproveitadas na formação da cultura nacional. Daí a relação com a antropofagia que era praticada por alguns indígenas brasileiros e que pode ser entendida como a ingestão de inimigos com a finalidade de se apropriar de suas qualidades, em um movimento de incorporação de características do outro, mas sem a perda da independência, da autonomia. Então, de forma metafórica, para esse movimento de vanguarda, nós deveríamos devorar as influências dos “inimigos” externos e absorver, de forma crítica, o que fosse positivo para a formação da nossa cultura.

O que começou como uma brincadeira em um restaurante ficou sério e rendeu, entre outras coisas, duas fases da Revista de Antropofagia. Oswald pretendia ainda organizar o Primeiro Congresso Mundial de Antropofagia e, durante a preparação das teses que seriam discutidas nesse congresso, fez um levantamento do que chamou de “os clássicos da antropofagia”, como André Thévet, Jean de Lèry, Hans Staden e, principalmente, Michel de Montaigne, autor do ensaio “Dos Canibais”. [3] Oswald queria formar uma “bibliotequinha antropofágica” com esses clássicos e outros textos, como o recém-publicado Macunaíma, de Mário de Andrade.

Página de uma edição da obra de Hans Staden, mostrando uma cena de canibalismo. Esse aventureiro alemão, em seu livro, relata as experiências que teve ao viajar para o Brasil em meados do século XVI. Ele conta, inclusive, que, por pouco, não foi devorado em um ritual antropofágico…

 

O congresso e a bibliotequinha ficaram apenas nas ideias: o grupo dos antropófagos se dissolveu por conflitos amorosos entre seus integrantes, havendo uma “debandada geral”. [4]

Apesar de esses planos não terem sido concretizados, Oswald, antes dessa dissolução, publicou o conhecido “Manifesto Antropófago”, no primeiro número da Revista de Antropofagia, em 1928. E um dos pontos questionados nesse manifesto era o “indianismo na sua feição ufanista e romântica”. [5] Pelo menos dois trechos do manifesto de Oswald deixam esse ponto evidente:

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi o Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.

A pesquisadora Ana Beatriz Sampaio Soares Azevedo [6] comenta que, neste primeiro aforismo mencionado, Oswald, em um golpe só, ataca tanto José de Alencar quanto o compositor Carlos Gomes (que escreveu a famosa ópera O Guarani). Segundo ela, os dois criticados, para Oswald, “seriam os responsáveis por colocar em cena o famigerado ‘índio vestido’, cheio de ‘bons sentimentos portugueses’, ou seja, um índio aculturado, domesticado, tornado bom selvagem”

Em relação ao segundo aforismo destacado, a pesquisadora também comenta que Oswald critica e ironiza o Indianismo do Romantismo brasileiro: esse “índio de tocheiro” seria um personagem construído de uma forma alienada, alinhada aos ideais do colonizador. 

Ana Beatriz Azevedo também comenta que Oswald “cita criticamente em seus textos O Guarani de José de Alencar e a poesia de Gonçalves Dias”. Além disso, ela nos lembra, inclusive, que Oswald fez uma paródia da “Canção do Exílio”, conhecido poema de Gonçalves Dias.

Um trecho do poema “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, e um trecho do poema “Canto de regresso à pátria”, de Oswald de Andrade.

 

Essa restrição de Oswald em relação aos românticos também foi explorada por Haroldo de Campos. [7] Ele comenta que, em “A Marcha das Utopias”, um texto teórico e mais maduro, Oswald retomou um trecho do “Manifesto Antropófago” (o segundo aforismo mencionado neste texto) para depois mostrar a diferença entre o “seu índio” e o dos românticos. Nas palavras de Haroldo de Campos, o indígena na visão de Oswald:

nada tinha a ver com “os índios conformados e bonzinhos de cartão-postal e de lata de bolacha”. O “índio” oswaldiano não era o “bom selvagem” de Rousseau, acalentado pelo Romantismo e, entre nós, “ninado pela suave contrafação de Alencar e Gonçalves Dias”. Tratava-se de um Indianismo às avessas, inspirado no selvagem brasileiro de Montaigne (Des cannibales), de um “mau selvagem”, portanto, a exercer sua crítica (devoração) desabusada contra as imposturas do civilizado.

Esse trecho de Haroldo de Campos é particularmente significativo por indicar que, de alguma maneira, a postura de Oswald em relação aos românticos se manteve constante, ainda que a relação desse escritor com a antropofagia tenha sido inconstante: depois da já comentada “debandada geral” do grupo dos antropófagos, Oswald se envolveu com a militância política marxista e renegou o que chamou de “sarampão antropofágico”, uma doença infantil, que atingiu indistintamente aqueles que não tinham recebido a vacina marxista. Por volta de 1945, Oswald rompeu com a orientação marxista e se dedicou ao estudo da Filosofia. Nesse período, ele retomou suas intuições apresentadas tanto no “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, de 1924, quanto no “Manifesto Antropófago”, de 1928, e as desenvolveu, elaborando a antropofagia como uma concepção filosófica de mundo. [8] 

Essa breve retomada da trajetória (inconstante) de Oswald em relação à antropofagia e da sua postura (aparentemente constante) em relação ao Indianismo romântico serve aqui como ponto de partida para uma provocação: será que o índio antropofágico de Oswald realmente não tem nada a ver com o índio do Romantismo? Ou, mais especificamente, não tem nada a ver com o índio antropofágico de Gonçalves Dias? Talvez valha a pena “experimentar” esse poeta romântico com um pouco mais de calma, antes de simplesmente o expulsar do banquete antropofágico…

Quem é Gonçalves Dias na fila do Indianismo?

 

Retrato de Gonçalves Dias (aproximadamente 1855)

 

O Indianismo foi um movimento de nacionalismo cultural mais nuançado e influente em seu contexto histórico e político do que normalmente tem sido considerado pela crítica. Isso é o que sugere David Treece. [9] Esse pesquisador britânico desenvolveu seu argumento a partir da identificação de um paradoxo: ao mesmo tempo em que os indígenas eram massacrados em proporções genocidas, eles ocupavam um local de destaque na tradição de pensamento nacionalista no Brasil, sendo celebrados por escritores, artistas e intelectuais.

No entanto, o pesquisador defende que esse paradoxo (ou ironia) não passou despercebido pelos escritores indianistas. Pelo contrário, esse ponto teria ocupado um lugar central nas reflexões que alguns desses autores faziam sobre a formação do Brasil como um Estado independente. Esses escritores, inclusive, levavam essa ironia em consideração quando discutiam questões relacionadas àquelas pessoas que ainda eram desprovidas de direitos de cidadania no Brasil, como os próprios indígenas, mas também os escravizados negros. Nesse sentido, David Treece chama a atenção para um fato que tem sido quase ignorado: o Indianismo foi um movimento artístico, mas foi também uma arena de debate sociopolítico. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), por exemplo, era não só um centro de pesquisa fundado por Dom Pedro II, mas também o principal fórum que articulava a relação entre a esfera política e o Indianismo. 

Para Treece, além de ser incorreto assumir que o Indianismo era desligado do debate sociopolítico, é ainda menos correto considerar que a comunidade literária era homogênea e simplesmente expressava a mentalidade da elite imperial. Na verdade, a escritura indianista exibia diversas (e muitas vezes até contraditórias) perspectivas.   

Partindo, então, desse ponto o autor propõe uma análise que ultrapassa uma literatura crítica que comumente assume que um único escritor, José de Alencar, poderia representar de forma suficiente um movimento que durou mais de um século. Treece destaca o caráter dinâmico e complexo do Indianismo, e afirma que, se por um lado, houve um romantismo complacente ou conservador em relação ao domínio da burguesia agrária após a Independência (representado pelo próprio Alencar), houve também, por outro lado, intelectuais e artistas que eram marginalizados dos centros políticos e econômicos da vida imperial, o que os levava a se identificarem com os setores mais oprimidos da sociedade, como os indígenas e os escravizados africanos. É justamente como membro desse segundo grupo que Treece enxerga Gonçalves Dias

O pesquisador afirma que as obras de Gonçalves Dias e de seu contemporâneo menos famoso, Teixeira e Souza, formariam uma tendência dissidente no interior do quadro predominantemente conservador do movimento romântico. Para Treece, dentro do limitado espaço político disponível na época, esses dois autores usaram o cenário indianista para fazer comparações implícitas – mas perturbadoras – entre as opressões sofridas por raças consideradas inferiores e a negação de liberdades sociais e políticas a uma grande parte dos brasileiros, que, embora fossem livres (no sentido de não serem escravizados), não eram proprietários de terras e dependiam de favores daqueles que as possuíam. As oportunidades de trabalho por aqui naquela época eram limitadas, já que o Brasil era um país essencialmente rural, e muitas das atividades eram exercidas pelos escravizados.

Gonçalves Dias fazia parte desse grupo de pessoas livres, mas dependentes de favores da elite agrária. Conhecer alguns aspectos da vida do escritor talvez nos ajude a entender por que ele se identificava com os setores mais oprimidos da sociedade e como isso o diferenciava de outros escritores do Indianismo.

Mas quem foi Gonçalves Dias?

Antônio Gonçalves Dias [10] nasceu em 10 de agosto de 1823 em Caxias, no Maranhão. Seu pai, João Manuel Gonçalves Dias, era um pequeno lojista português que estava entre aqueles que haviam tentado evitar a Independência do Brasil em relação a Portugal. Sua mãe, Vicência Mendes Ferreira, provavelmente era “cafusa”, ou seja, mestiça de pais índio e africano. João Manuel, pouco tempo depois do nascimento do filho, exilou-se em Portugal, fugindo da perseguição dos nacionalistas brasileiros e ficou lá por cerca de dois anos, período em que Antônio e Vicência viveram sozinhos em uma pequena fazenda próxima a Caxias. 

Voltando ao Brasil, João Manuel se casou com outra mulher, Adelaide Ramos de Almeida, e assumiu a responsabilidade da criação de Antônio, impedindo-o, inclusive, de conviver com Vicência. Mesmo relutando, Adelaide pagou os estudos de Antônio, que foi mandado, aos quinze anos, em 1838, para a Universidade de Coimbra, em Portugal. No ano seguinte, sua madrasta sofreu perdas financeiras, e Antônio só conseguiu dar continuidade a seus estudos em Portugal com a ajuda de amigos que o hospedaram; um deles foi Alexandre Teófilo de Carvalho Leal. Com isso, Antônio se formou em direito, mas, por um incidente familiar, retornou ao Brasil em 1845 antes de obter seu doutorado. 

Instalou-se em Caxias e passou por um período de reclusão, sentindo-se humilhado pela condição de dependência econômica em que vivia. No ano seguinte, mudou-se para São Luís, onde foi hospedado, mais uma vez, por seu amigo Teófilo, que conseguiu lhe arranjar um cargo jurídico no Rio de Janeiro, cidade em que Gonçalves Dias publicou seu livro Primeiros cantos, em 1847. Depois, outros dois amigos conseguiram um cargo com fonte de renda regular para ele, como secretário e professor assistente de latim no Liceu de Niterói.

Em 1848, ele exerceu atividades para diversos jornais e, por algumas de suas reportagens, foi indicado como professor de latim e história no Colégio Imperial Dom Pedro II. Ainda nesse período, tornou-se membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, onde desenvolveu seu estudo etnográfico Brasil e Oceania, comparando os povos tribais das Ilhas do Pacífico e do Brasil. 

Em 1851, publicou os Últimos Cantos, e, por volta dessa época, fez uma proposta de casamento à prima de seu amigo Teófilo, Ana Amélia. Essa proposta foi recusada pela mãe da moça, provavelmente por motivos de preconceitos raciais. Durante sua vida, Antônio teve uma série de encontros amorosos insatisfatórios, mas acabou se casando com Olímpia da Costa, com quem teve um casamento infeliz e uma filha, a qual morreu aos dois anos de idade. 

A obra do escritor foi bem recebida na época, e várias edições de suas poesias foram lançadas. Em 1863, ele partiu para a Europa para tratar de problemas de saúde e, no final do ano seguinte, embarcou de volta para o Brasil, mesmo que sua saúde ainda estivesse bem debilitada. Em 3 de novembro de 1864, quase chegando à costa brasileira, seu navio sofreu um acidente e afundou. Toda a tripulação se salvou, mas, quando se lembraram de socorrer o poeta, seu camarote já estava submerso.

De acordo com David Treece, a vida pessoal e profissional desse escritor mestiço e de classe média baixa daria testemunho de “uma consciência aguda da desvantagem racial e econômica e uma aversão amarga às condições opressivas nas quais se baseava a prosperidade do Império”. [11] Porém, como o próprio pesquisador nos previne, essa consciência nunca foi tão longe a ponto de questionar o pensamento básico indianista de que os indígenas deveriam ser integrados na sociedade brasileira, abandonando suas identidades e práticas culturais. O poeta teria receio de que uma revolução dissolvesse violentamente a então jovem nação brasileira. Nesse sentido, o crítico inglês considera que, no Indianismo de Gonçalves Dias, haveria um jogo entre forças contraditórias, um estado de tensão. Isso daria à sua obra uma intensidade única, ausente nos trabalhos de outros colegas de sua geração.

Vejamos como essa intensidade aparece na leitura que Treece faz do poema “I-Juca Pirama”, de Gonçalves Dias. Com isso, talvez o poeta se mostre digno de ser devorado pelos escritores modernistas do Movimento Antropofágico.

O que é digno de ser devorado
Capa de Últimos Cantos, de 1851, livro em que foi publicado o poema épico “I-Juca Pirama”

 

O poema épico “I-Juca Pirama” faz parte do livro Últimos cantos, publicado em 1851. O seu título, como adverte o próprio Gonçalves Dias em uma nota, se fosse traduzido do tupi para o português, seria equivalente a “o que há de ser morto, e que é digno de ser morto”

Esse poema, narrado por um velho da etnia timbira (como descobrimos apenas no décimo e último canto), conta a história de um jovem guerreiro tupi que é capturado por uma tribo timbira e que, seguindo o costume, deverá ser sacrificado em um ritual de canibalismo. Entretanto, ao contar sua história antes de ser morto, o índio chora e pede clemência, para poder cuidar de seu pai, velho e cego, já que eles dois são os únicos sobreviventes da sua tribo. Por ter chorado, o jovem é considerado fraco e, por isso, indigno de ser comido, e é libertado. Ele, então, reencontra seu pai, que percebe que o filho tinha sido preparado para um ritual de sacrifício que não foi concluído. Ao saber que o filho tinha sido poupado para cuidar dele, o velho decide que eles devem voltar à tribo timbira para terminar o ritual. Chegando lá, porém, ele descobre que o filho, na verdade, foi libertado porque chorou na presença da morte. O pai, por isso, amaldiçoa o filho. O jovem tupi, incitado pelo ódio do pai, ataca a tribo timbira e luta com bravura, mostrando-se, assim, digno de ser morto, o que faz o pai chorar, mas de alegria.

Primeira estrofe do canto X de “I-Juca Pirama” [12]

 

Podemos notar que a abordagem que Gonçalves Dias apresenta para o canibalismo em seu poema se distancia muito da concepção de que esse ato é uma prática de bárbaros que deve ser superada, uma abordagem presente em outros textos, como no poema Caramuru, de 1781, escrito por Santa Rita Durão, precursor do Indianismo. Além disso, em “I-juca Pirama”, por ser um tema central da narrativa, ainda que o ritual em si não seja descrito, o canibalismo não foi minimizado em prol de uma idealização da figura do indígena, o que aconteceria em obras de José de Alencar, como no romance Ubirajara, de 1874. [13]

Essa postura diferente de Gonçalves Dias com relação ao canibalismo não surpreende quando lembramos do que foi discutido na segunda parte deste texto: a posição que esse poeta ocupa dentro do Indianismo. Essa era uma posição dissidente de um homem livre, mas dependente, que vê a realidade dos índios e dos negros próxima da sua, sem direitos e lugar na sociedade dominada por uma burguesia agrária do Brasil de sua época. Tudo isso já ajuda a entender um pouco a forma como Gonçalves Dias retratou o canibalismo, que pode contrariar positivamente algumas expectativas, inclusive do leitor contemporâneo.

