O corpo (pré-)pós-humano de Buster Keaton

 
 
Quem é Buster Keaton?

 

Atualmente, cerca de um centenário após as suas maiores realizações, boa parte do público talvez não o conheça. Alguns talvez o reconheçam de algum pôster. Mas ele é um dos grandes nomes da história do cinema, valorizado – se não por multidões – por estudiosos e pesquisadores dos filmes.

A passagem do tempo é cruel, e contribui para essa crueldade o fato de Buster ter feito a parte mais importante de sua obra em um período anterior do cinema: o do cinema mudo ou silencioso. Porém, trata-se de um artista fundamental, um dos grandes nomes da comédia cinematográfica, que constitui, ao lado de Charles Chaplin e de Harold Lloyd, o que poderíamos chamar o triunvirato da comédia muda.

Joseph Frank Keaton nasceu no ano de 1895 e faleceu em 1966. Ainda criança, começou sua carreira nas artes, mais exatamente em 1899, como ator de vaudeville, trabalhando junto dos pais. O apelido “Buster” foi dado pelo ilusionista e mestre dos escapes Harry Houdini. [1] Sua carreira no cinema durou quase 50 anos. Começou em 1917, quando Buster foi parceiro de Roscoe “Fatty” Arbuckle, um dos astros da comédia da época. O auge criativo de Keaton ocorreu durante os anos 1920, nos curtas e longas-metragens silenciosos dirigidos ou codirigidos por ele. O pesquisador francês Jean-Philippe Tessé afirma ousadamente que a carreira de Buster teria durado somente de 1920 a 1929, justamente esse período mencionado, quando Keaton – que trabalhava em um estúdio próprio – possuía uma independência e um controle considerável sobre a sua obra. O que ocorreu depois? Em 1928, Buster assina um contrato com a grande companhia MGM, uma atitude da qual se arrependeria amargamente mais tarde. Após essa mudança, o cineasta perde o controle das suas obras: a produtora impõe atores, criadores de piadas, técnicos; impede-o de improvisar nas filmagens. Com isso, apesar de certo sucesso de público, Keaton entra em decadência, da qual nunca se recuperaria totalmente. [2] Entre os grandes momentos posteriores do ator, podemos citar a sua participação em Luzes da Ribalta (Limelight, 1952), de Charles Chaplin, único filme na história do cinema a trazer esses grandes nomes da comédia muda atuando juntos.

Buster Keaton, ao contrário de Chaplin – com seu sorriso e seu rosto mega expressivos –, atuava sempre com um rosto com uma expressão relativamente neutra, o que lhe valeu alguns apelidos, como “Stoneface” (“cara de pedra”) ou “O homem que nunca ri”. Essa acabou sendo uma de suas marcas, o que não quer dizer que a sua atuação não envolva ou não produza emoção. Essa emoção, porém, passa por outros caminhos, principalmente por seus gestos e por seu comportamento corporal:

Keaton, ex-acrobata e ator mirim de vaudeville, diferia de Chaplin no sentido de que sua graça costumava vir do contraste entre seu rosto eternamente inexpressivo e as incríveis façanhas atléticas que seus personagens precisavam fazer para escapar do perigo. Com sua execução cuidadosa e desenvolta de sequências cada vez mais complexas, tão perigosas quanto espetaculares, Keaton aproximava a comédia física da poesia. [3]

 

Buster “Stoneface” (“Cara de pedra”)

 

Falando no corpo de Buster, ele possui algumas outras características muito importantes. A meu ver (e de um jeito surpreendente), essas características se aproximariam de alguns elementos de um termo que representa, ao mesmo tempo, uma situação contemporânea e uma teoria que a explica: o pós-humano ou pós-humanismo. Foi o que procurei discutir em um artigo de 2018, “Buster Keaton: um corpo pós-humano?”.

 

Mas o que seria pós-humano?

