Beyoncé: uma aproximação ao feminismo e à literatura negra, por Cláudia Alves e Danielle Lima

Está disponível desde o mês passado, na Netflix, o documentário Homecoming (2019), dirigido e estrelado por Beyoncé Knowles-Carter. O filme, que intercala cenas de dois momentos diversos do mesmo evento, é registro de como foi a concepção e a execução do show que a cantora realizou no festival norte-americano Coachella, em 2018. Beyoncé foi a primeira mulher negra a se apresentar como atração principal do festival, um dos mais prestigiados do mundo.

Diante da oportunidade, ela soube aproveitar muito bem a ocasião para conjugar sua música e as pautas identitárias com as quais ela está envolvida. Durante todo o show, ela é acompanhada por uma banda de estudantes universitários, isto é, um tipo de banda bastante tradicional nas universidades dos Estados Unidos em que os estudantes tocam e dançam em festivais e competições. Mas a banda universitária concebida por Beyoncé para lhe acompanhar possuía uma particularidade: todos os integrantes eram estudantes negros.

Cena de Homecoming (2019)

Nos trechos do documentário em que a cantora conta como chegou a tal ideia e como foram as seleções para a montagem do espetáculo, Beyoncé explica que sua intenção era dar destaque ao fato de que jovens negros também podem ocupar esses lugares, tanto o palco de um show monumental em um grande festival de música, quanto universidades – e, obviamente, quaisquer outros espaços que eles quiserem. Ela declara, em determinado momento do filme: “Eu queria que todas as pessoas que já foram rejeitadas por causa da sua aparência se sentissem naquele palco”.

Apesar de essas questões serem centrais em Homecoming, não é novidade o envolvimento da cantora com pautas identitárias. Em 2016, por exemplo, seu álbum Lemonade tornou-se um hino da música pop. Partindo de experiências pessoais recentemente vividas por ela, Beyoncé compôs e cantou canções que exaltavam a liberdade e a força das mulheres. Sua mensagem chegou de fato a esse público, gerando uma onda de admiração por seu trabalho e reforçando a ideia de que Beyoncé é um fenômeno. Em 2017, ao participar de outro grande evento americano, o Super Bowl, a cantora levantou polêmicas por causa da performance do single Formation. Durante o show, denunciou a truculência policial contra as vidas negras, fazendo referência inclusive ao famoso partido militante americano The Black Panthers[1]. Outro momento marcante de sua recente carreira foi o lançamento da canção “Apes**t”, cujo clipe, divulgado nas redes digitais em 2018, mostra a cantora com o seu marido, o cantor e compositor Jay-Z, e bailarinas e bailarinos negros, no Museu do Louvre, na França. A crítica que perpassa todo o vídeo é em relação a esse local, expoente máximo das artes plásticas no mundo, onde se vê muito pouco da arte que representa ou é feita por negras e negros, escancarando assim para o mundo inteiro (o vídeo teve milhares de visualizações em pouquíssimo tempo) mais uma das desigualdades que existe entre pessoas brancas e negras.

Cena de “Apes**t” (2018), gravado no Museu do Louvre

Ou seja, com o passar dos anos fica cada vez mais explícito como existe um aspecto político e empoderador de pessoas negras que norteia os trabalhos que Beyoncé vem desenvolvendo. Além de compor vídeos e músicas que criticam diretamente a desigualdade de gênero e raça, ela está empenhada em mostrar ainda como é possível que pessoas negras cheguem a posições nas quais estamos acostumadas a ver somente pessoas brancas. O próprio fato de Beyoncé ser uma mulher negra e ter chegado aonde chegou já é algo que estimula e mostra, de alguma forma, que é possível que outras mulheres negras também cheguem aonde elas quiserem chegar; afinal, até pouco tempo atrás, elas nunca tinham sequer visto uma mulher negra ocupando esses lugares.

É preciso, entretanto, fazer a ressalva de que Beyoncé é parte de uma engrenagem cultural em que bilhões de dólares circulam diariamente. Isto é, a cantora é também uma grande marca que gera lucros, o que estimula o consumo de mercadorias, a exploração de mão de obra e o aumento das desigualdades sociais. Nesse sentido, critica-se a capitalização que ela acaba operando em cima das pautas identitárias que ela abraça. A teórica feminista bell hooks, em seu texto “Moving beyond the pain”[2], de 2016, já alertava para esse aspecto da obra de Beyoncé quando da explosão do álbum Lemonade. Para ela, “ganhar dinheiro não tem cor” e o que a cantora estaria fazendo seria tratar corpos negros como mercadorias, o que, historicamente, não é nem um pouco revolucionário. Além disso, a intelectual critica o feminismo de Beyoncé quando ela apenas defende direitos iguais para homens e mulheres ao invés de lutar pelo fim da dominação patriarcal e capitalista. Em outras palavras, a autora defende que é preciso problematizar a luta de gênero e raça que Beyoncé pratica se essa luta não quiser alterar o verdadeiro poder do patriarcado, o qual sustenta e perpetua as desigualdades.