Ao acompanhar a leitura que David Treece fez desse poema, vemos que o crítico enxerga o canibalismo como o elemento central, que dá força ao poema. Para Treece, o ritual de canibalismo seria, em “I-Juca Pirama”, o meio de reintegração à comunidade, de recuperação do sentimento de pertencimento na integridade da cultura tribal.    

O crítico considera que pode ser tentador enxergar que uma ideia ocidental, a devoção do filho pelo pai, triunfa sobre a cultura tribal marcial de coragem e de resistência. Porém, essa leitura ignoraria a estrutura dramática do texto em sua inteireza, já que, ainda que o laço de paternidade seja um tema importante, ele está subordinado ao clímax do poema, que é o momento de reconciliação e de reintegração na tribo. Além disso, a força máxima dessa reconciliação seria consequência do contexto histórico da narrativa, que é claramente estabelecido no texto: o momento posterior à Conquista dos europeus. O jovem e seu pai são os únicos sobreviventes de uma tribo vitimada pelo encontro com os colonizadores. Nas palavras de Treece:

eles têm caminhado errantes no exílio, parece, apenas para finalmente redescobrirem seu mundo perdido em outro lugar, entre os timbiras que mantêm prisioneiro o guerreiro. É-lhe dada a oportunidade de reafirmar os valores tradicionais de seu povo dentro do contexto honroso de seu cativeiro, através de algum ato de bravura. Assim ele faz, dando nova vida a seu velho e decrépito pai e à tribo que a Conquista parece ter destruído. [14] 

O ritual antropofágico, assim, representaria uma redescoberta da identidade tribal. Desse modo, o gesto de devoção filial não destrói a cultura militarista dominante do povo tupi: o gesto questiona essa cultura momentaneamente, mas depois a deixa mais forte e mais rica. Honrando o ritual e aceitando sua incorporação ao corpo da tribo, o protagonista estaria “cumprindo o papel a ele destinado dentro da ordem social e cósmica do mundo indígena: I-Juca Pirama – ‘o que há de ser morto, e que é digno de ser morto’”. [14]

A partir dessa análise, Treece destaca a importância do ritual de canibalismo para o poema, bem como a importância do próprio Gonçalves Dias dentro da literatura brasileira:

Ao oferecer uma leitura dessa prática que se aproxima do conhecimento antropológico moderno sobre o assunto, Gonçalves Dias rompeu com toda uma tradição literária indianista no Brasil, que, por três séculos, representou e caricaturou o canibalismo como prova da barbárie primitiva do índio […]. De fato, ele é único no Indianismo do século dezenove por essa interpretação, e, depois dele, teve-se que esperar pelo movimento modernista para que a significação ritual do canibalismo fosse novamente reafirmada. Tal revisão radical de uma das pedras fundamentais do discurso colonial fala alto pela notável contribuição deste poeta como uma das mais poderosas vozes dissidentes no seio da tradição romântica indianista. [15]

David Treece, com uma boa dose de contundência, aproxima a abordagem que Gonçalves Dias faz da antropofagia com a do conhecimento antropológico moderno e a do movimento modernista. No entanto, vale finalizar este texto com uma breve ressalva, que relativiza um pouco essa aproximação feita por Treece.

Para o antropólogo Carlos Fausto, embora essa ideia da absorção das qualidades pela devoração não seja totalmente incorreta, ela não é capaz de explicar completamente a prática da antropofagia. Na visão do antropólogo, diferentemente de Gonçalves Dias, Oswald de Andrade teria conseguido propor uma leitura de antropofagia mais parecida com as representações indígenas, pois o modernista compreendeu essa prática como um movimento que não busca apenas se identificar com o outro ou negá-lo, mas sim que busca exprimir a contradição existente entre um desejo pelo outro e a necessidade de se constituir como sujeito autônomo, independente. [16]

Essa compreensão mais profunda que Oswald propõe da prática da antropofagia também é defendida pela pesquisadora Lúcia Sá, quando a autora explica a postura do modernista diante de tal prática:

O que interessava a Oswald era desenvolver uma teoria da identidade cultural: as experiências intertextuais com fontes indígenas não eram importantes para ele. Como teórico, ele se voltou para as culturas indígenas em busca de conceitos, não de histórias. [17]

De todo modo, acredito que não precisamos considerar essa sutileza do conceito aparentemente capturada por Oswald para afirmar que Gonçalves Dias talvez merecesse, sim, um lugar na bibliotequinha antropofágica.

Notas

[1] Essa é a história contada por Raul Bopp – um dos amigos do jantar – no livro Vida e morte da Antropofagia, publicado pela editora José Olympio em 2006. O livro reúne textos do autor escritos entre 1965-1966, lançados esparsamente em jornais ou em livros de tiragens reduzidas.

[2] Como disse Oswald de Andrade, em entrevista a O Jornal do Rio de Janeiro em 18 de maio de 1928. Esse trecho da entrevista foi citado no artigo A fome antropofágica – utopias e contradições, de Fernada Oliveira Figueiras Santos e Mauro de Mello Leonel, publicado na Revista de Estudos Culturais, da USP. Esse artigo também embasou a breve apresentação do movimento, comentada neste parágrafo.

[3] Se quiser saber mais sobre os ensaios de Michel de Montaigne, confira o texto “Ensaio em cena”, publicado aqui no Marca Páginas.

[4] Nas palavras de Raul Bopp, no mesmo livro citado na nota 1.

[5] Como colocado pela pesquisadora Lúcia Helena em seu livro Modernismo brasileiro e vanguarda, publicado pela editora Ática, em 1996.

[6] Antropofagia – palimpsesto selvagem, dissertação defendida em 2012 na USP, na qual a pesquisadora analisa detidamente os 51 aforismos do “Manifesto Antropófago”.

[7] Em seu texto “Uma poética da radicalidade”, o qual tem uma seção intitulada “Indianismo às avessas”. Esse texto foi publicado nas Obras Completas VII – Poesias Reunidas, de Oswald de Andrade. Publicado pela editora Civilização Brasileira em 1971.

[8] Informações baseadas no texto de Benedito Nunes, “Antropofagia ao alcance de todos”. Publicado no livro Obras Completas VII – Do pau-brasil à antropofagia e às utopias (Manifestos, teses de concursos e ensaios), de Oswald de Andrade. O livro foi editado pela Civilização Brasileira e lançado em 1970.

[9] Em seu livro Exilados, aliados, rebeldes: o movimento Indianista, a política indigenista e o Estado-Nação imperial. Traduzido por Fábio Fonseca de Melo e publicado em 2008 em uma parceria das editoras Nankin e Edusp.

[10] As informações biográficas apresentadas nesta seção se baseiam, sobretudo, nas seguintes referências: o livro de Treece mencionado na nota anterior; o livro Gentis Guerreiros: o Indianismo de Gonçalves Dias, de Cláudia Neiva de Matos, publicado em 1988 pela editora Atual; e a “Cronologia da vida e da obra de Gonçalves Dias” (incluída na coletânea de poemas Ainda uma vez – Adeus, publicada pela J. Aguilar em 1974). Essa cronologia é ancorada, entre outras fontes, nas pesquisas da principal biógrafa do poeta, Lúcia Miguel Pereira.

[11] Citação da página 149, do livro de David Treece mencionado na nota 9.

[12] Trecho do poema retirado do livro Épicos (da coleção Multiclássicos), organizado por Ivan Teixeira e publicado em parceria pela Edusp e pela Imprensa Oficial, em 2008.

[13] As representações da antropofagia em Santa Rita Durão e em José de Alencar foram discutidas por Maria Cândida Ferreira de Almeida, em seu livro Tornar-se outro: o topos canibal na literatura brasileira, publicado pela Annablume, em 2002. Nesse livro, baseado na pesquisa de doutorado da autora, é proposta a ideia de que a antropofagia é um tema que se repetiu e que se fixou na tradição literária brasileira, sendo retratado de diferentes formas.

[14] Citação da página 187, do livro de David Treece mencionado na nota 9.

[15] Citação das páginas 190 e 191, do livro de David Treece mencionado na nota 9.

[16] Carlos Fausto apresenta essa ideia no artigo “Cinco séculos de carne de vaca: antropofagia literal e antropofagia literária”, publicado na revista Nuevo Texto Crítico, em 1999.

[17] Essa é uma leitura que Lúcia Sá fez em seu livro Literaturas da Floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana, publicado em 2012 pela edUERJ.

 

Sete livros infantis que falam da morte

No noticiário da TV, nos desenhos animados, nos jogos eletrônicos… O tema da morte está muito próximo das crianças. Apesar disso, muitas vezes, os adultos criam um silêncio quando se trata de conversar sobre esse tema com os pequenos. Sem dúvidas, esse não é um assunto fácil, pois envolve um sentimento de vulnerabilidade e também a nossa ignorância diante do desconhecido. No entanto, a morte é parte inevitável da vida e refletir sobre a morte pode até nos oferecer um sentido para a nossa existência [1]. Essa reflexão não precisa ocorrer apenas quando uma criança passa por uma perda: uma conversa sobre o assunto pode partir da leitura de um livro

Neste texto, apresento sete livros infantis que abordam o tema da morte, cada um de um jeito diferente. Há livros que tratam do assunto de um modo mais filosófico e outros que recorrem até ao humor.

Se você quiser saber mais sobre como e por que falar sobre a morte com crianças, recomendo que ouça o episódio “Precisamos falar sobre a morte (com as crianças)”, do podcast Oxigênio. Nesse episódio, as psicólogas Lucélia Elizabeth Paiva e Maria Júlia Kovács dão orientações sobre como essa conversa pode acontecer. A biblioterapia – o uso de textos literários com a finalidade de ajudar uma pessoa a enfrentar uma dificuldade – foi apontada como um dos caminhos para estabelecer essa conversa. Também nesse episódio, a Márcia Abreu, que é pesquisadora e professora de literatura, falou sobre um livro para crianças que ela acabou de lançar e que aborda o tema da morte. Inclusive, esse livro está indicado na lista abaixo.

Ouça o episódio e inspire-se na lista para iniciar uma conversa sobre esse tema com uma criança. Também compartilhe esse conteúdo com quem tem contato com crianças: familiares, professores, profissionais da saúde… Ou, simplesmente, aproveite para conhecer sete livros que proporcionam reflexões fundamentais para crianças e adultos.

1. A árvore das lembranças
Capa do livro “A árvore das lembranças”

 

A alemã Britta Teckentrup é a escritora e a ilustradora desse livro delicado tanto nas palavras quanto nos traços. Um dia, uma raposa, que teve uma vida longa e feliz, foi até o seu cantinho preferido da floresta, deitou-se e dormiu para sempre. Os amigos dela se reuniram em volta de seu corpo e começaram a contar histórias vividas com ela no passado.  A coruja, o rato, o urso, o coelho e o esquilo… Cada um tinha uma lembrança da ternura e da generosidade da raposa; eram lembranças que faziam todos sorrirem. E cada história contada dava forças para uma plantinha laranja, que brotou bem no lugar onde a raposa tinha se deitado. Essa plantinha ia crescendo e ficando mais bonita, até se transformar em uma árvore. Quem essa árvore das lembranças pode abrigar e o que ela pode representar? Essas são questões que aparecem no livro.

“A árvore das lembranças” nos mostra o valor das memórias: mesmo que não convivamos mais, no nosso cotidiano, com um ser que morreu, podemos manter um vínculo afetivo com ele, por meio das lembranças e do compartilhamento delas.

A cada lembrança compartilhada, a plantinha laranjada ia crescendo…

 

Espiada nas primeiras páginas:

“Era uma vez uma raposa que vivia na floresta com os outros animais.
Ela levara uma vida longa e feliz, mas estava ficando cansada. 
Bem devagar, ela foi até seu cantinho favorito na clareira.
Olhou para sua adorada floresta pela última vez e se deitou. 
Fechou os olhos,
respirou fundo
e caiu no sono
para sempre.”

Título: A árvore das lembranças
Texto e ilustração: Britta Teckentrup
Tradução: Marília Garcia
Editora: Editora Rovelle
Ano: 2014 (edição original de 2013)

2. O jabuti e a siriruia: o ciclo da vida
Capa do livro “O jabuti e a siriruia: o ciclo da vida”

 

Escrito pela Márcia Abreu e ilustrado pelo Bira Dantas, esse livro conta a história da amizade entre um jabuti – um animal que pode viver cerca de cem anos – e uma siriruia (também conhecida como aleluia), um inseto que vive apenas um dia. Esses dois se encontram e, apesar das várias diferenças entre eles, acabam se tornando grandes amigos e vivendo uma aventura que dura o breve tempo de vida da siriruia, mas que consegue mudar a forma como o jabuti se enxerga e enxerga o mundo. O livro aborda temas sensíveis – como velhice, solidão, abandono, deficiência e morte – de uma forma honesta, sem dar uma resposta pronta sobre esses assuntos, mas também sem deixar a criança desamparada ao final da história. Publicado pelo Estralabadão, o selo de divulgação científica para crianças da Editora UFMG, o livro ainda traz informações científicas sobre os animais protagonistas da história.

A siriruia toda animada e o jabuti recuperando o fôlego para acompanhar a nova amiga

 

Espiada nas primeiras páginas:

“ – Melhor eu ir até a mangueira – disse o jabuti, piscando muito para segurar uma lágrima e andando num passo mais rápido do que o normal. 
Em geral, ele não tinha pressa para nada. Nem para falar, nem para pensar. Muito menos para tomar uma decisão. Mas agora estava resolvido: iria até a mangueira e não sairia mais de lá.
Ele vivia naquele sítio há pouco mais de cem anos e seu lugar preferido era debaixo da mangueira, na curva do riacho. Em passo de gente, o caminho até lá levaria uns trinta minutos, em passo de criança contente, uns vinte. Mas para o jabuti aquela caminhada poderia levar o dia todo. Ele andava len – ta – men – te e tinha tempo de observar tudo ao seu redor…”

Título: O jabuti e a siriruia: o ciclo da vida
Texto: Márcia Abreu
Ilustração: Bira Dantas
Editora: Editora UFMG (Estraladabão, selo de divulgação científica para crianças)
Ano: 2021

3. O pato, a morte e a tulipa
Capa do livro “O pato, a morte e a tulipa” (edição em inglês)

 

O livro foi escrito e ilustrado pelo prestigiado artista alemão Wolf Erlbruch, ganhador de diversos prêmios, como o Hans Christian Andersen e o Bologna Ragazzi. “O pato, a morte e a tulipa” conta a história de um pato que se dá conta de que está sendo acompanhado pela morte – um ser gracioso, ainda que com uma cabeça de caveira, que usa uma bata xadrez e que carrega (em vez de uma foice) uma tulipa. Os dois personagens acabam desenvolvendo uma relação de companheirismo e conversam, inclusive, sobre o que aconteceria após a morte, sem, contudo, chegar a uma conclusão definitiva.

O pato e a morte se tornam amigos

 

Espiada nas primeiras páginas:

“Fazia um tempo que o Pato tinha um pressentimento.
‘Quem é você? O que você está fazendo, rastejando atrás de mim?’
‘Bom, você finalmente me notou. Eu me chamo Morte’
O Pato congelou de medo, e quem poderia culpá-lo?
‘Você veio me buscar?’
‘Oh, estive por perto toda a sua vida – para o caso de acontecer alguma coisa.’
‘Que coisa?’ perguntou o Pato.
‘Um resfriado forte, um acidente – nunca se sabe.’” [2]

Título: O pato, a morte e a tulipa
Texto e ilustração: Wolf Erlbruch
Ano: 2007 (edição original)
Há uma edição brasileira, da Cosac Naify, publicada em 2009. Porém, ela está esgotada.

Há também uma adaptação desse livro em um curta-metragem de animação, dirigido por Matthias Bruhn, com cerca de dez minutos. Os desenhos do filme são bem parecidos com as ilustrações do livro. Uma versão desse curta, legendada em português, pode ser assistida no YouTube.