 

Como dito acima, o termo pós-humano se refere a dois elementos relacionados, mas distintos. Primeiramente, haveria uma condição pós-humana; ela seria resultado de um processo histórico pelo qual a humanidade está passando, que não está concluído, e cujas consequências ainda não conhecemos completamente. Entre as mudanças que já ocorreram, temos o desenvolvimento em áreas como a genética – o que permitiria uma manipulação praticamente artificial dos organismos vivos – e a cibernética, com o surgimento de redes informáticas cada vez mais complexas. Nesse contexto, inteligências artificiais aproximam-se das humanas e estabelecem contatos cada vez mais complexos com as pessoas. Além disso, há uma diluição das fronteiras entre o homem e a máquina, com o desenvolvimento de próteses e conexões as mais diversas, que muitas vezes se tornam parte do próprio corpo dos indivíduos. A pesquisadora brasileira Lucia Santaella comenta essa questão:

O potencial para as combinações entre vida artificial, robótica, redes neurais e manipulação genética é tamanho que nos leva a pensar que estamos nos aproximando de um tempo em que a distinção entre vida natural e artificial não terá mais onde se balizar. De fato, tudo parece indicar que muitas funções vitais serão replicáveis maquinicamente assim como muitas máquinas adquirirão qualidades vitais. O efeito conjunto de todos esses desenvolvimentos tem recebido o nome de pós-humanismo. Sob essa denominação, as distinções entre o artificial e o natural, o real e o simulado, o orgânico e o mecânico têm sido levadas ao questionamento. [4]

Essa condição já foi retratada em diferentes tipos de artes, como na literatura e no cinema. É notável a figura do ciborgue, ser formado parcialmente por matéria orgânica e parcialmente por componentes maquínicos – como O Exterminador do Futuro, do filme homônimo de James Cameron (The Terminator, 1984). Em alguns casos, seres-máquinas substituem quase que inteiramente os seres humanos, e essa semelhança pode gerar sérios questionamentos éticos e morais, como no filme Blade Runner, de 1982, dirigido por Ridley Scott.

 

“Hasta la vista, baby”: uma máquina com elementos orgânicos

 

Além de indicar essa situação, o pós-humano representa um campo de pesquisas, que reúne estudiosos de áreas diversas em torno da reflexão sobre as novas articulações e existências das pessoas. Essas discussões podem levar muitas vezes a uma problematização da posição central do ser humano nas pesquisas, que leva a uma localização mais dinâmica desse ser, em comunicação com outros elementos e seres, como animais, objetos, máquinas e redes de informação.

 

E o que Buster tem a ver com isso?

 

Deve ficar claro que a relação de Buster com esse conceito é muito diferente da que pode ser observada nos filmes citados acima. O cinema de Buster passa longe da ficção científica; ele não é ciborgue nem androide. A sua relação com o pós-humano pode ser reconhecida principalmente devido às manifestações e articulações diferenciadas do seu corpo, devido a um estatuto incomum desse corpo, que muitas vezes ultrapassa os limites do humano e se identifica com os seres não humanos, principalmente, com as máquinas. Em meu artigo, um tanto presunçosamente, divido essas manifestações em três grupos: corpo-com, corpo-entre e corpo-além.

 

Corpo-com

 