A discussão proposta por bell hooks parte de questões que estão sendo debatidas pelo feminismo há algum tempo, sobretudo pelo feminismo negro. Seguindo tal viés teórico, o trabalho de Beyoncé acabaria por representar, em geral, um empoderamento da mulher negra que é vazio diante da dominação patriarcal e capitalista. Nesse sentido, hooks chama atenção para o fato de que gênero, cor, classe social e sexualidade são particularidades que precisam ser interseccionadas quando falarmos em feminismo. Essa questão extremamente importante tem sido pensada por diversas autoras negras e feministas, como Angela Davis e Audre Lorde. Elas também defendem, em linhas gerais, que só a partir do reconhecimento dessas particularidades é que será possível dizer que o feminismo é uma luta pela igualdade de todas as mulheres.

A intenção desse post é, por sua vez, além de contextualizar minimamente todas essas questões, iniciar uma série de posts sobre feminismo negro e sugerir leituras para quem quiser se aprofundar no tema. E é a própria Beyoncé que nos dá inspiração para começar essa lista de sugestões, a partir de algumas citações[3] de escritoras negras e feministas que aparecem ao longo de seu documentário. Apesar das inúmeras críticas que podem ser feitas à cantora, é preciso reconhecer que seu trabalho de representatividade e de divulgação da cultura negra tem uma potencialidade imensa. Que tal aproveitar esse incentivo para lermos mais escritoras negras?

Toni Morrison, prêmio Nobel de literatura

1) A citação que abre o documentário, “If you surrender to the air, you can ride it” / “Se você se render ao ar, você pode voar”, é da escritora estadunidense Toni Morrison, ganhadora do prêmio Nobel de Literatura, em 1993. No Brasil, vários de seus livros já estão traduzidos, inclusive o mais conhecido, o romance Amada.

2) Alice Walker é uma escritora de prosa, poesia e ensaios, também nascida nos Estados Unidos. Com sua obra mais famosa, A cor púrpura, de 1982, ela ganhou prêmios importantes, como o National Book Award e o Pulitzer. Esse livro está traduzido para o português.

3) Apesar de Danai Gurira ser mais conhecida por sua personagem Michonne, da série The Walking Dead, a atriz estadunidense também escreve peças de teatro; entre elas, Eclipsed, que foi encenada na Broadway.

4) “Without  community there is no liberation” / “Sem comunidade, não há libertação”. A frase da poeta e ensaísta Audre Lorde é um importante lembrete de que precisamos pensar e agir sempre coletivamente, pois individualmente não seremos jamais livres. Em breve, faremos um post especial sobre ela, mas já deixamos a dica de que seu livro de ensaios, Irmã outsider, está prestes a ser lançado no Brasil.

5) Outra gigante literária que aparece em Homecoming é Maya Angelou. Apesar de sua poesia ainda não estar traduzida no Brasil, sua obra-prima, Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, assim como Mamãe & Eu & Mamãe, são alguns de seus livros em prosa publicados em português. Além disso, se você quiser conhecer um pouco mais sobre sua vida e produção artística, também está disponível na Netflix o documentário Maya Angelou: And Still, I Rise.

A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie

6) Fechamos essa lista com uma indicação de ouro: Chimamanda Ngozi Adichie. A escritora nigeriana está presente tanto no álbum Lemonade, quanto em Homecoming. Em ambos, há trechos da palestra “Sejamos todos feministas”[4], de 2012, que se tornou um texto-guia para a introdução ao feminismo no mundo todo. No Brasil, a escritora é um fenômeno e seus livros podem ser encontrados facilmente. Americanah, Hibisco roxo, Meio sol amarelo e No seu pescoço, além do livro introdutório Para educar crianças feministas, são alguns dos títulos já publicados em português.

[1]  Beyoncé, dançarinas e dançarinos vestiram figurino semelhante ao que os militantes usavam nos anos 1960. Além disso, a cantora mencionou o movimento Black Lives Matter.