4. Sete histórias para sacudir o esqueleto
Capa do livro “Sete histórias para sacudir o esqueleto”

 

A mineira Angela-Lago, escritora e ilustradora consagrada no Brasil e fora daqui, recontou nesse livro sete histórias – ou causos – que seu pai havia lhe contado, mas que também poderiam ter sido contatadas por muitos de nossos avós, bisavós ou tataravós. As histórias falam sobre assombrações, cemitérios, mortos (verdadeiros ou fingidos), mas tudo com uma dose de graça. Os traços das ilustrações são “tremidos”: como se desenhados com medo? E os números das páginas estão escondidos no meio das ilustrações… Repare no rabinho de um dos bodes desenhados no livro. No fim, a autora presenteia os leitores com essas histórias: “Agora elas são suas. Aumente um ponto. Ou dois. Ou três. Espere uma noite de trovoada ou, pelo menos, apague a luz… E conte!”. Apagar a luz é realmente uma boa sugestão, além de ajudar a criar um clima para as histórias, torna as ilustrações, desenhadas em tons metálicos, mais brilhantes e vívidas.

Enquanto dançava, o esqueleto se despedaçava

 

Espiada nas primeiras páginas:

“A viúva estava na cozinha com o filho, contando feliz o dinheiro que tinha encontrado debaixo do colchão, quando o marido, falecido fazia meses, apareceu e veio sentar-se à mesa com eles. A mulher não se intimidou: 
– O que é que você está fazendo aqui, seu miserável?! Me dá paz! Você está morto! Trate de voltar para debaixo da terra.
– Nem pensar – disse o morto. – Estou me sentindo vivinho.” (Começo da história 7: “Dançando com o morto”)

Título: Sete histórias para sacudir o esqueleto
Texto e ilustração: Angela-Lago
Editora: Companhia das Letrinhas
Ano: 2002

5. Menina Nina: duas razões para não chorar
Capa do livro “Menina Nina: duas razões para não chorar”

 

O consagrado ilustrador e escritor Ziraldo começa essa história no dia do nascimento de Nina, “a menina que fez Vivi virar avó”. A primeira parte do livro é recheada de aliterações, com a presença marcante do som da letra “V” (como já dá para perceber no trechinho acima). Nessa parte, conhecemos um pouco da história de vovó Vivi e de sua relação com a neta. Essa parte dura até quando, um dia, a vovó Vivi dorme e não acorda mais. Depois disso, ficamos conhecendo algumas dúvidas e angústias da garotinha: “Vovó, você nunca disse que ia embora assim, sem dizer adeus. […] Vovó, e os meus segredos? Pra onde você levou? […] Vovó, eu não posso mais abraçar as suas pernas, não posso beijar o seu rosto, não posso pegar sua mão…”. A segunda parte do livro é como uma conversa com Nina, momento em que são apresentadas as “duas razões para não chorar”, presentes no subtítulo do livro: SE, depois da morte, não existir mais nada, se tudo “acabar de vez”, a vovó estará em paz; ela não sabe nem vai saber que está dormindo para sempre. Ela não estará sofrendo. SE ela despertar em outro mundo, “feito de luz e estrelas, veja, Nina, que barato!! Que lindo virar um anjo. Que lindo voar no espaço”. Apresentando essas possibilidades, sem escolher alguma delas, o narrador conclui que “dos dois jeitos desse adeus é que a gente inventa a vida”. 

A vovó Vivi do livro foi baseada em Vilma Gontijo, que foi esposa de Ziraldo. Dois anos depois da morte de Vilma, Ziraldo escreveu esse livro, como forma de confortar seus netos, seus filhos e a si próprio, além de fazer uma homenagem à companheira [3]. Além disso, no livro, Ziraldo incorpora desenhos que sua neta Nina fez aos nove anos, como é o caso da galinha de biquíni que aparece na imagem abaixo.

A galinha de biquíni desenhada por Nina incorporada às ilustrações de Ziraldo

 

Espiada nas primeiras páginas:

“Menina Nina amava Vó Vivi, que amava sua menina. A vovó, ao ver a Nina pelo vidro do berçário, pulava feito menina em festa de aniversário (vovó era mais menina do que a neta que nascia).
Se Nina visse a vovó lá do fundo do seu berço e já pudesse entender a vida que aqui se vive (do lado de cá do vidro), a Nina iria aprender o que é felicidade.
Vovó estava feliz com a chegada da Nina – a menina que fez Vivi virar vovó.”

Título: Menina Nina: duas razões para não chorar
Texto e ilustração: Ziraldo Alvez Pinto
Editora: Melhoramentos Ltda.
Ano: 2002

6. O guarda-chuva do vovô
Capa do livro “O guarda-chuva do vovô”

 

O livro foi escrito por Carolina Moreyra e ilustrado por seu marido, Odilon Moraes,  vencedor do prêmio Jabuti de Ilustração. Narrado por uma garotinha, o livro conta a história de um avô que “morava na casa da vovó”. Ele vivia no seu quarto, não gostava de bolo de chocolate nem de barulho. Em um dia, a menina achou que ele, deitado em sua cama, estava encolhendo. Em outro dia, ele já não estava mais na “casa da vovó”… O guarda-chuva do vovô, por acaso “herdado” pela garotinha, ganha um significado nessa relação antes distante e também muda o significado que menina dá para os dias chuvosos.

O vovô estava encolhendo?

 

Espiada nas primeiras páginas:

“O vovô morava na casa da vovó. A casa da vovó ficava longe. Às vezes eu ia até lá fazer uma visita e matar a saudade. A vovó fazia bolo de chocolate para o lanche e então chamávamos o vovô. Mas ele nunca vinha. O vovô não gostava de bolo de chocolate e nunca abria a janela do quarto.”

Título: O guarda-chuva do vovô
Texto: Carolina Moreyra
Ilustração: Odilon Moraes 
Editora: DCL
Ano: 2008

7. Pode chorar, coração, mas fique inteiro
Capa do livro “Pode chorar, coração, mas fique inteiro”

 

Dois dinamarqueses, Glenn Ringtved e Charlote Pardi são o escritor e a ilustradora desse livro. Quatro crianças servem cafezinho atrás de cafezinho para a Morte: elas querem ganhar tempo, para que essa figura não leve embora sua avó, já bem doente. Mas não teve jeito, chegou a hora de a morte cumprir sua missão. Antes que pudesse se levantar, porém, ela foi interrogada por uma das crianças “Dona Morte, por que a nossa vovó tem que morrer, se ela é a pessoa que a gente mais ama no mundo?”. Também triste com a situação, a morte – que não tem um coração seco como um pedaço de carvão, mas sim um bem vermelho que bate por ter “um amor imenso pela vida” – resolveu contar uma história para as crianças… A história do encontro dos irmãos Sofrimento e Desconsolo com as irmãs Alegria e Risada. O Sofrimento e a Alegria se apaixonaram, assim como o Desconsolo e a Risada; os casais descobriram que não podiam mais viver um sem o outro. A Morte contou essa história para as crianças e disse que assim também acontecia com a  vida e com a morte: “Que valor a gente daria à vida se não existisse a morte? Quem ficaria feliz com o sol, se nunca chovesse?”. Depois disso, as crianças viram que não deviam tentar impedir a morte. Elas ficaram, sim, muito tristes com a morte da avó, mas não se esqueceram da história que ouviram, muito menos dos momentos com a avó.

Os dois casais: Sofrimento e Alegria; Desconsolo e Risada

 

Espiada nas primeiras páginas:

“Quatro crianças estavam sentadas em volta de uma mesa, em uma cozinha pequena. Dois meninos e suas irmãs mais novas. Na ponta da mesa estava uma figura assustadora, com uma capa preta. O rosto dela estava escondido pelo capuz, só aparecia um nariz pontudo. 
Lá fora, ao lado da porta, estava a foice.
Era a morte.”

Título: Pode chorar, coração, mas fique inteiro
Texto: Glenn Ringtved
Ilustração: Charlotte Pardi
Tradução: Caetano W. Galindo
Editora: Companhia das Letrinhas
Ano: 2020 (edição original de 2001)

Notas

[1] Informações baseadas no livro A arte de falar da morte para crianças: a literatura infantil como recurso para abordar a morte com crianças e educadores (2011), da psicóloa Lucélia Elizabeth Paiva, e no artigo Educação para a morte (2005), da também psicóloga Maria Júlia Kovács, que é uma das pessoas responsáveis pela criação do Laboratório de Estudos sobre a Morte, do Instituto de Psicologia da USP. No site desse instituto, há vários materiais, inclusive dicas de livros e de filmes relacionados ao tema da morte. As duas autoras participaram do episódio “Precisamos falar sobre a morte (com as crianças)”, recomendado nesta publicação.

[2] Tradução minha, realizada a partir da tradução para o inglês de Catherine Chidgey, publicada pela editora Gecko Press, da Nova Zelândia.

[3] Informações baseadas na reportagem “Como falar de morte com as crianças”, da Revista Crescer, que contou com entrevistas de Ziraldo e de sua neta Nina.

Um rosto pelo outro: o espelho que falta em A mulher de pés descalços, de Scholastique Mukasonga

Em diferentes épocas, em diferentes espaços geográficos, o espelho apareceu representado na literatura, funcionando ora mais, ora menos como símbolo ou metáfora. Pensemos no mito grego de Narciso, que acha feio o que não é espelho, eternizado nas Metamorfoses do poeta Ovídio; ou na carta aos Coríntios de São Paulo, passagem bíblica em que o enigma antecede a possibilidade de nos vermos face a face; ou até mesmo na história da Branca de Neve, fábula dos Irmãos Grimm ou filme da Disney, em que a madrasta se pergunta sobre a existência de algo mais belo do que si mesma. Na literatura brasileira, igualmente disseminado, o espelho aparece, por exemplo, tanto em Machado de Assis, quanto em Guimarães Rosa, quando ambos escolhem chamar seus contos de, justamente, “O espelho”. Não faltam, portanto, referências e análises sobre esse tema, que se tornou um prato cheio para os estudos literários. No entanto, hoje, lendo o romance A mulher de pés descalços, pude refletir (com todas as ambiguidades que essa palavra poderá ressoar aqui) de uma maneira diferente sobre ele.

Escrito por Scholastique Mukasonga e publicado em 2008, na França, e em 2017, no Brasil, em tradução de Marília Garcia pela editora Nós, A mulher de pés descalços é o que poderíamos chamar de testemunho da história, com h minúsculo, e da História, com h maiúsculo. A escritora, que nasceu em Ruanda em 1956 e se refugiou na França na década de 1990, homenageia nesse romance sua mãe, Stefania. As experiências narradas vão sendo encadeadas de forma que a história particular de sua família se costure à terrível guerra civil que marcou a História de seu país de origem. Entre exílios e genocídios, Mukasonga vai nos colocando em contato com as múltiplas violências relacionadas aos conflitos étnicos ocorridos em Ruanda nas últimas décadas do século XX, enquanto nos imerge em memórias familiares que tematizam seus hábitos e costumes.

 

 

Foi então que ali pelo capítulo VII, “A beleza e os casamentos”, li a seguinte passagem:

          Mas como a gente faz para saber se é bonita sem um espelho? Em Gitagata não havia espelhos, nem mesmo nas lojas; no maior comerciante de Nyamata, eles ficavam no alto da estante, atrás do balcão – e era impossível dar uma olhada, mesmo quando o vendedor se distraía atendendo outro cliente. O único espelho eram os outros: o olhar satisfeito ou os suspiros de desânimo da nossa própria mãe, as observações e comentários da irmã mais velha ou dos colegas e, depois, o rumor que corria pelo vilarejo que acabava chegando até nós: quem é bonita? E quem não é?

          Mas, sem espelho, como ter certeza de que ao menos alguns traços do próprio rosto correspondem aos critérios de beleza valorizados pelas casamenteiras e celebrados pelas canções, provérbios e histórias? Uma cabeleira abundante, mas que deixe a testa à mostra, um nariz reto (esse pequeno nariz tutsi que acabou decidindo a morte de tantos ruandeses), gengivas pretas como as de Stefania, sinais de boa linhagem, dentes afastados… Quando o Sol brilhava, a gente ia até uma poça tentar ver o reflexo. Mas o retrato fluido dançava debaixo de nossos olhos impotentes. O rosto de água se enrugava, se encrespava e se fragmentava em películas de luz. Nosso rosto nunca era nosso como quando é visto no espelho, ele era sempre de outro.[1]

A pergunta que abre o excerto, como a gente faz para saber se é bonita sem um espelho?, me deixou desconcertada. A presença desse objeto sempre foi tão naturalizada e banal para mim – seja pela minha própria existência, seja pela literatura contemporânea que pude conhecer até aqui – que nunca tinha me passado pela cabeça a possibilidade de não ter acesso, em tempos tão recentes, à experiência de se encarar em um espelho. É curioso porque, acompanhando a leitura do livro até aquele momento, eu já havia passado com as personagens pela falta de leite (tão importante para a cultura dos tutsis, etnia da qual Mukasonga e sua família fazem parte), de pão, de água limpa, de segurança, de paz, mas foi com a falta de espelho que senti uma indignação não sentida até então com o livro – talvez por nunca ter pensado sobre isso, diferentemente das outras desigualdades, com as quais eu já havia me deparado simbolicamente em outros momentos.

“O único espelho eram os outros”. Sabemos o quanto a forma como as outras pessoas nos veem é constitutiva da forma como nós mesmas nos enxergamos, nos percebemos, nos projetamos. Porém, a situação em Gitagata, conforme descrita no romance, era a de que essa era a única forma de se ver fisicamente, o que levaria a personagem à pergunta sem resposta: será que sou bonita? Só seria possível satisfazer essa curiosidade pelas características apontadas pelos outros. Os olhares de fora seriam, então, a régua definidora de como ela mesma se perceberia de dentro.

Essa passagem está inserida em um capítulo em que o padrão de beleza (interna e externa) das mulheres tutsis é descrito de forma cuidadosa, afinal ele seria o critério segundo o qual as mulheres do vilarejo conseguiriam se casar ou não. Com certo incômodo, moldadas pela maneira como nossa própria cultura tem problematizado essa questão na contemporaneidade, acompanhamos a mãe de Mukasonga, “casamenteira de mão cheia”, tecendo considerações sobre as moças que ela analisava na tentativa de arranjar casamentos: questões de formação, como ser de família respeitável, ter boa educação, ser trabalhadora; mas também atributos físicos, como ter charme, graça e estrias (sim, era bom sinal ter cochas grossas e cobertas por uma rede de estrias). Por isso, poder dizer sobre si mesma se era uma mulher bonita ou não seria um critério tão importante para a cultura tutsi – afinal isso determinaria, em alguma medida, a oportunidade de se conseguir um casamento e, por consequência, um futuro.

A partir dessa passagem, carrego comigo a imagem do “rosto de água” que a personagem sugere. Para além de narrar as desigualdades e injustiças que acometeram seu povo, levando à dor de saber que a própria família, incluindo sua mãe, havia sido brutalmente assassinada em Ruanda, o romance de Mukasonga nos coloca diante desse não-espelho, ou desse espelho turvo, no qual ingenuamente acreditamos nos enxergar. Foi pela leitura de seu livro que pude sair de minha autoimagem confortável, acreditando que todos conhecem seu próprio rosto refletido em um espelho, e perceber que algo tão banal para mim não é exatamente vivido e percebido pelo outro dessa mesma maneira. Assim, no final das contas, é a imagem que tenho de mim que acabou ficando enrugada, encrespada, fragmentada, por poder pensar, através da literatura, sobre outra cultura, outra realidade, outra perspectiva de existência. Esse tema, ao lado das inúmeras simbologias que o elemento espelho suscita na tradição literária, pode certamente se desdobrar em associações, intertextualidades, bases teóricas diversas – e espero poder aprofundar tais análises posteriormente. Não deixa de ser fascinante, contudo, me dar conta de que nessa aproximação ao livro de Mukasonga mesmo a experiência de leitura mais dolorosa e mais desconcertante sobre mim mesma é ainda, e sempre será, uma experiência que vale a pena ser sentida.

[1] MUKASONGA, Scholastique. A mulher de pés descalços. Trad. Marília Garcia. São Paulo: Editora Nós, 2020 [2017], p. 90-91.