Na primeira articulação, corpo-com, enfatizo as junções ou os acoplamentos do corpo de Keaton com objetos ou máquinas, principalmente com as últimas. O melhor exemplo se encontra naquele que é talvez o seu filme mais conhecido: A general (The general), de 1926. Nessa obra – que se passa no período da Guerra civil entre norte e sul dos Estados Unidos – Buster representa um condutor de uma locomotiva (chamada “A General”) e passa por várias aventuras em seu meio de transporte, nas quais atua no conflito e salva o seu par romântico, Annabelle. Nesta discussão, mais importante que o enredo, é justamente a relação de Buster com o seu trem, uma relação muito particular. Pode-se dizer, inclusive, que haveria um amor nessa relação entre o personagem e a locomotiva. Smith [5] afirma que haveria um triângulo amoroso, entre Keaton, A General e Annabelle. E essa afirmação não é exagerada: o relacionamento entre Keaton e a General é de proximidade, de diálogo, de harmonia. Para o pesquisador britânico Alex Clayton, Keaton demonstra nesse filme como uma harmonia positiva entre homem e máquina pode conduzir à comédia. Na visão do autor, “o herói de Keaton deve atuar em uníssono com a locomotiva a vapor […] A força do trem é aliada à sua engenhosidade, a velocidade do trem à sua destreza”. [6] Aqui, trata-se de uma união bastante produtiva entre os corpos, que aproveita o melhor do que cada um tem a oferecer. Nessa simbiose, cada um dos componentes ganha algo: a locomotiva consegue sua energia e consegue ultrapassar obstáculos pelo caminho graças aos esforços de Keaton, e ele ganha uma velocidade impossível para seu corpo sozinho. Em alguns momentos, podemos até considerar que não há dois elementos, mas uma junção, um homem-máquina, e o filme aponta para essa questão em uma sequência: Buster, sobre o teto da locomotiva, adota uma postura rígida, firme, estática, um pouco inclinada para a frente, postura na qual observa o horizonte adiante. Esse corpo, devido à sua gestualidade, e graças ao enquadramento lateral da filmagem, torna-se quase que uma extensão da locomotiva, ou um prolongamento de sua estrutura – Keaton-locomotiva. Deve-se enfatizar, porém, que não há uma negação total de Buster. Como apontado acima, temos uma relação de harmonia, em que ambas as partes trazem as suas particularidades positivas para a obtenção de um resultado (que as favorece). Nesse sentido, e concordando com Clayton, [7] o corpo de Keaton não constituiria um anexo robótico estúpido, sem mente.

 

Buster e a locomotiva: dois corpos em um?

 

Corpo-entre

 

Na segunda articulação, corpo-entre, destaco determinadas manifestações de Keaton que diluem as fronteiras, principalmente as relacionadas à sua identidade. Determinadas manifestações de seu corpo mostram que ele não afirma uma verdade ou uma essência imutável; os sentidos que esse corpo produz dependem das suas próprias articulações, que podem ser inúmeras. Como aponta Clayton [8], parece haver certa indeterminação na relação de Buster com o mundo social: o seu personagem parece muitas vezes alheio às divisões que constituem o mundo; como as suas ações se orientam frequentemente em função de um olhar mais físico, espacial, com relação ao mundo, outras formas de hierarquia não parecem fazer tanto sentido para Buster. Os possíveis rótulos e “essências” ligados ao personagem são muitas vezes frutos de uma disposição particular do seu corpo no tempo e no espaço, o que implica, obviamente, que esses rótulos podem mudar facilmente.

Como exemplo dessa articulação do corpo, temos o filme The Paleface, de 1922, que retrata a relação de Buster com indígenas que defendiam suas terras das investidas de empresários do petróleo. Em determinada cena, Buster, vestido com uma indumentária indígena, é rendido por um “homem branco”. Keaton é obrigado a trocar de roupas com ele, a fim de que o homem passe despercebido pelos índios. Buster, agora vestido como homem “da cidade”, é observado à distância pelos índios. Eles não o reconhecem e acabam o atacando. Conforme argumenta Clayton, “à distância, o corpo é despojado da personalidade que ele encarna”. [9] E o corpo de Keaton é, de fato, muitas vezes enquadrado à distância em seus filmes, em planos gerais e planos de conjunto, os mais distantes na classificação dos enquadramentos de câmera. Pode-se considerar que, nos seus filmes, com o uso dessa composição, é a “externalidade” do seu corpo que confere a identidade a ele; “externalidade” essa que pode ser moldada, modificada ou mesmo distorcida. Essa questão da distância do corpo leva à criação de uma presença forte de construções geométricas e mesmo abstratas nos planos de Keaton: de algum modo, a sua relação mais espacial com o mundo o liberta das contingências da vida cotidiana, da vida em sociedade. Não há muitas fronteiras, quando as principais divisões são as que delimitam o espaço.