[2] O texto completo pode ser lido em: http://www.bellhooksinstitute.com/blog/2016/5/9/moving-beyond-pain. Uma tradução para português está disponível em: https://www.geledes.org.br/mover-se-alem-da-dor-bell-hooks/

[3] Todas as citações que aparecem no filme, não apenas as literárias, estão elencadas nessa publicação, em inglês: https://www.bustle.com/p/all-the-quotes-in-homecoming-show-beyonces-commitment-to-recognizing-great-black-thinkers-17044727

[4]  A palestra está disponível online e é possível assisti-la com legendas em português: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_we_should_all_be_feminists

Porque as mulheres se rebelam hoje em dia, de Dacia Maraini (tradução de Cláudia Alves)

Dacia Maraini (Fiesole, 1936) sempre esteve atenta às questões feministas de seu tempo. Desde o primeiro romance, L’età del malessere, publicado em 1963, até o livro mais recente, Tre donne: una storia d’amore e disamore, de 2017, é possível observar a presença de protagonistas femininas enfrentando as dificuldades de fazer parte de um mundo pouco simpático à sua existência. Além dessa preocupação explícita na produção literária de Maraini, a qual compreende romances, contos, poemas, peças de teatro, roteiros e livros infantis, a escritora italiana também se dedica ao tema em sua produção ensaística. Assim, em “Porque as mulheres se rebelam hoje em dia” (1973), deparamo-nos com suas reflexões não ficcionalizadas sobre as mulheres na sociedade italiana dos anos de 1970. Esse texto, publicado em resposta ao escritor Goffredo Parise, ocupou um lugar privilegiado no grande jornal italiano Corriere della Sera. A coluna em que circulou, Tribuna Aperta, era reservada a importantes escritores-intelectuais da época e, nesse sentido, a publicação do texto de Maraini cumpre um papel significativo ao ocupar esse espaço com as discussões sobre o feminismo. Nós que hoje o lemos, à distância de mais de 40 anos, reconhecemos ali as marcas dos movimentos feministas dos anos 1960 e 1970, que tratavam questões de sexualidade, raça e classe social de maneira menos crítica e não interseccional, como faz o feminismo contemporâneo. Porém, ainda é possível vermos ressoadas em nosso próprio tempo e em nosso próprio país muitas dessas mesmas questões que Maraini apresenta, ainda que ressignificadas por reflexões diversas e novos debates.

Porque as mulheres se rebelam hoje em dia (1973) [1]

Se eu fizesse um discurso do tipo: “Oh, os operários, mas que tanto eles têm para protestar? Eu conheço um operário, um belo rapaz loiro de olhos azuis, cheio de orgulho e de coragem, que trabalha suas 8 horas diárias sem reclamar tanto. Tem um Fiat Seiscento, se veste com certa elegância, vai ao cinema quando quer, nas férias de verão vai à praia. É feliz. Conheço outro que trabalha como mecânico, é bonito, jovem, cheio de vida, trabalha muito sim, mas daí no domingo veste uma calça jeans, uma camisa florida e vai para o jogo carregando seu rádio de pilha e sua vitrola portátil. Tem até um Honda. É verdade que para consegui-lo teve que fazer alguma maracutaia, mas não grande coisa. E não perdeu sua virilidade, seu orgulho, seu bom humor. Esses são os operários que conheço, modernos, independentes, nada de ficar choramingando, fazendo pose ou romantizando. Acima de tudo, eles não têm o complexo do explorado. Vivem bem, são sérios, sabem rir, sabem se divertir, sabem também trabalhar, mas sem reclamar. E se eles se prostituem, isso os torna mais atraentes. Ao contrário dos outros, que resmungam, protestam, se juntam e se fazem eternamente de vítimas. Que chatice!”

Se eu fizesse um discurso desse tipo, todos diriam que eu sou uma apática política[2] da pior espécie, diriam que vejo os problemas sociais de forma pessoal. E certamente me acusariam de ter um raciocínio “feminino”, isto é, irracional e particularista.

Pois esse mesmo discurso sobre os operários que faço como hipótese, Goffredo Parise faz de verdade, falando das mulheres. De maneira particularista e irracional, com a mesma indiferença tranquila em relação ao conjunto do problema. Estou me referindo ao artigo intitulado “Femminismo”[3], publicado aqui neste jornal.

Esse discurso de Parise é, infelizmente, muito comum entre os homens de todas as classes sociais. Frequentemente os escuto julgar de maneira decisiva: “Qual a necessidade do feminismo? Vocês já são praticamente iguais a nós homens. Façam o que quiserem, se comportem como preferirem, que mais vocês estão pedindo? Veja, eu sou mais feminista do que vocês. Eu amo as mulheres, as reverencio, as estimo, até as venero. Mas, por favor, não façam tanto alarde, não comecem a ideologizar porque isso estraga vocês. Vocês ficam instantaneamente feias e chatas”.