Literatura em Libras: conhecendo a produção literária em língua de sinais

Você já deve ter ouvido falar sobre Libras, a Língua Brasileira de Sinais, não é? Mas e obras literárias produzidas em línguas de sinais, você conhece? Veja a seguir o poema-história “Árvore”, de André Luiz Conceição, para conhecer um exemplo desse tipo de literatura:

Você deve ter notado o quanto a expressividade desse texto literário é constituída por uma soma de fatores corporais, visuais, imagéticos, que transmitem uma experiência única. O projeto “Literatura em Libras” se propõe a pensar justamente esse tipo de produção literária realizada em Libras, atentando para as suas particularidades estéticas e a sua relação com a sociedade brasileira. Idealizado pela pesquisadora e professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Rachel Sutton-Spence, e traduzido para Libras em parceria com Gustavo Gusmão, o livro, publicado este ano pela Editora Arara Azul, está disponível pelo site http://www.literaturaemlibras.com, acompanhado de diversos outros materiais visuais complementares. E tudo isso pode ser acessado e baixado gratuitamente por quem se interessar!

Capa de “Literatura em Libras”, de Rachel Sutton-Spence

 

O material “Literatura em Libras” se dedica a aprofundar a compreensão da produção literária contemporânea em Libras, traçando um percurso de reflexão que passa por 4 pontos principais: elementos fundamentais da literatura em Libras; produção de narrativas e contos em Libras; elementos da linguagem estética de Libras; e relações entre a sociedade e a literatura em Libras.

Cada uma das partes está subdividida em capítulos, nos quais se discutem aspectos específicos relacionados a cada temática, como a literatura surda no contexto brasileiro, definições dos gêneros literários pela perspectiva da literatura em Libras, a tradução da literatura produzida em Libras, entre outros. Ao final de cada capítulo, há ainda um breve resumo dos principais pontos abordados e a proposição de diversas atividades, estabelecendo assim uma ponte entre a reflexão teórica e a prática.

Vale ressaltar que o interesse central da publicação está relacionado à literatura produzida em Libras, isto é, não aquelas obras literárias que foram traduzidas para Libras, mas sim aquelas que foram concebidas originalmente na língua de sinais. Essa diferença é fundamental para que possamos compreender que existe uma cultura literária sendo produzida pela comunidade surda brasileira. Isso implica, por sua vez, reconhecer uma série de potencialidades artísticas próprias dessa produção, que se diferencia das produções literárias escritas e visuais a que temos acesso na maior parte do tempo.

Além disso, a literatura produzida em Libras permite a expressão de experiências próprias da comunidade surda, elaborando literariamente um conjunto de vivências particulares que nem sempre são abordadas ou representadas de maneira adequada pelas produções em línguas orais.

Outro ponto que merece destaque é observar o quanto os estudos sobre literatura produzida em línguas de sinais se conjugam, em 2021, aos avanços tecnológicos das últimas décadas. Em seu prefácio à edição, Rachel Sutton-Spence conta que, na década de 1970, ela já havia se deparado com trabalhos dedicados a poemas em ASL, a Língua Americana de Sinais. As materialidades desses estudos, no entanto, lidavam com suportes distintos dos quais podemos usufruir hoje: “Klima e Bellugi (1979) usaram desenhos feitos com canetas-tinteiro; Sutton-Spence e Woll (1998) usaram imagens de captura de tela de vídeos em VHS; Bauman, Nelson e Rose (2006) incluíram um DVD de trechos de ASL literária em um pequeno envelope na capa do seu livro; Sutton-Spence e Kaneko (2016) usaram capturas de tela junto a uma lista de vídeos indicados, muitos deles do YouTube, esperando que os leitores os procurassem na internet” (2021, p. 18).

Já o trabalho de “Literatura em Libras” está praticamente todo traduzido para Libras e está registrado em vídeos que foram disponibilizados nas plataformas YouTube e Vimeo, facilitando ainda mais o acesso ao material. Há também muitos outros links e QR codes que redirecionam para outros materiais disponíveis em Libras na internet, o que demonstra uma vez mais a riqueza das conexões tecnológicas possíveis nos dias de hoje.

Alfabeto manual de Libras
               Alfabeto manual de Libras

 

Finalmente, vale destacar os avanços da comunidade surda no Brasil e do reconhecimento, a partir de 2002, da Libras como uma das línguas do nosso território. Rachel explica que: “Apesar de os surdos no mundo inteiro terem muitas características semelhantes, a comunidade surda brasileira é diferente das comunidades de outros países pela existência da Lei de Libras. As experiências políticas e educacionais – e até literárias – acontecem todas em respeito à Lei 10436/2002 e ao Decreto 5626/2005, que estabelece o direito dos surdos de ter acesso a informações em Libras. Com isso, estamos vivendo um momento importantíssimo do país, com professores surdos em muitas universidades – federais, estaduais e privadas– nos cursos de Letras Libras e/ou ensinando Libras, pesquisando sobre a língua e a comunidade surda e divulgando os conhecimentos através de publicações e ações de extensão. Hoje, em universidades de todo o Brasil, temos disciplinas que estudam a literatura surda” (2021, p. 28).

Nesse sentido, reconhece-se que ainda há muito trabalho de divulgação e reflexão a ser feito, mas passos importantes têm sido dados para tornar a Literatura em Libras mais conhecida e acessível a um grande público, sobretudo em ambientes escolares, onde o tema da acessibilidade é cada vez mais urgente. E a existência do livro “Literatura em Libras” é algo que, sem dúvidas, nos coloca em contato com essa produção e nos mostra a importância dessa literatura em nossa sociedade.

Utopia: o sonho que antecede o pesadelo?

Uma sociedade perfeita é um perfeito pesadelo, porque ela elimina a última coisa a ser eliminada do mundo, que é o indivíduo. Pode eliminar tudo, menos o indivíduo, porque, se você eliminar o indivíduo, aí já está tudo eliminado, não tem mais nada. (Carlos Berriel)

No episódio Utopia: o sonho que antecede o pesadelo?, do podcast Oxigênio, o Carlos Eduardo Ornelas Berriel falou sobre utopia. Essa palavra, inventada a partir do grego, quer dizer “não lugar”, “o que não está em lugar nenhum”. A gente fala de utopia normalmente pra se referir a um lugar ou a uma sociedade onde tudo é perfeito. Ou também para se referir a uma situação que tende a não se realizar, um sonho inalcançável. Então, por que será que uma sociedade perfeita seria um perfeito pesadelo? Por que ela eliminaria os indivíduos?

O Berriel é professor e pesquisador do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp, e faz mais de 20 anos que ele tem se dedicado ao tema das utopias literárias. Ele é fundador e editor da Revista Morus – Utopia e Renascimento e dirige o Centro de Estudos sobre Utopias da Unicamp, chamado U-TOPOS. O Berriel também é membro de várias sociedades científicas internacionais voltadas para o problema utópico e tem se dedicado à tradução, ao estudo e à publicação de utopias italianas.

Definição da utopia ou a utopia da definição?

 

A utopia é um campo de reflexão que nasceu no século XX e tem sido especialmente estudado de uns trinta anos para cá. Os estudiosos desse campo, porém, consideram que a utopia ainda está em definição; eles têm realizado uma série de discussões para tentar definir a utopia.

O Berriel, que é mais ligado à área da literatura, enxerga a utopia como um gênero literário, um tipo de texto, que tem características muito específicas: ele nasceu com a sociedade moderna, a sociedade burguesa, e é muito próximo da sátira ou é mesmo uma sátira política, que é típica de períodos de grandes transformações sociais.

A sátira como um tipo de texto surgiu na Roma Antiga, e o Lucílio, que nasceu por volta de 180 a.C., é considerado seu criador. A palavra satura tem a ver com um tipo de bandeja cheia – saturada – de frutas. O autor da sátira imitava outros gêneros: é como se ele misturasse em uma mesma obra (bandeja), vários gêneros literários (frutas) diferentes. Isso acontece, porque, como disse o Berriel, o chão da sátira é uma crise social, uma rachadura na crosta histórica; é como se um mundo estivesse acabando e outro ainda estivesse nascendo.

E, na beira desse abismo, o escritor ainda não podia inventar um gênero novo; então, ele imitava e misturava gêneros “mortos”, gêneros de um mundo que estava acabando. O satirista está no “mundo novo”, mas usa materiais literários do “mundo velho”, o que dá ao texto um sabor irônico, de uma coisa relativamente falsa, de um riso de canto de boca, que é o riso do cachorro, cinus, de onde pode vir o termo “cinismo”. Assim, toda sátira teria um elemento de duplicidade, de um certo riso disfarçado.

O cinismo da utopia e o riso do cachorro. (Foto de Jonathan Daniels, Unsplash)

 

O Berriel considera que a utopia nasceu com a publicação, em 1516, de um livro chamado justamente Utopia, escrito pelo Thomas Morus. Esse livro seria uma sátira, no sentido de que é uma reflexão sobre uma nova sociedade.

Lembra que eu disse que a palavra “utopia” tinha sido inventada a partir do grego? Então, foi o Morus, que não era grego e sim inglês, que criou essa palavra. E ele não só criou a palavra, mas também criou a utopia enquanto esse tipo de texto literário, que descreve uma sociedade supostamente perfeita em todos os sentidos. Mas esse texto não simplesmente descreve essa sociedade – o que poderia acontecer em um tratado político, por exemplo –, ele faz isso por meio de uma ficção, de uma história inventada.

Retrato “Sir Thomas More”, Hans Holbein (1527)

 

Comunidade X Sociedade

 

Como o Berriel disse, a Utopia do Morus seria uma sátira por refletir sobre uma nova sociedade. E que nova sociedade seria essa? O ano era 1516: navegações, chegada ao Novo Mundo, desenvolvimento de uma nova economia (o capitalismo mercantil)… Além disso, uma nova classe social, a burguesia, começa a tomar conta da sociedade. Thomas Morus está dentro desse quadro de grande convulsão social. Ele é um intelectual, um escritor, que absorve elementos históricos que estão chegando para ele como uma avalanche (imagina viver naquela época!). Mas, ao mesmo tempo, ele tem um olhar conservador, porque lamenta o desaparecimento de certos elementos da comunidade feudal.

A comunidade é uma forma de vida coletiva que é regida por uma tradição e não pelo dinheiro. O que é diferente da sociedade burguesa que estava nascendo naquela época. Nessa sociedade, as relações entre as pessoas eram mais utilitaristas, mais focadas nos indivíduos, o que, por um lado, é bom, porque a pessoa passa a ter liberdade pra buscar outros vínculos, mais baseados no interesse dela do que em uma tradição. Porém, por outro lado, essa mudança gerava um problema central dentro da Utopia, que é o descarte, o abandono, da população… 

Apesar de a comunidade ser dura, ter dominadores e dominados, dentro dela, todos tinham um lugar, definido em uma estrutura hierárquica: Deus estava acima de tudo, depois vinham os nobres, os cavaleiros e vai descendo até chegar ao mais humilde dos servos, um homem comum. Era essa comunidade feudal, com essa organização, que estava desaparecendo na época em que o Morus escreveu a Utopia. No caso da Inglaterra, onde ele morava, esse desaparecimento era acelerado pelo surgimento de manufaturas de tecido, o que expulsava as pessoas do campo para colocar ovelhas nesses locais, animais que dariam a lã utilizada na produção dos tecidos.

O Morus lamentava o desaparecimento dessa estrutura feudal, que era a forma de poder da Igreja Católica, a qual estruturava a visão de mundo nessa época. E, com o desenvolvimento do capitalismo, a Igreja não iria se sustentar se ficasse do mesmo jeito (o protestantismo viria a ser a expressão religiosa da burguesia).

Então, o Morus – que inclusive foi canonizado, virou santo – mesmo que criticasse os problemas da igreja, como a corrupção e a ociosidade de alguns religiosos, estava preocupado com o fim do feudalismo em seu país, porque os camponeses estavam sendo expulsos do campo, estavam perdendo o lugar (ainda que injusto) que ocupavam antes. Com isso, acontecia um aumento da pobreza e da criminalidade; muitas pessoas eram condenadas à morte por cometerem crimes como roubo. Essa é a questão do descarte da população, que é central na Utopia.

Na visão do Berriel, o Morus teria escrito esse livro para discutir esse fato, lamentar a perda desse passado, o que deixa o livro extremamente contraditório, como as utopias costumam ser. Enquanto gênero literário, as utopias seriam essa captura de um momento de grande transição da sociedade. Mas não é só isso…

Diagnóstico e remédio

 

A utopia é a percepção de um desenvolvimento histórico e uma reflexão sobre ele, mas ela não é só um diagnóstico dos problemas sociais daquele contexto. Ela oferece também um fármaco, um remédio, para os males sociais, em uma forma ficcional, em uma narrativa, na qual ela projeta uma sociedade inventada que tem a solução para todos os problemas identificados pelo escritor.

A Utopia do Morus, assim como algumas das outras utopias que vieram depois, era movida por um desejo de criticar a sociedade da sua época, mas também por um desejo de propor reformas, mesmo que provavelmente os escritores de utopias não acreditassem que aquela sociedade que eles estavam descrevendo, inventando, fosse realizável. Por isso, as utopias costumam ser datadas, porque são bem ligadas a problemas históricos específicos. Além disso, como já disse o Berriel, elas são também contraditórias, ambíguas… Essa característica já aproximaria as utopias das distopias, que são narrativas que descrevem sociedades perfeitamente imperfeitas ou sociedades perfeitas em seus defeitos.

O problema da perfeição

 

O Berriel acredita que a distopia é um galho do tronco da utopia, porque, em grande parte, o procedimento, o material da distopia, já está na utopia. As utopias têm um problema grave, marcante, que é o seguinte: o utopista oferece uma solução, um modo de organizar a vida. Então, as utopias inventam uma sociedade completa. Completa no sentido de que elas preveem como as pessoas vão morar, como elas vão trabalhar, como elas vão casar, como elas vão morrer, como elas se relacionam com a ciência, com a natureza, com outros países. É completa. Essa é uma exigência das grandes utopias, das utopias clássicas: fazer um desenho completamente suficiente do que seria uma sociedade. Ela funciona inteira, não está faltando nada, ela já nasce pronta. 

O utopista escreve, então, uma narrativa em que ele expõe as ideias dele sobre um mundo perfeito, completo. Já dá pra ver um problema nisso, se a gente pensar que a ideia de perfeição normalmente é diferente pra cada pessoa: o sonho de alguns pode ser o pesadelo de outros. Só que o problema da perfeição não para por aí…

Ilustração da Ilha de Utopia, autor desconhecido (1516)

 

A sociedade da Ilha de Utopia, do Thomas Morus, não nasceu de um desenvolvimento natural, em que a população foi vivendo a sua história, errando, acertando, corrigindo, refletindo… Simplesmente, praticamente do nada, chega uma pessoa, com um exército, que é o rei Utopus, com uma constituição já definida nos mínimos detalhes. E essa constituição, essas leis que ele traz são tidas como perfeitas. E, se elas são perfeitas, a perfeição é um problema grave, porque ela significa o congelamento da história. Se algo é perfeito, você não pode aperfeiçoar.

Na Utopia do Morus qualquer problema do mundo real que você possa imaginar, na economia, nas relações humanas, enfim, qualquer problema, já está solucionado. E ele está solucionado antes de qualquer coisa, não pela experiência das pessoas, mas por uma lei fixa, racional, sem defeitos. O modo de operar dessa sociedade não pode ser alterado, porque já é perfeito. Então, aquela sociedade fica congelada no tempo. Como tudo está perfeito, nada pode ser mexido. Dessa forma, a história é eliminada. E, se você elimina a história, você elimina também os indivíduos, que são histórias individuais, que se misturam, formam histórias coletivas, dos povos… Na utopia não existe história.