 

Imagem do filme “The Paleface”, de 1922.

 

Corpo-além   

 

O último tipo de manifestação corporal é o corpo-além. Ele se refere, principalmente, aos momentos em que Keaton ultrapassa as suas limitações mais humanas e chega a outro patamar. A tendência à abstração, acima comentada, parece já apontar para esse aspecto, pois indica uma superação das limitações e das contingências pelo corpo de Keaton. Vejamos dois momentos, bem distintos, dessa manifestação corporal.

Jean-Philippe Tessé discute um exemplo significativo, da fase em que Keaton ainda trabalhava com Roscoe “Fatty” Arbuckle e chegava a estampar alguns poucos sorrisos diante das câmeras: The Garage, de 1920:

Prisioneiro de uma placa giratória [para veículos, que estava em funcionamento abaixo dele], Keaton parece, para escapar dela, correr mais rápido do que pode. Ele está além da circunstância (a placa giratória), já no absoluto: para sair da armadilha, ele não deve ir mais rápido que a armadilha, mas mais rápido que a rapidez, exceder seu próprio corpo. [10]

 

Buster Keaton em cima da placa giratória

 

O corpo de Keaton parece ir além, além das circunstâncias imediatas, além do instante. Poderíamos dizer: parece ir além do seu próprio corpo. Até chegar ao ponto de se multiplicar em vários corpos, vários Keatons? Sim, isso ocorreu de fato, no filme The Playhouse¸ de 1921. Nessa obra, Keaton se transforma em várias pessoas, e ao mesmo tempo. Acompanhamos, em uma cena, um dia de apresentações em um teatro de variedades, mas há um detalhe importante: todas as pessoas que aparecem na cena são Buster Keaton. Todas. Maestro, músicos, dançarinos, contrarregra, criança, senhora, senhor, todos são representados por Buster, que muitas vezes aparece como mais de uma pessoa no mesmo instante, graças a trucagens, efeitos especiais. O corpo de Keaton é o corpo de todos; mesmo que a cena, narrativamente, seja motivada por um sonho do personagem, seu efeito não deixa de impactar.

 

Busters Keatons 1

 

Busters Keatons 2

 

Busters Keatons 3

 

Pré-pós

 

Após a observação desses exemplos, alguns dos discutidos em meu artigo – que convido você à leitura, com outros exemplos e outras discussões – vemos que o corpo de Keaton se manifesta e age no mundo em uma abertura contínua às possibilidades, às construções no espaço, em diálogo constante com outros corpos, muitas vezes corpos não humanos.

O corpo de Keaton, cronologicamente, é anterior ao pós-humano enquanto condição histórica. Ele seria, nesse sentido, algo como um corpo “pré-pós-humano”. Ainda que ele seja anterior, essa aproximação entre os dois elementos, o corpo de Keaton e o pós-humano, é, a meu ver, bastante frutífera e produtiva para discussões e questionamentos. Por um lado, o campo do pós-humano pode colaborar com algumas novas chaves de leitura para a obra de Keaton. Por outro lado, a obra desse ator-diretor – marcada pela presença de um corpo que dialoga frequentemente com elementos não humanos – aponta para possíveis raízes, manifestações e caminhos dos corpos pós-humanos, em um tempo em que eles já não parecem mais restritos ao gênero da ficção científica.

Talvez essa passagem por um gênero mais risonho, por meio do rosto daquele que nunca ri, ofereça novos olhares para todos esses corpos.