Se Parise, que há algum tempo escolheu o papel de defensor do contra, soubesse quão comum é esse discurso, talvez ele ficasse um pouco mais constrangido.

O feminismo é algo muito mais complicado e mais profundo do que aquele “cuidado para não engordar” a que ele se refere. O feminismo não nasce de uma genérica lamentação pelas próprias desgraças. Todos têm suas próprias desgraças e é importante saber guardá-las pra si mesmo. Mas nesse caso se trata de algo muito mais grave. Trata-se de metade da humanidade ter estado em situação de submissão por milhares de anos nas sociedades patriarcais que existiram ao longo da história. E a sociedade atual não é menos patriarcal do que as outras, apesar da sua aparente “liberalidade”.

Manifestação na Itália, nos anos 1970: “Para uma maternidade livre, aborto livre”.

O fato de hoje existirem mulheres aparentemente independentes e livres que talvez mandem em seus maridos não significa que a submissão segundo os homens tenha acabado. A liberdade não é um fato individual. E uma mulher não pode ser livre enquanto outros milhares de mulheres estão em estado de submissão.

A exploração não se torna menor. A grande maioria das sociedades desse mundo não teriam ido em frente se não tivessem vivido à custa de milhões de donas de casa que se matam de trabalhar 12 horas por dia sem remuneração de nenhum tipo, sem assistência médica, sem nem ao menos o reconhecimento social pelo trabalho que fazem.

A essa altura poderiam dizer: se está tão ruim assim, por que todas essas mulheres não protestam, não se rebelam? Por que continuam ali bondosas e contentes, satisfeitas consigo mesmas e com o mundo? A resposta é que a opressão criou na mulher uma forma nociva de passividade e fatalismo. A mulher não nasce passiva, mas se torna, para se adequar a um modelo de comportamento social.

Os opressores, no entanto, encontraram um ótimo sistema para aprisionar a mulher à sua própria opressão ao transformar sua passividade em dado fisiológico, em natureza. Enquanto a mulher não entender que sua passividade é um resultado histórico e não um destino natural, ela não se libertará da sua “inferioridade” psicológica em relação ao homem.

Isso não quer dizer que a mulher deva se masculinizar. Uma mulher-macho é a imitação ruim de um homem. Ela deve simplesmente se tornar um ser humano completo, munida de relações com o mundo, as quais são necessárias para se estar dentro, e não fora, da história. Recusar a passividade não significa recusar o amor ou a doçura. Pelo contrário, recusar a passividade significa desejar que a doçura seja uma escolha, não uma imposição.

O amor, segundo os movimentos de libertação da mulher, é algo vivido em duas pessoas, com o mesmo empenho e a mesma participação, recusando a agressividade de uma das partes e a aquiescência da outra; recusando a oposição tradicional ativo-passivo, sádico-masoquista, fazer-ser feito etc. O amor, como se entende hoje, se parece muito com uma agressão, com uma apropriação, com uma ofensa do homem à mulher. É por isso que muitas mulheres sensíveis e orgulhosas recusam o orgasmo, e se tornam frígidas. É uma recusa implícita do amor como uma forma de “se render” à brutalidade.

Os movimentos de libertação da mulher querem fazer renascer na mulher o sentimento de integridade humana. Querem que a mulher deixe de se considerar um ser incompleto, passivo, frágil, disponível, mutilado. Um ser humano pela metade, em resumo, de acordo com o conceito freudiano.

Mas ao mesmo tempo recusam o modelo “masculino” tradicional. Não é imitando o homem que a mulher vai se libertar, mas sim tomando consciência da sua realidade histórica, social e psicológica.

Não se fica livre da opressão fingindo que ela não existe, como acontece com muitas mulheres que fizeram carreira no mundo dos homens e odeiam ouvir falar dos problemas da emancipação feminina. Elas “conseguiram”, então pensam que a tarefa acaba por aí. Mas a liberdade, como dito antes, não é algo privado. Nenhuma mulher é realmente livre enquanto há outras mulheres em estado de servidão. Somos mulheres. Somos diferentes porque tivemos uma história diferente. Mas a nossa diferença não é uma vergonha. É a nossa realidade, da qual devemos partir em cada reivindicação de direitos.