A nossa individualidade depende da nossa história, da passagem do tempo, das nossas experiências, de conflitos, dos nossos erros, dos nossos enganos… E na utopia não tem nada disso. Como a história é eliminada, o tempo fica congelado em uma sociedade que é tida como perfeita; é como se as pessoas vivessem em um eterno presente. A gente pode perceber isso, inclusive, na forma como o texto é escrito: na utopia não tem personagens, parece que só tem funcionários:

Você imagina aqueles funcionários com uma bata branca, uma cara plácida, trazendo a sabedoria perfeita. Uma coisa horrível, né? Uma sociedade perfeita é um perfeito pesadelo, porque ela elimina a última coisa a ser eliminada do mundo, que é o indivíduo. Pode eliminar tudo, menos o indivíduo, porque, se você eliminar o indivíduo, aí já está tudo eliminado, não tem mais nada. (Carlos Berriel)

De fato, na utopia você não tem doenças, não tem fome, não tem guerra, não tem epidemias, você não tem uma série de coisas, porque todo o Estado funciona que é uma maravilha, às custas da própria alma da história, que é o indivíduo. Portanto, a primeira utopia já é uma distopia. No entanto, será necessária a passagem dos séculos para que a gente tenha essa outra visão…

Se você quiser saber mais sobre as distopias, confira o episódio Utopia: o sonho que antecede o pesadelo?.   Lá a conversa com o Berriel continuou, e ele falou sobre algumas características específicas dessas “primas” das utopias, ilustrando essa questão com o exemplo de um episódio da série britânica Black Mirror e mostrando o elemento distópico que as tecnologias trazem para a sociedade atual, quando colocamos objetos tecnológicos para mediar as nossas relações com outras pessoas…

O “espelho preto”, black mirror, que a gente carrega para todos os lados seria um elemento distópico da nossa época? (Foto de Jamie Street, Unsplash)

 

A série

 

 

“Leitura de Fôlego” é uma série do podcast de jornalismo e divulgação científica Oxigênio, produzido por alunos do Labjor-Unicamp e coordenado por Simone Pallone. Essa série sobre literatura aborda temas de pesquisa de quatro professores do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Aqui no “Marca Páginas”, já temos textos sobre os outros episódios da série: um sobre os livros licenciosos, que, por conterem cenas de sexo (entre outros motivos), eram proibidos no Brasil dos séculos XVIII e XIX, mas que circularam bastante por aqui nessa época; outro sobre os ensaios, um tipo de texto que dá liberdade para o seu autor se mostrar, com suas dúvidas e imperfeições; e, por fim, um sobre livros brasileiros em que narradores homens, ao narrarem um conflito amoroso, tentam silenciar as vozes de suas parceiras (mas as vozes das mulheres conseguem escapar e se inserir na narrativa).

Todos os programas da série estão integralmente transcritos na descrição dos episódios no site do Oxigênio, para que pessoas surdas ou com alguma deficiência auditiva possam ter acesso ao conteúdo. Os episódios podem ser acessados pelo site do Oxigênio, pelo site da Rádio e TV Unicamp, pelo canal no Youtube da TV Unicamp ou por agregadores como Google Podcasts e Spotify.

Mariangela Gualtieri e a tradução do poema “A esta hora da noite”

Geraldo de Oliveira Alló Netto

Luciano de Oliveira

Nirvana Dornelles

Simone Maria Losso

Cláudia Tavares Alves

Foto: Dino Ignani
Fonte: https://www.artribune.com/arti-performative/teatro-danza/2012/10/cio-che-ci-rende-umani-secondo-mariangela-gualtieri/

 

Mariangela Gualtieri nasceu em 1951, em Cesena, Itália. Importante poeta e escritora contemporânea, é também atriz, dramaturga, formada em Arquitetura pela IUAV de Veneza. Fundou, em 1983, o Teatro Valdoca, junto ao diretor Cesare Ronconi, onde atua como dramaturga e intérprete. Gualtieri já venceu vários prêmios literários e publicou diversas coletâneas de poemas, entre elas, Antenata (Crocetti Editore, 1992), Fuoco centrale e altre poesie per il teatro (Einaudi, 2003), Senza polvere senza peso (Einaudi, 2006), Bestia di gioia (Einaudi, 2010), Le giovane parole (Einaudi, 2015), e sua mais recente publicação, Quando non morivo (Einaudi, 2019). Em suas obras, tanto poéticas quanto teatrais, reforça repetidas vezes o aspecto de “inadequação da palavra” e assume suas influências, como Dante Alighieri, Amelia Rosselli, Dylan Thomas, entre outros poetas e escritores, os quais aparecem citados frequentemente em suas entrevistas e declarações.

Tais influências também ficam evidentes no poema “In quest’ora della sera”, apresentado aqui em tradução para português[1]. O texto está repleto de intertextualidades e representa, por meio de seus próprios versos, uma espécie de agradecimento e homenagem a todos os poetas, filósofos e mestres que antecederam sua escrita, firmando ainda o propósito de estar aberto a todos os que venham complementá-lo posteriormente, seguindo o que diz o verso: “pelo fato de que este poema é inexaurível e não chegará nunca ao último verso”. Por extensão, podemos dizer que nesse poema testemunhamos Gualtieri transformando a linguagem poética no próprio tecido de que é feita a existência humana e vice-versa.

O alicerce principal deste poema parece ser “Outro Poema dos Dons”, de Jorge Luís Borges[2], que segue, por sua vez, a estrutura do Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis. Escrito provavelmente em torno do ano de 1224, tal cântico expressa a experiência espiritual pelo louvor a Deus através de suas criaturas. No poema de Gualtieri, esse louvor se transforma em agradecimento às coisas simples que nos são dadas, aos sentimentos que nos engrandecem e aos grandes mestres que nos permitem vislumbrar, pela poesia, esses momentos epifânicos.

Outras intertextualidades igualmente presentes são menos explícitas, como é o caso do verso “sono tornate le lucciole”, referindo-se provavelmente ao ensaio “L’articolo delle lucciole”[3], de Pier Paolo Pasolini. Há também uma referência ao poema “Se l’anima”, de Amelia Rosselli[4], retomado no verso “Se l’anima scende dal suo gradino, la terra muore”. Finalmente, é possível recuperar uma menção a um conto de Dino Buzzati, “Inviti Superflui[5], pelo verso “per il bene dell’amicizia, quando si dicono cose stupide e care”. O poema termina ainda com uma versão do verso que encerra o Paraíso, da Divina Comédia, de Dante Alighieri, visto aqui como “per l’amor che se move il sole e l’altre stelle. / E muove tutto in noi”.

Em relação à experiência de tradução coletiva do poema, os problemas apareceram das mais variadas formas, como em todo processo tradutório no qual se pretende promover a circulação de um texto fora de sua cultura de partida. Primeiramente, é importante destacar que, por se tratar de um trabalho feito a muitas mãos, foi necessário mediar as escolhas de cada tradutor sem deixar de considerar, como menciona Rosemary Arrojo[6], que “há (…) um outro autor a habitar o texto traduzido”.

Nesse sentido, as dificuldades começaram logo nos primeiros versos, devido à expressão “ringraziare desidero”, refrão central que sintetiza todo o tema do poema. Embora “desidero ringraziare” e “desejo agradecer” sejam as formas mais usuais, tanto em italiano como em português, optamos por manter na tradução a ordem original das palavras, ou seja, “agradecer desejo”, procurando assim preservar a inversão – que entendemos refletir o estilo e a escolha da autora – e a intertextualidade com a ordem sintática presente no poema de Borges.

Outro dilema recorrente que exemplifica como o tradutor está sempre diante de uma escolha refere-se à tradução do verbo essere. As diferenças entre estado permanente (verbo ser) e estado não permanente (verbo estar), no português, são marcadas, diferentemente do italiano. Por isso, na tradução, as escolhas se tornaram mais sutis e quase subjetivas, considerando que, na plenitude de um momento, como seria possível definir se somos ou apenas estamos?

Vale destacar ainda que os diversos exemplos de intertextualidade, mencionados anteriormente, atuaram também como ponto de apoio para algumas das opções de tradução, visto que determinadas frases ou expressões já possuíam traduções para o português publicadas e, por isso, buscamos consultá-las e mantê-las quando possível.

Considerando, finalmente, que a tradução é uma entre todas as leituras possíveis de um texto, apresentamos, a seguir, o resultado da nossa leitura e do nosso processo tradutório:

 

“A esta hora da noite”

 

A esta hora da noite

deste ponto do mundo

 

Agradecer desejo o divino

labirinto das causas e dos efeitos

pela diversidade das criaturas

que compõem este universo singular

agradecer desejo

pelo amor, que nos faz ver os outros

como os vê a divindade

pelo pão e pelo sal

pelo mistério da rosa

que esbanja cor e não a vê

pela arte da amizade

pelo último dia de Sócrates

pela linguagem, que pode simular a sabedoria

eu agradecer desejo

pela coragem e pela felicidade dos outros

pela pátria sentida nos jasmins

 

e pelo esplendor do fogo

que nenhum ser humano pode olhar

sem um estupor antigo

 

e pelo mar

que é o mais próximo e o mais doce

entre todos os Deuses

agradecer desejo

porque voltaram os vaga-lumes

e por nós

por quando somos ardentes e leves

por quando somos alegres e gratos

pela beleza das palavras

natureza abstrata de Deus

pela escrita e pela leitura

que nos fazem explorar a nós mesmos e o mundo

 

pela quietude da casa

pelas crianças que são

nossas divindades domésticas

pela alma, porque se descer de seu degrau

a terra morre

pelo fato de ter uma irmã

agradecer desejo por todos aqueles

que são pequenos, límpidos e livres

pela antiga arte do teatro, quando

ainda reúne os vivos e os nutre

 

pela inteligência do amor

pelo vinho e sua cor

pelo ócio com sua espera por nada

pela beleza tão antiga e tão nova

 

eu agradecer desejo pelas faces do mundo

que são várias e muitas são adoráveis

por quando à noite

se dorme abraçado

por quando somos atenciosos e apaixonados

pela atenção

que é a oração espontânea da alma

por todas as bibliotecas do mundo

por sentir-se bem entre aqueles que leem

pelos nossos mestres grandiosos

por quem ao longo dos séculos tem raciocinado em nós

 

pelo bem da amizade

quando se dizem coisas estúpidas e ternas

por todos os beijos de amor

pelo amor que nos torna destemidos

pelo contentamento, o entusiasmo, a embriaguez

pelos mortos nossos

que fazem da morte um lugar habitado.

 

Agradecer desejo

porque sobre esta terra existe a música

pela mão direita e pela mão esquerda

e seu íntimo acordo

por quem é indiferente à notoriedade

pelos cães, pelos gatos

seres fraternos cheios de mistério

pelas flores

e a secreta vitória que celebram

pelo silêncio e seus muitos dons

pelo silêncio que talvez seja a maior lição

pelo sol, nosso antepassado.

 

Eu agradecer desejo

por Borges

por Whitman e Francisco de Assis

por Hopkins, por Herbert

porque já escreveram este poema,

pelo fato de que este poema é inexaurível

e não chegará nunca ao último verso

e muda conforme os homens.

Agradecer desejo

pelos minutos que precedem o sono,

pelos íntimos dons que não enumero

pelo sono e pela morte

estes dois tesouros ocultos.

 

E enfim agradecer desejo

pela grande potência do antigo amor

pelo amor que move o sol e as outras estrelas.

E move tudo em nós.

 

 

“In quest’ora della sera”[7]

 

In quest’ora della sera

da questo punto del mondo

 

Ringraziare desidero il divino

labirinto delle cause e degli effetti

per la diversità delle creature

che compongono questo universo singolare

ringraziare desidero

per l’amore, che ci fa vedere gli altri

come li vede la divinità

per il pane e per il sale

per il mistero della rosa

che prodiga colore e non lo vede

per l’arte dell’amicizia

per l’ultima giornata di Socrate

per il linguaggio, che può simulare la sapienza

io ringraziare desidero

per il coraggio e la felicità degli altri

per la patria sentita nei gelsomini

 

e per lo splendore del fuoco

che nessun umano può guardare

senza uno stupore antico

 

e per il mare

che è il più vicino e il più dolce

fra tutti gli Dèi

ringraziare desidero

perché sono tornate le lucciole

e per noi

per quando siamo ardenti e leggeri

per quando siamo allegri e grati

per la bellezza delle parole

natura astratta di Dio

per la scrittura e la lettura

che ci fanno esplorare noi stessi e il mondo

 

per la quiete della casa

per i bambini che sono

nostre divinità domestiche

per l’anima, perché se scende dal suo gradino

la terra muore

per il fatto di avere una sorella

ringraziare desidero per tutti quelli

che sono piccoli, limpidi e liberi

per l’antica arte del teatro, quando

ancora raduna i vivi e li nutre

 

per l’intelligenza d’amore

per il vino e il suo colore

per l’ozio con la sua attesa di niente

per la bellezza tanto antica e tanto nuova

 

io ringraziare desidero per le facce del mondo

che sono varie e molte sono adorabili

per quando la notte

si dorme abbracciati

per quando siamo attenti e innamorati

per l’attenzione

che è la preghiera spontanea dell’anima

per tutte le biblioteche del mondo

per quello stare bene fra gli altri che leggono

per i nostri maestri immensi

per chi nei secoli ha ragionato in noi

 

per il bene dell’amicizia

quando si dicono cose stupide e care

per tutti i baci d’amore

per l’amore che rende impavidi

per la contentezza, l’entusiasmo, l’ebrezza

per i morti nostri

che fanno della morte un luogo abitato.

 

Ringraziare desidero

perché su questa terra esiste la musica

per la mano destra e la mano sinistra

e il loro intimo accordo

per chi è indifferente alla notorietà

per i cani, per i gatti

esseri fraterni carichi di mistero

per i fiori

e la segreta vittoria che celebrano

per il silenzio e i suoi molti doni

per il silenzio che forse è la lezione più grande

per il sole, nostro antenato.

 

Io ringraziare desidero

per Borges

per Whitman e Francesco d’Assisi

per Hopkins, per Herbert

perché scrissero già questa poesia,

per il fatto che questa poesia è inesauribile

e non arriverà mai all’ultimo verso

e cambia secondo gli uomini.

Ringraziare desidero

per i minuti che precedono il sonno,

per gli intimi doni che non enumero

per il sonno e la morte

quei due tesori occulti.

 

E infine ringraziare desidero

per la gran potenza d’antico amor

per l’amor che se move il sole e l’altre stelle.

E muove tutto in noi.

 

[1] Tradução realizada no âmbito das atividades da disciplina “Prática de Tradução”, ministrada entre fevereiro e maio de 2021, sob supervisão da Profa. Cláudia Tavares Alves, na Universidade Federal de Santa Catarina.

[2] Cf. El Oltro, El Mismo (1964). Disponível em: www.literatura.us/borges/elotro.html, consulta em: 11 jun. 2021.

[3] Cf. Scritti corsari (1975).  O ensaio também está disponível em: https://www.corriere.it/speciali/pasolini/potere.html, consulta em: 11 jun. 2021.

[4] Cf. Variazioni beliche (1964). O poema está disponível em https://ameliarosselli.blogspot.com/2008/12/archivio-rosselli.html, consulta em: 11 jun. 2021.

[5] Cf. La Boutique del mistero (1968). Um trecho do conto está disponível em: http://tomascipriani.it/inviti-superflui-dino-buzzati/, consulta em: 11 jun. 2021.

[6] ARROJO, Rosemary. Tradução, desconstrução e psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 80.

[7] In: Le giovani parole. Turim: Einaudi, 2015, pp. 115-117.

Elio Vittorini e o conto “Nome e Lágrimas”

 

Luciano de Oliveira

Cláudia Tavares Alves

 

Foto disponível em: https://www.cancelloedarnonenews.it/elio-vittorini/

 

É possível dizer que um dos escritores “que melhor soube interpretar o momento histórico e político da cultura italiana nos primeiros anos do pós-guerra foi Elio Vittorini”.[1] Isso porque Vittorini (Siracusa, 1908 – Milão, 1966) foi um dos protagonistas do ambiente cultural italiano entre as décadas de 1930 e 1950. Criticava a burguesia, por exemplo, através de personagens que representavam figuras políticas problemáticas, como em Il garofano rosso [O cravo vermelho] (1948), ou descrevendo a vida em um bairro operário, como em Erica e i suoi fratelli [Érica e os seus irmãos] (1956), ambos romances que circularam inicialmente em periódicos. Em 1945, publicou Uomini e no [Homens e não], romance dedicado ao tema da guerra e da Resistência. Com a queda do fascismo, Vittorini se envolveria ainda com a militância comunista e com um intenso trabalho pela renovação cultural italiana, o que pode ser visto em revistas como Il Politecnico e Il Menabò, em colaboração com a editora Einaudi. O escritor foi também tradutor, a partir da busca por uma experiência internacional, o que possibilitou a publicação de Americana (1942), importante antologia de escritores estadunidenses, como Edgar Allan Poe.[2] Conquistar novas fronteiras, olhando para a tradição democrática americana, era uma forma de eliminar as restrições impostas pelo fascismo e dar novo fôlego à tradição literária italiana.