 

Referências

 

[1] Para mais informações sobre a carreira de Buster, confira a página 75 de História do cinema: dos clássicos mudos ao cinema moderno, de Mark Cousins. O livro foi traduzido para o português por Cecília Camargo Bartalotti e publicado pela editora Martins Fontes, em 2013. Veja também o capítulo “A General”, de I. H. Smith, de Tudo sobre cinema. O livro foi organizado por P. Kemp, e a tradução para o português foi publicada pela editora Sextante, em 2011.

[2] Trecho do livro Le burlesque, de Jean-Philippe Tessé, publicado em Paris, no ano de 2007, pela Cahiers du cinema. O trecho citado está nas páginas 25 e 26.

[3] Trecho da página 69 do capítulo “A comédia muda”, escrito por R. Hunter. Esse capítulo faz parte do livro Tudo sobre cinema, mencionado na nota 1.

[4] Trecho da página 199 do livro Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibernética, de Lucia Santaella. A primeira edição do livro é de 2003, e o trecho citado é da segunda edição, publicada em 2004.

[5] Trecho da página 66 do capítulo “A General”, mencionado na nota 1.

[6] Trecho da página 96 do livro The body in Hollywood Slapstick, escrito por Alex Clayton e publicado em 2007 pela editora McFarland & Company, da Carolina do Norte.

[7] Trecho da página 98 do livro mencionado na nota anterior.

[8] Trecho da página 56 do livro mencionado na nota anterior.

[9] Trecho da página 60 do livro mencionado na nota anterior.

[10] Trecho da página 19 do livro de Jean-Philippe Tessé, mencionado na nota 2.

Ensaio em cena

No episódio “O ensaio em cena ou o espetáculo da dúvida”, do Podcast Oxigênio, o Alexandre Soares Carneiro falou sobre o ensaio, um tipo de texto muito livre, que pode ter várias formas e tratar de diferentes assuntos. O ensaio também dá espaço para quem o escreve mostrar suas dúvidas e seus pensamentos, mostrar a si mesmo sem enfeite nem edição. O Alexandre pesquisa assuntos como Literatura Medieval, Renascimento e, há mais de dez anos, ele estuda o nascimento e as transformações do gênero ensaístico. Ele é professor e pesquisador do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp.

Ensaiando uma definição
Algumas capas de livros de ensaios…

Michel de Montaigne, George Orwell, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Luis Borges, Antonio Candido, Robert Louis Stevenson, Pier Paolo Pasolini, Emil Cioran… Escritores muito diferentes, como os dessa pequena lista, escreveram ensaios igualmente muito diferentes. E toda essa diferença já mostra que definir “ensaios”, de forma geral, não é uma tarefa simples. O Alexandre Carneiro, porém, ensaiou uma definição.

Para o pesquisador, apesar de poder assumir variados aspectos, o ensaio tende a incorporar as dúvidas do processo de reflexão, o que se relaciona à característica dialógica do ensaio, ou seja, à sua aproximação a um tom de conversa. Normalmente, as conversas não são sistemáticas e elas dão a liberdade para a gente ir testando ideias, até mesmo aquelas insólitas, estranhas…     

“Podemos identificar a tal liberdade do ensaio no fato de o ensaísta expressar não apenas o resultado final, mas um pouco do processo irregular do pensamento, desde a formulação de um problema, uma dúvida, um paradoxo que ele observou, passando pelas hipóteses iniciais, as hesitações, desvios, correções.” (Alexandre Soares Carneiro)

Então, apesar de não ser fácil definir um ensaio, muitas vezes encontramos nesses textos algumas características em comum: pessoalidade, liberdade e um esforço de descrever um problema, de uma forma necessariamente não sistemática e em um tom parecido com o de uma conversa.