Não é só uma questão de creches, igualdade salarial, remuneração para as donas de casa. É uma questão de aprender a ver com os próprios olhos os próprios problemas. É uma questão de falar com a própria voz. De pensar com a própria cabeça. Para isso, é importante se isolar e se organizar por conta própria. Não por ódio aos homens ou por desconfiança em relação às organizações políticas em que os homens dominam. Mas para nos acostumarmos com o ato de pensar sobre nossa própria situação de opressão.

E sobre aquilo que Parise disse, que as mulheres não seriam uma classe, se ele tivesse refletido um pouco mais teria percebido que isso é muito mais complexo, confuso e menos claro do que geralmente se pensa. Porque é verdade que existem as mulheres pobres e as mulheres ricas, mas é raro que as mulheres ricas, até mesmo as muito ricas, sejam ricas por conta própria. Em geral, são ricas por causa dos maridos ou dos pais. Ou seja, as mulheres usufruem da riqueza sem de fato produzi-la. Em outras palavras, são sustentadas e, portanto, não são livres. O próprio Parise escreve a propósito de uma delas: “Seu único privilégio é ser genialmente uma puta”.

As mulheres burguesas vivem essa estranha contradição: tem dinheiro à sua disposição, mas não o possuem de verdade. Há algo de ridículo, de irreal, de absurdo na mulher burguesa rica. Tudo o que ela faz ou diz soa sempre falso. E por quê? O ridículo vem do fato de que ela usufrui do poder sem compartilhar desse poder; antes, permanece decisivamente excluída dele.

A mulher pobre, a mulher do povo, nunca é ridícula porque sua relação com o mundo, ainda que limitada, é real. Porque mesmo ela, assim como seu marido, produz. A mulher burguesa que não faz nada e vive sustentada pelo marido é um absurdo social, uma alienação viva. Vêm daí suas neuroses. Daí a falsidade do seu intelectualismo, quando ele existe, que incomoda justamente os verdadeiros intelectuais.

Quando se fala em classe, no que diz respeito às mulheres, se entende essa situação particular em que, sejam mulheres pobres, sejam mulheres ricas, ambas têm em comum a dependência em relação a um homem.

Que existam mulheres que pela força do caráter ou pela “genialidade de puta” saibam dominar seus maridos, apesar da dependência econômica, porque são “mais bonitas, mais sensíveis, mais inteligentes, mais elegantes, em uma palavra muito mais ‘simpáticas’, mesmo se o marido for um coitado”, como escreve Parise, isso não muda nada.

Até mesmo entre os escravos, houve quem cativasse o coração do patrão e acabasse conseguindo o que queria. Mas fazer isso não acabava com a escravidão, nem com a sua, nem com a dos outros escravos.

É provável que a essa altura Parise me diga que sou uma fanática, uma chata, que seria melhor eu ficar quieta porque estou parecendo ingênua e “pasionaria”[4].

E eu lhe responderia que é essa ingenuidade e essa passionalidade que quero reivindicar como algumas das melhores características femininas, que devem ser cultivadas e não reprimidas.


Encontro com Dacia Maraini: “Lectio su letteratura e giornalismo”, em dezembro de 2018.

[1] Publicado no jornal Corriere della Sera, em 10 de julho de 1973. Está recolhido também na coletânea Giornalismo Italiano 1968-2001, na coleção I Meridiani (organização de Franco Contorbia; Milão: Mondadori, 2009) [nota da tradutora].

[2] Em italiano, Maraini utiliza o termo qualunquista. Historicamente, o qualunquismo está relacionado ao movimento autodenominado apolítico posterior à Segunda Guerra Mundial, o qual pretendia se desvincular tanto do fascismo, quanto do comunismo, defendendo a possibilidade de uma posição indiferente e apática politicamente das pessoas comuns. No vocabulário cotidiano, passou a referenciar negativamente aqueles que, pela desconfiança nos meios políticos e institucionais, acabam se aproximando a posicionamentos conservadores [nota da tradutora].

[3] “Femminismo” foi publicado por Goffredo Parise no jornal Corriere della Sera, em 20 de maio de 1973 [nota da tradutora].

[4] La Pasionaria foi o pseudônimo utilizado pela ativista antifascista espanhola Dolores Ibárruri (1895-1989). O termo passou a ser utilizado na língua italiana para referenciar mulheres de luta, atuantes em atividades políticas e ideológicas [nota da tradutora].

[Publicado pelo blog Pontes Outras: https://pontesoutras.wordpress.com/2018/12/09/porque-as-mulheres-se-rebelam-hoje-em-dia-1973-de-dacia-maraini-traduzido-por-claudia-t-alves/ ]