Sua obra prima, Conversazione in Sicilia [Conversa na Sicília], narração alegórico-autobiográfica em primeira pessoa, foi publicada em episódios na revista Letteratura entre abril de 1938 e abril de 1939. Finalmente, quando reunida em um único volume, recebeu inicialmente o título de Nome e lacrime [Nome e lágrimas], em 1941, ao ser publicada pela editora Parenti; no mesmo ano, foi republicada pela editora Bompiani, com seu título definitivo[3]. Nessa obra, o narrador Silvestro, jovem intelectual que representaria o próprio Vittorini, volta à Sicília, vindo de Milão, para reencontrar sua mãe. O estilo empregado, em uma prosa quase lírica, evoca a ideia de fuga da realidade. Entretanto, durante sua viagem, o personagem reflete sobre a situação da Itália e das regiões mais marginalizadas ao final do regime, assim como sobre o seu papel político.[4]

O conto “Nome e lacrime”, cuja tradução para o português é apresentada aqui,[5] foi publicado pela primeira vez em 31 de outubro de 1939, na revista Corrente, e integrou a primeira edição homônima do livro, em 1941. É possível reconhecer, na escrita de Vittorini, referências aos tempos de repressão fascista. Alguns exemplos dessa afirmação ocorrem em trechos como a pergunta feita pelo guarda ao protagonista, buscando saber se este último estava escrevendo alguma mensagem de enaltecimento ou protesto (“Nenhum ‘Viva’? Nenhum ‘Abaixo’?”), ou ainda a menção ao Campo de Marte, região da Roma antiga dedicada a Marte, deus da guerra. Essa menção poderia também se relacionar ao famoso Champs de Mars, área próxima à Torre Eiffel, em Paris, que tradicionalmente servia a manobras da escola militar. Assim, apesar do tom misterioso que ronda a narrativa, percebemos que ela está relacionada à realidade mais imediata do escritor.

Boa leitura!

Nome e Lágrimas[6]

Eu estava escrevendo nas pedrinhas do jardim e já estava escuro havia algum tempo, com as luzes acesas em todas as janelas.

O guarda passou.

— O que o senhor está escrevendo? — ele me perguntou.

— Uma palavra — respondi.

Ele se inclinou para olhar, mas não viu.

— Que palavra? — perguntou de novo.

— Bem — eu disse. — É um nome.

Ele sacudiu as suas chaves.

— Nenhum “Viva”? Nenhum “Abaixo”?

— Não, não! — eu exclamei.

E ri também.

— É um nome de pessoa — eu disse.

— De uma pessoa que o senhor está esperando? — ele perguntou.

— Sim — eu respondi. — Estou esperando.

O guarda então se afastou e eu voltei a escrever. Escrevi e encontrei a terra embaixo das pedrinhas e escavei, e escrevi, e a noite ficou mais escura.

 

O guarda voltou.

— Está escrevendo ainda? — ele disse.

— Sim — eu disse. — Escrevi um pouco mais.

— O que mais o senhor escreveu? — ele perguntou.

— Nada mais — eu respondi. — Nada além daquela palavra.

— O quê? — gritou o guarda. — Nada além daquele nome?

E de novo sacudiu as chaves, acendeu a lanterna para olhar.

— Estou vendo — ele disse. — Não é nada além daquele nome.

Levantou a lanterna e me encarou.

— Escrevi mais fundo — eu expliquei.

— Ah, é? — ele reagiu. — Se quiser continuar lhe dou uma enxada.

— Me dê — eu respondi.

O guarda me deu a enxada, novamente se afastou, e com a enxada eu escavei e escrevi o nome até ficar muito profundo na terra. Eu teria escrito, na verdade, até o carvão e o ferro, até os metais mais secretos de nomes antigos. Mas o guarda voltou outra vez e disse:

— Agora o senhor deve ir embora. Estamos fechando.

Eu saí das valas do nome.

— Está bem — respondi.

Larguei a enxada, enxuguei a testa, olhei para a cidade à minha volta, além das árvores escuras.

— Está bem — eu disse. — Está bem.

O guarda sorriu maliciosamente.

— Ela não veio, não é?

— Ela não veio — eu disse.

Mas logo depois perguntei:

— Quem não veio?

O guarda levantou a lanterna me encarando como antes.

— A pessoa que o senhor estava esperando — ele disse.

— Sim — eu disse — ela não veio.

Mas, de novo, logo depois, perguntei:

— Que pessoa?

— Diacho! — disse o guarda. — A pessoa do nome.

E ele sacudiu a lanterna, sacudiu as chaves, acrescentou:

— Se o senhor quiser esperar um pouco mais, não faça cerimônia.

— Não é isso que importa — eu disse. — Obrigado.

 

Mas eu não fui embora, fiquei, e o guarda ficou ali comigo, como se me fizesse companhia.

— Noite bonita! — ele disse.

— Bonita — eu disse.

 

Então ele deu alguns passos, com a lanterna na mão, em direção às árvores.

— Mas — ele disse — tem certeza de que ela não está lá?

Eu sabia que ela não podia vir, mesmo assim estremeci.

— Onde? — eu disse em voz baixa.

— Lá — o guarda disse. — Sentada no banco.

Folhas, com essas palavras, se moveram; uma mulher se levantou da escuridão e começou a caminhar sobre as pedrinhas. Eu fechei os olhos ao som dos seus passos.

— Ela tinha vindo, não? — disse o guarda.

Sem lhe responder, eu fui atrás daquela mulher.

— Estamos fechando — o guarda gritou. — Estamos fechando.

Gritando “estamos fechando”, ele se afastou por entre as árvores.

 

Eu fui atrás da mulher saindo do jardim, e depois pelas ruas da cidade.

Eu a segui atrás do que tinha sido o som dos seus passos sobre as pedrinhas.

Ou melhor: guiado pela recordação dos seus passos. E foi um caminhar longo, um seguir longo, ora entre a multidão, ora por calçadas solitárias, até que, pela primeira vez, levantei os olhos e a vi, uma transeunte, à luz da última loja.

Vi os seus cabelos, na verdade. Nada mais. E tive medo de perdê-la, comecei a correr.

A cidade, naquelas latitudes, se alternava em prados e casas altas, Campos de Marte obscuros e feiras de luzes, com o olho vermelho do gasogênio ao fundo.

Perguntei várias vezes:

— Ela passou por aqui?

Todos me respondiam que não sabiam.

Mas uma menina brincalhona se aproximou, andando rápido de patins e riu.

— Aaah! — ela riu. — Aposto que você está procurando a minha irmã.

— A sua irmã? — eu exclamei. — Como ela se chama?

— Não vou lhe dizer — a menina respondeu.

E de novo riu; fez, com os patins, um giro de dança da morte ao meu redor.

— Aaah! — ela riu.

— Me diga então onde ela está — eu pedi a ela.

— Aaah! — a menina riu. — Ela está num portão.

Ela rodopiou ao meu redor na sua dança da morte por mais um minuto, depois foi embora patinando na avenida sem fim, rindo.

— Ela está num portão — gritou de longe, rindo.

 

Havia casais infames nos portões, mas eu cheguei em um que estava deserto e nu. O portão se abriu quando eu o empurrei, subi as escadas e comecei a ouvir alguém chorando.

— É ela que está chorando? — perguntei à zeladora.

A velha estava dormindo sentada no meio das escadas, com os seus panos de limpeza na mão, e acordou, olhou para mim.

— Não sei — ela respondeu. — Quer que chame o elevador?

Eu não quis, queria ir até aquele choro, e continuei subindo as escadas dentre as janelas escuras e escancaradas. Cheguei finalmente aonde estava o choro: atrás de uma porta branca. Entrei e estava próximo dela, acendi a luz.

Mas não vi ninguém no cômodo, nem ouvi mais nada. Porém, sobre o sofá, estava o lenço das suas lágrimas.

 

[1] VECCE, Carlo. Piccola Storia della Letteratura Italiana. Napoli: Liguori Editore, 2009, p. 512. Tradução nossa.

[2] ANSELMI, Gian Mario. Profilo storico della letteratura italiana. 4ª ed. Milano: Sansoni, 2008, p. 365.

[3] BRIGATTI, Virna. “Vittorini, Elio” in Dizionario Biografico degli Italiani, v. 99, 2020. Disponível em: https://www.treccani.it/enciclopedia/elio-vittorini_%28Dizionario-Biografico%29/. Acesso em: 4 jun. 2021.

[4] BATTISTINI, Andrea. (Org.) Letteratura Italiana: Dal Settecento ai nostri giorni. Bologna: Società editrice il Mulino, 2014, p. 468.

[5] Tradução realizada no âmbito das atividades da disciplina “Prática de Tradução”, ministrada entre fevereiro e maio de 2021, sob supervisão da Profa. Cláudia Tavares Alves, na Universidade Federal de Santa Catarina.

[6] Utilizou-se como referência para esta tradução a versão do conto publicada em LAHIRI, Jhumpa (org.). Racconti italiani. Milão: Ugo Guanda, 2019, pp. 33-36.

Herdeiras de Capitu? Personagens femininas silenciadas

No episódio “Herdeiras de Capitu? Personagens femininas silenciadas”, do podcast Oxigênio, a Lúcia Granja falou sobre alguns livros da literatura brasileira em que um narrador homem tenta omitir a voz de uma personagem feminina da trama. As vozes dessas mulheres, porém, conseguem escapar e se inserir nas obras, de diferentes maneiras. A Lúcia centrou a sua análise no romance Dom Casmurro (1899/1900), do Machado de Assis, mas também falou sobre como esse modelo de narrativa reaparece em São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, Um copo de cólera (1978), de Raduan Nassar e Hosana na sarjeta (2014), de Marcelo Mirisola. A Lúcia é professora e pesquisadora do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL da Unicamp. Ela pesquisa principalmente a obra do Machado de Assis; em especial, as crônicas desse escritor e as relações entre Literatura e Jornalismo na produção dele.

O modelo

 

Um homem e uma mulher formam um casal. Por algum motivo, acontece um conflito entre eles, e esse relacionamento acaba. O homem, depois, resolve contar esse conflito. Com isso, ele procura dar um novo significado para a própria vida e, ao mesmo tempo, silenciar, omitir, a voz da mulher em relação ao que aconteceu entre os dois. Mas, de alguma forma, a voz dessa mulher consegue escapar e aparecer na história…

Para a Lúcia Granja, esse seria um modelo de narrativa importante na literatura brasileira a partir do século XX. Ela identificou, em alguns dos nossos romances, narradores homens que, de formas diferentes, contaram suas histórias tentando silenciar as vozes femininas… E por que é o homem quem narra o conflito amoroso?

Uma coincidência?

 

Para sustentar sua análise, a Lúcia partiu de um dado empírico. Ela citou uma pesquisa, coordenada pela professora Regina Dalcastagnè, na qual foi observado (a partir de um exame extensivo de romances publicados entre 1990 e 2004) que os escritores brasileiros são, na sua maioria, brancos (90%), homens (70%) e moram no Rio de Janeiro (50%) ou em São Paulo (20%). [1]

Apesar de esses dados se referirem à literatura contemporânea, a Lúcia acredita que eles não dizem respeito apenas a esse período ou apenas ao contexto brasileiro. Ela também acredita que a adoção do ponto de vista masculino (pelo narrador que conta seu conflito amoroso) tem por trás a própria autoria masculina. Então, a pesquisa de Dalcastagnè sustentaria a ideia de que há uma relação entre a autoria e a criação de um relato ficcional autobiográfico que projeta dados evidentes da nossa sociedade. E que dados são esses?

Na nossa sociedade, a organização privada da família foi estruturada de maneira paternalista: existe um chefe de família responsável por organizar tudo que acontece nessa família, com dominação. Ou seja, há uma dominação masculina que impera no seio da família e, de certa maneira, também impera nas relações entre homem e mulher, por mais que elas tenham mudado ao longo do tempo. Mas como isso aparece nos romances analisados pela Lúcia?

“Capitu que entra”

 

Imagem de capa do livro Dom Casmurro e Machado de Assis (Divulgação da campanha “Machado de Assis Real”, feita pela Faculdade Zumbi dos Palmares)

 

O enredo de Dom Casmurro é bastante conhecido, mas, só para lembrar rapidinho: a história é narrada por um homem, o Bento Santiago (também chamado de Bentinho ou Dom Casmurro), que, quando já está mais velho, resolve escrever sobre a própria vida. Ele fala das dificuldades que teve para se casar com a sua vizinha Capitolina, a Capitu. E, depois do casamento, ele acha o próprio filho muito parecido com seu melhor amigo e desconfia que a Capitu o tenha traído.

Sem entrar na discussão sobre a culpa da Capitu (ela traiu ou não o marido?), a Lúcia considera que os ciúmes crescentes do Bentinho o levam a tomar decisões unilaterais. O Bentinho decide que o casal irá se separar, decide também exilar a Capitu na Suíça, enquanto ele finge para os seus contemporâneos que vai à Europa todos os anos para ver a família. E ele quer resolver tudo isso em silêncio. A Capitu pede explicações, que não vêm. Quando o Bentinho se nega a conversar com a Capitu sobre a suposta traição dela e já decide como vai ser a separação dos dois, como se dissesse “esse caso não é da sua conta”, ele estava silenciando a Capitu; ou seja, o silêncio dele impediu que ela se manifestasse naquela situação de crise no relacionamento deles.

No podcast, a Lúcia mostrou com mais detalhes como esse silenciamento acontece em um dos capítulos do livro, o 138, chamado “Capitu que entra”. No entanto, apesar do silenciamento imposto com sucesso nessa cena do capítulo 138, a voz da Capitu, ao longo do livro, aparece (de forma inclusive poderosa) nas dúvidas que o Bentinho narrador deixa escapar, quando se lembra do seu passado e conta a sua história. Ele – que decidiu, sozinho, exilar a Capitu – parece querer convencer o leitor de que foi traído, mas, ao mesmo tempo, parece que ele quer convencer a si próprio de que tomou a decisão correta. Através dessas dúvidas de um velho deprimido, casmurro, é como se a voz, a versão da Capitu, aparecesse no romance.

Madalena, Diadorim(na), a jornalista e Paulinha Denise

 

A Lúcia percebeu que esse modelo de Dom Casmurro, romance que ela escolheu como ponto de partida para sua análise, reaparece na literatura brasileira de diferentes formas. Por exemplo, no livro São Bernardo, escrito por Graciliano Ramos e publicado pela primeira vez em 1934, o narrador, Paulo Honório (assim como o Bentinho), quando está mais velho, decide escrever sobre a sua história. Ele conta as dificuldades que passou na vida e os meios (até ilegais e violentos) que usou para comprar a sua fazenda, chamada justamente São Bernardo. O Paulo Honório conta também sobre o seu casamento com a Madalena, que seria a mulher silenciada nessa narrativa. Os ciúmes e o machismo do personagem foram o tornando agressivo com a esposa, e a saída que Madalena encontrou ao silenciamento que progressivamente lhe era imposto foi o suicídio. A Lúcia considera que a Madalena respondeu com um silenciamento sobre o qual não se pode calar, já que, depois que uma pessoa se suicida, é preciso falar sobre isso, principalmente quando a opressão de um sujeito está no centro dessa decisão.