Um livro de boa-fé

Mais fácil do que definir um ensaio é dizer quando essa palavra passou a ser usada para se referir a esse tipo de texto. O francês Michel de Montaigne (1533-1592) teria inaugurado o uso dessa palavra para tal fim ao dar o título Ensaios para uma série de 3 livros que ele foi escrevendo e reescrevendo desde 1571 até a sua morte. A palavra “ensaios” – que nos remete a tentativas, esboços – revelava a modéstia do escritor, que começou com reflexões breves a partir de leituras que fazia e depois foi se sentindo mais à vontade para falar sobre si mesmo, sobre a própria escrita, sobre acontecimentos de sua época… Apenas para dar uma ideia da diversidade de temas abordados por Montaigne, estes são alguns dos títulos de seus ensaios:

Somente depois da morte podemos julgar se fomos felizes ou infelizes; De como filosofar é aprender a morrer; Da amizade; Dos canibais; Como uma mesma coisa nos faz rir e chorar; Da solidão; Dos odores; Da incoerência de nossas ações; Da embriaguez; Dos polegares; A covardia é mãe da crueldade; Dos correios; Da inconveniência de se fingir de doente.

Retrato de Michel de Montaigne (pintor desconhecido). Esse escritor francês, autor dos livros Ensaios, é a grande referência para o gênero ensaístico.

 

A nota “Ao leitor”, que Montaigne escreveu como abertura de seus ensaios, mesmo que com um quê de dissimulação (para conquistar a generosidade dos leitores), mostra as motivações despretensiosas do escritor, que aproximam os seus textos a uma conversa entre amigos.

Eis aqui, leitor, um livro de boa-fé.

Adverte-o ele de início que só o escrevi para mim mesmo, e alguns íntimos, sem me preocupar com o interesse que poderia ter para ti, nem pensar na posteridade. Tão ambiciosos objetivos estão acima de minhas forças. Voltei-o em particular a meus parentes e amigos, e isso a fim de que, quando eu não for mais deste mundo (o que em breve acontecerá), possam nele encontrar alguns traços de meu caráter e de minhas ideias e assim conservem mais inteiro e vivo o conhecimento que de mim tiveram. Se houvesse almejado os favores do mundo, ter-me-ia enfeitado e me apresentaria sob uma forma mais cuidada, de modo a produzir melhor efeito. Prefiro, porém, que me vejam na minha simplicidade natural, sem artifício de nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto. Vivos se exibirão meus defeitos e todos me verão na minha ingenuidade física e moral, pelo menos enquanto o permitir a conveniência. Se tivesse nascido entre essa gente de quem se diz viver ainda na doce liberdade das primitivas leis da natureza, assegure-te que de bom grado me pintaria por inteiro e nu. [1]

Folha de rosto do terceiro livro dos Ensaios (1588).

 

Essa aproximação entre os ensaios e uma conversa mais íntima, entre amigos, pode ser relacionada a um acontecimento da vida do ensaísta francês…

Porque era ele, porque era eu

Montaigne foi muito amigo do Étienne de La Boétie, que ficou conhecido por ter escrito, ainda na adolescência, o Discurso da servidão voluntária. Só que, com 33 anos, o La Boétie ficou doente e morreu. Isso abalou muito o Montaigne. E o crítico literário suíço Jean Starobinski fala que, na falta de La Boétie, os Ensaios seriam uma tentativa do Montaigne de estender esse diálogo que ele tinha com o amigo.

Inclusive, em um trecho do documentário Chico Buarque – Cinema, de 2006, dirigido por Roberto de Oliveira, o músico e escritor brasileiro, ao comentar sua música “Porque era ela, porque era eu”, fala dessa história famosa da amizade entre os dois franceses:

Desde criança, todo mundo lá [na França] sabe quem é o Montaigne, e essa frase dele [“porque era ele, porque era eu”] se refere à amizade dele com o La Boétie, que era um outro escritor, foi um grande amigo dele de juventude. E o Montaigne […] escrevia ensaios e, ao longo da vida, ele foi reescrevendo alguns ensaios; eles eram publicados e republicados e tal. E uma vez ele falou isso. Perguntavam a razão dessa grande amizade que ele tinha tido com esse outro escritor, o La Boétie, que morreu jovem. E ele falava que não sabia explicar. […] Eu gostava dele e não sabia justificar porque gostava dele e ponto. Depois, mais adiante, quinze anos depois, ele, revendo esse ensaio dele, escreveu ao lado da página assim “eu gostava dele, porque era ele”, ponto. Aí foi impresso na nova edição dos ensaios, “eu gostava dele, porque era ele” e ponto. Quinze anos depois, ele olhou essa frase e anotou de novo, num canto da página, “eu gostava dele, porque era ele e porque era eu” e ponto.

O documentário está disponível no canal da produtora do filme, RWR. O trecho citado acima pode ser assistido por meio deste link.

Documentário Chico Buarque – Cinema, 2006.

 

No episódio de podcast “O ensaio em cena ou o espetáculo da dúvida”, não falamos sobre esse trechinho da fala do Chico. Porém, a conversa com o professor Alexandre não parou nesse ponto da amizade entre Montaigne e La Boétie.

A conversa continua…

Mas não aqui no blog. Se você está gostando desse assunto, ouça o que mais rolou nessa conversa. Só para dar um gostinho: lá, o Alexandre falou sobre o ensaio “Do pedantismo”, no qual o Montaigne discute a ideia de que a educação pode ajudar, mas pode também atrapalhar o nosso julgamento. Além disso, para o ensaísta, às vezes é mais importante como a gente sabe do que quanto a gente sabe…

[Alguns] Sabem dizer “como observa Cícero”, “eis o que fazia Platão”, “são palavras de Aristóteles”, mas que dizemos nós próprios? Que pensamos? Que fazemos? Um papagaio poderia substituir-nos. […] E conheço um [sujeito] que ao ser indagado acerca do que lhe cumpre saber, vai logo buscar um livro para mostrar e jamais ousaria dizer que tem o traseiro sarnento sem previamente procurar em dicionário a significação de sarna e de traseiro. (Do pedantismo, Michel de Montaigne) [2]

A gente ainda conversou sobre o ensaísmo brasileiro (que é mais importante do que parece) e sobre a relação entre o ensaísmo e a crítica literária brasileira. Por fim, o Alexandre deu algumas dicas de ensaístas de várias épocas e lugares para quem se animou para ler esse tipo de texto.

A série

“Leitura de Fôlego” é uma série do podcast de jornalismo e divulgação científica Oxigênio, produzido por alunos do Labjor-Unicamp e coordenado por Simone Pallone. Essa série sobre literatura aborda temas de pesquisa de quatro professores do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Além desse episódio sobre os ensaios, foram abordados os seguintes temas: livros licenciosos, silenciamento de personagens femininas na literatura brasileira e utopias. Aqui no “Marca Páginas” já temos um post sobre os livros licenciosos, que, por conterem cenas de sexo (entre outros motivos), eram proibidos no Brasil dos séculos XVIII e XIX, mas que circularam bastante nessa época. Em breve, também vamos ter mais textos, apresentando os temas dos outros dois episódios.

Todos os programas da série estão integralmente transcritos na descrição dos episódios no site do Oxigênio, para que pessoas surdas ou com alguma deficiência auditiva possam ter acesso ao conteúdo. Os episódios podem ser acessados pelo site do Oxigênio, pelo site da Rádio e TV Unicamp, pelo canal no Youtube da TV Unicamp ou por agregadores, como Google Podcasts e Spotify.

Referências

[1] Tanto os títulos dos ensaios quanto essa nota “Ao leitor” foram retirados da edição dos Ensaios publicada no Brasil pela Editora 34, em 2016. A tradução é do escritor Sérgio Milliet.

[2] Esse trecho está nas páginas 174 e 175 da edição citada na nota anterior.