Fotografia de Graciliano Ramos em 1940 (Arquivo Nacional) e imagem de capa do livro São Bernardo

 

Em Grande Serão: Veredas, publicado em 1956 e escrito por João Guimarães Rosa, o silenciamento é mais complexo. Nesse livro, o ex-jagunço Riobaldo conta a história da sua vida para um senhor e fala bastante sobre o amor que sentia por outro jagunço, chamado Diadorim. Mas, perto do fim da narrativa, o Riobaldo revela para esse senhor que o Diadorim era, na verdade, uma mulher. O Riobaldo só descobre isso depois da morte do Diadorim, e o leitor só vai ficar sabendo disso no final do livro. Em primeiro lugar, o silenciamento aparece no amor entre Riobaldo e Diadorim, que não foi expresso, não foi realizado, ficou silenciado. Em segundo lugar, acontece um silenciamento da mulher, por vontade do pai de Diadorina e por obediência ou pela própria vontade da filha, que adota uma identidade de gênero masculina e passa sua vida toda como jagunço.

Imagem de capa do livro Grande Sertão: Veredas e Guimarães Rosa durante suas viagens pelo sertão em 1952 (Fotografia de Eugênio Silva, veiculada na revista O cruzeiro)

 

Mais de trinta anos depois, em 1978, o modelo do silenciamento feminino reaparece em Um copo de cólera, de Raduan Nassar, novela que é centrada no relato de um encontro e de uma briga de um casal; ele, o dono de uma chácara (onde vive mais isolado da sociedade), e ela, uma jornalista. Nos primeiros seis capítulos desse livro, tudo é contado pela voz masculina, mas, no sétimo e último capítulo, a história começa a ser recontada, aparentemente, pela voz feminina. E é possível notar muitas diferenças entre as duas versões. Por exemplo: o homem diz que o sol estava se pondo. A mulher fala que a tarde já estava escura. Ele conta que, quando chegou em casa, era aguardado pela mulher. Já ela diz que ele que estava à espera dela.

Versão masculina: E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir o portão pra que eu entrasse com o carro, e logo que saí da garagem subimos juntos a escada pro terraço, e assim que entramos nele abri as cortinas do centro e nos sentamos nas cadeiras de vime, ficando com nossos olhos voltados pro alto do lado oposto, lá onde o sol ia se pondo, e estávamos os dois em silêncio quando ela me perguntou “que que você tem?”, mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensamento solto na vermelhidão lá do poente, e só foi mesmo pela insistência da pergunta que respondi “você já jantou?”…

Versão feminina: E quando cheguei na casa dele lá no 27, estranhei que o portão estivesse ainda aberto, pois a tarde, fronteiriça, já avançava com o escuro, notando, ao descer do carro, uma atmosfera precoce se instalando entre os arbustos, me impressionando um pouco a gravidade negra e erecta dos ciprestes, e ali ao pé da escada notei também que a porta do terraço se encontrava escancarada, o que poderia parecer mais um sinal, redundante, quase ostensivo, de que ele estava à minha espera, embora o expediente servisse antes pra me lembrar que eu, mesmo atrasada, sempre viria, incapaz de dispensar as recompensas da visita, e eu de fato, pensativa, subi até o patamar no alto… [2]

Imagem de capa do livro Um copo de Cólera e Raduan Nassar em ato de apoio à presidenta Dilma Rousseff, no Palácio do Planalto (Fotografia de Antonio Cruz, Agência Brasil)

 

Por fim, em Hosana na sarjeta, um livro de Marcelo Mirisola publicado em 2014, também uma relação amorosa com um sujeito muito complicado leva uma mulher ao suicídio. O narrador, que é um escritor, conta – de uma forma bastante preconceituosa e cheia de julgamentos – o seu envolvimento amoroso com Paulinha Denise, uma menina da periferia de São Paulo, que, para ele, era brega, não instruída… No entanto, segundo o que ele tenta narrar, a relação entre os dois foi verdadeira. E a voz de Paulinha entra na narrativa por meio de um bilhete de suicídio, que passa a ser um núcleo muito importante no romance, um núcleo, inclusive, de transformação e de mudança do teor de reflexão desse sujeito.

Imagem de capa do livro Hosana na sarjeta e Marcelo Mirisola (fotografia de João Marcondes)

 

Enfim, essas narrativas têm uma “moldura” parecida, são todas histórias em que um narrador homem conta o seu conflito amoroso, tentando silenciar a voz feminina. Porém, as vozes das mulheres conseguem escapar e se infiltrar na narrativa, cada uma de uma forma diferente: seja nas dúvidas de Bentinho, seja nos tormentos que Paulo Honório e Riobaldo passam pelo resto da vida, seja por meio de um bilhete suicida ou até retomando a história.

Se você quiser ouvir essas reflexões com mais detalhes, em vozes femininas (a da Lúcia e a minha), confira o episódio “Herdeiras de Capitu? Personagens femininas silenciadas”, do podcast Oxigênio.

A série

“Leitura de Fôlego” é uma série do podcast de jornalismo e divulgação científica Oxigênio, produzido por alunos do Labjor-Unicamp e coordenado por Simone Pallone. Essa série sobre literatura aborda temas de pesquisa de quatro professores do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Além desse episódio sobre o silenciamento de personagens femininas na literatura brasileira, foram abordados os seguintes temas: livros licenciosos, ensaios e utopias. Aqui no “Marca Páginas”, já tem um post sobre os livros licenciosos, que, por conterem cenas de sexo (entre outros motivos), eram proibidos no Brasil dos séculos XVIII e XIX, mas que circularam bastante por aqui nessa época. Temos também um post sobre os ensaios, um tipo de texto que dá liberdade para o seu autor se mostrar, com suas dúvidas e imperfeições. Em breve, também vamos ter mais um texto, apresentando o episódio sobre utopias (e distopias).

Todos os programas da série estão integralmente transcritos na descrição dos episódios no site do Oxigênio, para que pessoas surdas ou com alguma deficiência auditiva possam ter acesso ao conteúdo. Os episódios podem ser acessados pelo site do Oxigênio, pelo site da Rádio e TV Unicamp, pelo canal no Youtube da TV Unicamp ou por agregadores como Google Podcasts e Spotify.

Notas

[1] Se quiser saber mais sobre essa pesquisa de Regina Dalcastagnè, acesse a entrevista que a pesquisadora deu em 2018 para a Revista Cult, chamada “Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro”.

[2] Trechos dos capítulos 1 e 7, ambos intiulados “A chegada”, do livro Um copo de cólera, na edição da Companhia das Letras.

 

O corpo (pré-)pós-humano de Buster Keaton

 
 
Quem é Buster Keaton?

 

Atualmente, cerca de um centenário após as suas maiores realizações, boa parte do público talvez não o conheça. Alguns talvez o reconheçam de algum pôster. Mas ele é um dos grandes nomes da história do cinema, valorizado – se não por multidões – por estudiosos e pesquisadores dos filmes.

A passagem do tempo é cruel, e contribui para essa crueldade o fato de Buster ter feito a parte mais importante de sua obra em um período anterior do cinema: o do cinema mudo ou silencioso. Porém, trata-se de um artista fundamental, um dos grandes nomes da comédia cinematográfica, que constitui, ao lado de Charles Chaplin e de Harold Lloyd, o que poderíamos chamar o triunvirato da comédia muda.

Joseph Frank Keaton nasceu no ano de 1895 e faleceu em 1966. Ainda criança, começou sua carreira nas artes, mais exatamente em 1899, como ator de vaudeville, trabalhando junto dos pais. O apelido “Buster” foi dado pelo ilusionista e mestre dos escapes Harry Houdini. [1] Sua carreira no cinema durou quase 50 anos. Começou em 1917, quando Buster foi parceiro de Roscoe “Fatty” Arbuckle, um dos astros da comédia da época. O auge criativo de Keaton ocorreu durante os anos 1920, nos curtas e longas-metragens silenciosos dirigidos ou codirigidos por ele. O pesquisador francês Jean-Philippe Tessé afirma ousadamente que a carreira de Buster teria durado somente de 1920 a 1929, justamente esse período mencionado, quando Keaton – que trabalhava em um estúdio próprio – possuía uma independência e um controle considerável sobre a sua obra. O que ocorreu depois? Em 1928, Buster assina um contrato com a grande companhia MGM, uma atitude da qual se arrependeria amargamente mais tarde. Após essa mudança, o cineasta perde o controle das suas obras: a produtora impõe atores, criadores de piadas, técnicos; impede-o de improvisar nas filmagens. Com isso, apesar de certo sucesso de público, Keaton entra em decadência, da qual nunca se recuperaria totalmente. [2] Entre os grandes momentos posteriores do ator, podemos citar a sua participação em Luzes da Ribalta (Limelight, 1952), de Charles Chaplin, único filme na história do cinema a trazer esses grandes nomes da comédia muda atuando juntos.

Buster Keaton, ao contrário de Chaplin – com seu sorriso e seu rosto mega expressivos –, atuava sempre com um rosto com uma expressão relativamente neutra, o que lhe valeu alguns apelidos, como “Stoneface” (“cara de pedra”) ou “O homem que nunca ri”. Essa acabou sendo uma de suas marcas, o que não quer dizer que a sua atuação não envolva ou não produza emoção. Essa emoção, porém, passa por outros caminhos, principalmente por seus gestos e por seu comportamento corporal:

Keaton, ex-acrobata e ator mirim de vaudeville, diferia de Chaplin no sentido de que sua graça costumava vir do contraste entre seu rosto eternamente inexpressivo e as incríveis façanhas atléticas que seus personagens precisavam fazer para escapar do perigo. Com sua execução cuidadosa e desenvolta de sequências cada vez mais complexas, tão perigosas quanto espetaculares, Keaton aproximava a comédia física da poesia. [3]

 

Buster “Stoneface” (“Cara de pedra”)

 

Falando no corpo de Buster, ele possui algumas outras características muito importantes. A meu ver (e de um jeito surpreendente), essas características se aproximariam de alguns elementos de um termo que representa, ao mesmo tempo, uma situação contemporânea e uma teoria que a explica: o pós-humano ou pós-humanismo. Foi o que procurei discutir em um artigo de 2018, “Buster Keaton: um corpo pós-humano?”.

 

Mas o que seria pós-humano?

 

Como dito acima, o termo pós-humano se refere a dois elementos relacionados, mas distintos. Primeiramente, haveria uma condição pós-humana; ela seria resultado de um processo histórico pelo qual a humanidade está passando, que não está concluído, e cujas consequências ainda não conhecemos completamente. Entre as mudanças que já ocorreram, temos o desenvolvimento em áreas como a genética – o que permitiria uma manipulação praticamente artificial dos organismos vivos – e a cibernética, com o surgimento de redes informáticas cada vez mais complexas. Nesse contexto, inteligências artificiais aproximam-se das humanas e estabelecem contatos cada vez mais complexos com as pessoas. Além disso, há uma diluição das fronteiras entre o homem e a máquina, com o desenvolvimento de próteses e conexões as mais diversas, que muitas vezes se tornam parte do próprio corpo dos indivíduos. A pesquisadora brasileira Lucia Santaella comenta essa questão:

O potencial para as combinações entre vida artificial, robótica, redes neurais e manipulação genética é tamanho que nos leva a pensar que estamos nos aproximando de um tempo em que a distinção entre vida natural e artificial não terá mais onde se balizar. De fato, tudo parece indicar que muitas funções vitais serão replicáveis maquinicamente assim como muitas máquinas adquirirão qualidades vitais. O efeito conjunto de todos esses desenvolvimentos tem recebido o nome de pós-humanismo. Sob essa denominação, as distinções entre o artificial e o natural, o real e o simulado, o orgânico e o mecânico têm sido levadas ao questionamento. [4]

Essa condição já foi retratada em diferentes tipos de artes, como na literatura e no cinema. É notável a figura do ciborgue, ser formado parcialmente por matéria orgânica e parcialmente por componentes maquínicos – como O Exterminador do Futuro, do filme homônimo de James Cameron (The Terminator, 1984). Em alguns casos, seres-máquinas substituem quase que inteiramente os seres humanos, e essa semelhança pode gerar sérios questionamentos éticos e morais, como no filme Blade Runner, de 1982, dirigido por Ridley Scott.

 

“Hasta la vista, baby”: uma máquina com elementos orgânicos

 

Além de indicar essa situação, o pós-humano representa um campo de pesquisas, que reúne estudiosos de áreas diversas em torno da reflexão sobre as novas articulações e existências das pessoas. Essas discussões podem levar muitas vezes a uma problematização da posição central do ser humano nas pesquisas, que leva a uma localização mais dinâmica desse ser, em comunicação com outros elementos e seres, como animais, objetos, máquinas e redes de informação.

 

E o que Buster tem a ver com isso?

 

Deve ficar claro que a relação de Buster com esse conceito é muito diferente da que pode ser observada nos filmes citados acima. O cinema de Buster passa longe da ficção científica; ele não é ciborgue nem androide. A sua relação com o pós-humano pode ser reconhecida principalmente devido às manifestações e articulações diferenciadas do seu corpo, devido a um estatuto incomum desse corpo, que muitas vezes ultrapassa os limites do humano e se identifica com os seres não humanos, principalmente, com as máquinas. Em meu artigo, um tanto presunçosamente, divido essas manifestações em três grupos: corpo-com, corpo-entre e corpo-além.

 

Corpo-com

 

Na primeira articulação, corpo-com, enfatizo as junções ou os acoplamentos do corpo de Keaton com objetos ou máquinas, principalmente com as últimas. O melhor exemplo se encontra naquele que é talvez o seu filme mais conhecido: A general (The general), de 1926. Nessa obra – que se passa no período da Guerra civil entre norte e sul dos Estados Unidos – Buster representa um condutor de uma locomotiva (chamada “A General”) e passa por várias aventuras em seu meio de transporte, nas quais atua no conflito e salva o seu par romântico, Annabelle. Nesta discussão, mais importante que o enredo, é justamente a relação de Buster com o seu trem, uma relação muito particular. Pode-se dizer, inclusive, que haveria um amor nessa relação entre o personagem e a locomotiva. Smith [5] afirma que haveria um triângulo amoroso, entre Keaton, A General e Annabelle. E essa afirmação não é exagerada: o relacionamento entre Keaton e a General é de proximidade, de diálogo, de harmonia. Para o pesquisador britânico Alex Clayton, Keaton demonstra nesse filme como uma harmonia positiva entre homem e máquina pode conduzir à comédia. Na visão do autor, “o herói de Keaton deve atuar em uníssono com a locomotiva a vapor […] A força do trem é aliada à sua engenhosidade, a velocidade do trem à sua destreza”. [6] Aqui, trata-se de uma união bastante produtiva entre os corpos, que aproveita o melhor do que cada um tem a oferecer. Nessa simbiose, cada um dos componentes ganha algo: a locomotiva consegue sua energia e consegue ultrapassar obstáculos pelo caminho graças aos esforços de Keaton, e ele ganha uma velocidade impossível para seu corpo sozinho. Em alguns momentos, podemos até considerar que não há dois elementos, mas uma junção, um homem-máquina, e o filme aponta para essa questão em uma sequência: Buster, sobre o teto da locomotiva, adota uma postura rígida, firme, estática, um pouco inclinada para a frente, postura na qual observa o horizonte adiante. Esse corpo, devido à sua gestualidade, e graças ao enquadramento lateral da filmagem, torna-se quase que uma extensão da locomotiva, ou um prolongamento de sua estrutura – Keaton-locomotiva. Deve-se enfatizar, porém, que não há uma negação total de Buster. Como apontado acima, temos uma relação de harmonia, em que ambas as partes trazem as suas particularidades positivas para a obtenção de um resultado (que as favorece). Nesse sentido, e concordando com Clayton, [7] o corpo de Keaton não constituiria um anexo robótico estúpido, sem mente.

 

Buster e a locomotiva: dois corpos em um?

 

Corpo-entre

 

Na segunda articulação, corpo-entre, destaco determinadas manifestações de Keaton que diluem as fronteiras, principalmente as relacionadas à sua identidade. Determinadas manifestações de seu corpo mostram que ele não afirma uma verdade ou uma essência imutável; os sentidos que esse corpo produz dependem das suas próprias articulações, que podem ser inúmeras. Como aponta Clayton [8], parece haver certa indeterminação na relação de Buster com o mundo social: o seu personagem parece muitas vezes alheio às divisões que constituem o mundo; como as suas ações se orientam frequentemente em função de um olhar mais físico, espacial, com relação ao mundo, outras formas de hierarquia não parecem fazer tanto sentido para Buster. Os possíveis rótulos e “essências” ligados ao personagem são muitas vezes frutos de uma disposição particular do seu corpo no tempo e no espaço, o que implica, obviamente, que esses rótulos podem mudar facilmente.

Como exemplo dessa articulação do corpo, temos o filme The Paleface, de 1922, que retrata a relação de Buster com indígenas que defendiam suas terras das investidas de empresários do petróleo. Em determinada cena, Buster, vestido com uma indumentária indígena, é rendido por um “homem branco”. Keaton é obrigado a trocar de roupas com ele, a fim de que o homem passe despercebido pelos índios. Buster, agora vestido como homem “da cidade”, é observado à distância pelos índios. Eles não o reconhecem e acabam o atacando. Conforme argumenta Clayton, “à distância, o corpo é despojado da personalidade que ele encarna”. [9] E o corpo de Keaton é, de fato, muitas vezes enquadrado à distância em seus filmes, em planos gerais e planos de conjunto, os mais distantes na classificação dos enquadramentos de câmera. Pode-se considerar que, nos seus filmes, com o uso dessa composição, é a “externalidade” do seu corpo que confere a identidade a ele; “externalidade” essa que pode ser moldada, modificada ou mesmo distorcida. Essa questão da distância do corpo leva à criação de uma presença forte de construções geométricas e mesmo abstratas nos planos de Keaton: de algum modo, a sua relação mais espacial com o mundo o liberta das contingências da vida cotidiana, da vida em sociedade. Não há muitas fronteiras, quando as principais divisões são as que delimitam o espaço.

 

Imagem do filme “The Paleface”, de 1922.

 

Corpo-além   

 

O último tipo de manifestação corporal é o corpo-além. Ele se refere, principalmente, aos momentos em que Keaton ultrapassa as suas limitações mais humanas e chega a outro patamar. A tendência à abstração, acima comentada, parece já apontar para esse aspecto, pois indica uma superação das limitações e das contingências pelo corpo de Keaton. Vejamos dois momentos, bem distintos, dessa manifestação corporal.

Jean-Philippe Tessé discute um exemplo significativo, da fase em que Keaton ainda trabalhava com Roscoe “Fatty” Arbuckle e chegava a estampar alguns poucos sorrisos diante das câmeras: The Garage, de 1920:

Prisioneiro de uma placa giratória [para veículos, que estava em funcionamento abaixo dele], Keaton parece, para escapar dela, correr mais rápido do que pode. Ele está além da circunstância (a placa giratória), já no absoluto: para sair da armadilha, ele não deve ir mais rápido que a armadilha, mas mais rápido que a rapidez, exceder seu próprio corpo. [10]

 

Buster Keaton em cima da placa giratória

 

O corpo de Keaton parece ir além, além das circunstâncias imediatas, além do instante. Poderíamos dizer: parece ir além do seu próprio corpo. Até chegar ao ponto de se multiplicar em vários corpos, vários Keatons? Sim, isso ocorreu de fato, no filme The Playhouse¸ de 1921. Nessa obra, Keaton se transforma em várias pessoas, e ao mesmo tempo. Acompanhamos, em uma cena, um dia de apresentações em um teatro de variedades, mas há um detalhe importante: todas as pessoas que aparecem na cena são Buster Keaton. Todas. Maestro, músicos, dançarinos, contrarregra, criança, senhora, senhor, todos são representados por Buster, que muitas vezes aparece como mais de uma pessoa no mesmo instante, graças a trucagens, efeitos especiais. O corpo de Keaton é o corpo de todos; mesmo que a cena, narrativamente, seja motivada por um sonho do personagem, seu efeito não deixa de impactar.

 

Busters Keatons 1

 

Busters Keatons 2

 

Busters Keatons 3

 

Pré-pós

 

Após a observação desses exemplos, alguns dos discutidos em meu artigo – que convido você à leitura, com outros exemplos e outras discussões – vemos que o corpo de Keaton se manifesta e age no mundo em uma abertura contínua às possibilidades, às construções no espaço, em diálogo constante com outros corpos, muitas vezes corpos não humanos.

O corpo de Keaton, cronologicamente, é anterior ao pós-humano enquanto condição histórica. Ele seria, nesse sentido, algo como um corpo “pré-pós-humano”. Ainda que ele seja anterior, essa aproximação entre os dois elementos, o corpo de Keaton e o pós-humano, é, a meu ver, bastante frutífera e produtiva para discussões e questionamentos. Por um lado, o campo do pós-humano pode colaborar com algumas novas chaves de leitura para a obra de Keaton. Por outro lado, a obra desse ator-diretor – marcada pela presença de um corpo que dialoga frequentemente com elementos não humanos – aponta para possíveis raízes, manifestações e caminhos dos corpos pós-humanos, em um tempo em que eles já não parecem mais restritos ao gênero da ficção científica.

Talvez essa passagem por um gênero mais risonho, por meio do rosto daquele que nunca ri, ofereça novos olhares para todos esses corpos.

 

Referências

 

[1] Para mais informações sobre a carreira de Buster, confira a página 75 de História do cinema: dos clássicos mudos ao cinema moderno, de Mark Cousins. O livro foi traduzido para o português por Cecília Camargo Bartalotti e publicado pela editora Martins Fontes, em 2013. Veja também o capítulo “A General”, de I. H. Smith, de Tudo sobre cinema. O livro foi organizado por P. Kemp, e a tradução para o português foi publicada pela editora Sextante, em 2011.

[2] Trecho do livro Le burlesque, de Jean-Philippe Tessé, publicado em Paris, no ano de 2007, pela Cahiers du cinema. O trecho citado está nas páginas 25 e 26.

[3] Trecho da página 69 do capítulo “A comédia muda”, escrito por R. Hunter. Esse capítulo faz parte do livro Tudo sobre cinema, mencionado na nota 1.

[4] Trecho da página 199 do livro Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibernética, de Lucia Santaella. A primeira edição do livro é de 2003, e o trecho citado é da segunda edição, publicada em 2004.

[5] Trecho da página 66 do capítulo “A General”, mencionado na nota 1.

[6] Trecho da página 96 do livro The body in Hollywood Slapstick, escrito por Alex Clayton e publicado em 2007 pela editora McFarland & Company, da Carolina do Norte.

[7] Trecho da página 98 do livro mencionado na nota anterior.

[8] Trecho da página 56 do livro mencionado na nota anterior.

[9] Trecho da página 60 do livro mencionado na nota anterior.

[10] Trecho da página 19 do livro de Jean-Philippe Tessé, mencionado na nota 2.

Ensaio em cena

No episódio “O ensaio em cena ou o espetáculo da dúvida”, do Podcast Oxigênio, o Alexandre Soares Carneiro falou sobre o ensaio, um tipo de texto muito livre, que pode ter várias formas e tratar de diferentes assuntos. O ensaio também dá espaço para quem o escreve mostrar suas dúvidas e seus pensamentos, mostrar a si mesmo sem enfeite nem edição. O Alexandre pesquisa assuntos como Literatura Medieval, Renascimento e, há mais de dez anos, ele estuda o nascimento e as transformações do gênero ensaístico. Ele é professor e pesquisador do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp.

Ensaiando uma definição
Algumas capas de livros de ensaios…

Michel de Montaigne, George Orwell, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Luis Borges, Antonio Candido, Robert Louis Stevenson, Pier Paolo Pasolini, Emil Cioran… Escritores muito diferentes, como os dessa pequena lista, escreveram ensaios igualmente muito diferentes. E toda essa diferença já mostra que definir “ensaios”, de forma geral, não é uma tarefa simples. O Alexandre Carneiro, porém, ensaiou uma definição.

Para o pesquisador, apesar de poder assumir variados aspectos, o ensaio tende a incorporar as dúvidas do processo de reflexão, o que se relaciona à característica dialógica do ensaio, ou seja, à sua aproximação a um tom de conversa. Normalmente, as conversas não são sistemáticas e elas dão a liberdade para a gente ir testando ideias, até mesmo aquelas insólitas, estranhas…     

“Podemos identificar a tal liberdade do ensaio no fato de o ensaísta expressar não apenas o resultado final, mas um pouco do processo irregular do pensamento, desde a formulação de um problema, uma dúvida, um paradoxo que ele observou, passando pelas hipóteses iniciais, as hesitações, desvios, correções.” (Alexandre Soares Carneiro)

Então, apesar de não ser fácil definir um ensaio, muitas vezes encontramos nesses textos algumas características em comum: pessoalidade, liberdade e um esforço de descrever um problema, de uma forma necessariamente não sistemática e em um tom parecido com o de uma conversa.

Um livro de boa-fé

Mais fácil do que definir um ensaio é dizer quando essa palavra passou a ser usada para se referir a esse tipo de texto. O francês Michel de Montaigne (1533-1592) teria inaugurado o uso dessa palavra para tal fim ao dar o título Ensaios para uma série de 3 livros que ele foi escrevendo e reescrevendo desde 1571 até a sua morte. A palavra “ensaios” – que nos remete a tentativas, esboços – revelava a modéstia do escritor, que começou com reflexões breves a partir de leituras que fazia e depois foi se sentindo mais à vontade para falar sobre si mesmo, sobre a própria escrita, sobre acontecimentos de sua época… Apenas para dar uma ideia da diversidade de temas abordados por Montaigne, estes são alguns dos títulos de seus ensaios:

Somente depois da morte podemos julgar se fomos felizes ou infelizes; De como filosofar é aprender a morrer; Da amizade; Dos canibais; Como uma mesma coisa nos faz rir e chorar; Da solidão; Dos odores; Da incoerência de nossas ações; Da embriaguez; Dos polegares; A covardia é mãe da crueldade; Dos correios; Da inconveniência de se fingir de doente.

Retrato de Michel de Montaigne (pintor desconhecido). Esse escritor francês, autor dos livros Ensaios, é a grande referência para o gênero ensaístico.

 

A nota “Ao leitor”, que Montaigne escreveu como abertura de seus ensaios, mesmo que com um quê de dissimulação (para conquistar a generosidade dos leitores), mostra as motivações despretensiosas do escritor, que aproximam os seus textos a uma conversa entre amigos.

Eis aqui, leitor, um livro de boa-fé.

Adverte-o ele de início que só o escrevi para mim mesmo, e alguns íntimos, sem me preocupar com o interesse que poderia ter para ti, nem pensar na posteridade. Tão ambiciosos objetivos estão acima de minhas forças. Voltei-o em particular a meus parentes e amigos, e isso a fim de que, quando eu não for mais deste mundo (o que em breve acontecerá), possam nele encontrar alguns traços de meu caráter e de minhas ideias e assim conservem mais inteiro e vivo o conhecimento que de mim tiveram. Se houvesse almejado os favores do mundo, ter-me-ia enfeitado e me apresentaria sob uma forma mais cuidada, de modo a produzir melhor efeito. Prefiro, porém, que me vejam na minha simplicidade natural, sem artifício de nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto. Vivos se exibirão meus defeitos e todos me verão na minha ingenuidade física e moral, pelo menos enquanto o permitir a conveniência. Se tivesse nascido entre essa gente de quem se diz viver ainda na doce liberdade das primitivas leis da natureza, assegure-te que de bom grado me pintaria por inteiro e nu. [1]

Folha de rosto do terceiro livro dos Ensaios (1588).

 

Essa aproximação entre os ensaios e uma conversa mais íntima, entre amigos, pode ser relacionada a um acontecimento da vida do ensaísta francês…

Porque era ele, porque era eu

Montaigne foi muito amigo do Étienne de La Boétie, que ficou conhecido por ter escrito, ainda na adolescência, o Discurso da servidão voluntária. Só que, com 33 anos, o La Boétie ficou doente e morreu. Isso abalou muito o Montaigne. E o crítico literário suíço Jean Starobinski fala que, na falta de La Boétie, os Ensaios seriam uma tentativa do Montaigne de estender esse diálogo que ele tinha com o amigo.

Inclusive, em um trecho do documentário Chico Buarque – Cinema, de 2006, dirigido por Roberto de Oliveira, o músico e escritor brasileiro, ao comentar sua música “Porque era ela, porque era eu”, fala dessa história famosa da amizade entre os dois franceses:

Desde criança, todo mundo lá [na França] sabe quem é o Montaigne, e essa frase dele [“porque era ele, porque era eu”] se refere à amizade dele com o La Boétie, que era um outro escritor, foi um grande amigo dele de juventude. E o Montaigne […] escrevia ensaios e, ao longo da vida, ele foi reescrevendo alguns ensaios; eles eram publicados e republicados e tal. E uma vez ele falou isso. Perguntavam a razão dessa grande amizade que ele tinha tido com esse outro escritor, o La Boétie, que morreu jovem. E ele falava que não sabia explicar. […] Eu gostava dele e não sabia justificar porque gostava dele e ponto. Depois, mais adiante, quinze anos depois, ele, revendo esse ensaio dele, escreveu ao lado da página assim “eu gostava dele, porque era ele”, ponto. Aí foi impresso na nova edição dos ensaios, “eu gostava dele, porque era ele” e ponto. Quinze anos depois, ele olhou essa frase e anotou de novo, num canto da página, “eu gostava dele, porque era ele e porque era eu” e ponto.

O documentário está disponível no canal da produtora do filme, RWR. O trecho citado acima pode ser assistido por meio deste link.

Documentário Chico Buarque – Cinema, 2006.

 

No episódio de podcast “O ensaio em cena ou o espetáculo da dúvida”, não falamos sobre esse trechinho da fala do Chico. Porém, a conversa com o professor Alexandre não parou nesse ponto da amizade entre Montaigne e La Boétie.

A conversa continua…

Mas não aqui no blog. Se você está gostando desse assunto, ouça o que mais rolou nessa conversa. Só para dar um gostinho: lá, o Alexandre falou sobre o ensaio “Do pedantismo”, no qual o Montaigne discute a ideia de que a educação pode ajudar, mas pode também atrapalhar o nosso julgamento. Além disso, para o ensaísta, às vezes é mais importante como a gente sabe do que quanto a gente sabe…

[Alguns] Sabem dizer “como observa Cícero”, “eis o que fazia Platão”, “são palavras de Aristóteles”, mas que dizemos nós próprios? Que pensamos? Que fazemos? Um papagaio poderia substituir-nos. […] E conheço um [sujeito] que ao ser indagado acerca do que lhe cumpre saber, vai logo buscar um livro para mostrar e jamais ousaria dizer que tem o traseiro sarnento sem previamente procurar em dicionário a significação de sarna e de traseiro. (Do pedantismo, Michel de Montaigne) [2]

A gente ainda conversou sobre o ensaísmo brasileiro (que é mais importante do que parece) e sobre a relação entre o ensaísmo e a crítica literária brasileira. Por fim, o Alexandre deu algumas dicas de ensaístas de várias épocas e lugares para quem se animou para ler esse tipo de texto.

A série

“Leitura de Fôlego” é uma série do podcast de jornalismo e divulgação científica Oxigênio, produzido por alunos do Labjor-Unicamp e coordenado por Simone Pallone. Essa série sobre literatura aborda temas de pesquisa de quatro professores do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Além desse episódio sobre os ensaios, foram abordados os seguintes temas: livros licenciosos, silenciamento de personagens femininas na literatura brasileira e utopias. Aqui no “Marca Páginas” já temos um post sobre os livros licenciosos, que, por conterem cenas de sexo (entre outros motivos), eram proibidos no Brasil dos séculos XVIII e XIX, mas que circularam bastante nessa época. Em breve, também vamos ter mais textos, apresentando os temas dos outros dois episódios.

Todos os programas da série estão integralmente transcritos na descrição dos episódios no site do Oxigênio, para que pessoas surdas ou com alguma deficiência auditiva possam ter acesso ao conteúdo. Os episódios podem ser acessados pelo site do Oxigênio, pelo site da Rádio e TV Unicamp, pelo canal no Youtube da TV Unicamp ou por agregadores, como Google Podcasts e Spotify.

Referências

[1] Tanto os títulos dos ensaios quanto essa nota “Ao leitor” foram retirados da edição dos Ensaios publicada no Brasil pela Editora 34, em 2016. A tradução é do escritor Sérgio Milliet.

[2] Esse trecho está nas páginas 174 e 175 da edição citada na nota anterior.