Odeio os indiferentes, de Gramsci (tradução de Cláudia Alves)

Nos últimos tempos, o nome do intelectual italiano Antonio Gramsci tem sido citado, assim como o de Marx, com grande frequência no Brasil. A ascensão de um governo de direita e de seus seguidores, de viés assumidamente conservador, parece sustentar como base para sua legitimação popular o método de difamação de tudo aquilo que não está de acordo com a sua perspectiva. Dessa forma, tratar como ameaças a pluralidade de pensamento e a existência de ideologias é algo que tem feito parte de tal estratégia . Mas por que será que intelectuais de esquerda, como Gramsci, incomodam tanto assim? A provocação desse questionamento, essencial à sobrevivência da reflexão de tipo humanista, me levou a esse texto-manifesto de Gramsci, “Odeio os indiferentes”, de 1917. Nele, o intelectual reage à apatia política existente em momentos de crise, convocando sutilmente a população a tomar partido e a assumir responsabilidade pelos acontecimentos históricos. Essa leitura ressou para mim muitas relações entre a Itália de 1917 e o Brasil de 2019, sobretudo por concordar que, diante de retrocessos, não podemos ficar indiferentes. E se a leitura de Gramsci é algo que incomoda, então certamente é Gramsci que irei ler, traduzir e compartilhar cada vez mais.

“Estudem, porque precisaremos de toda a inteligência de vocês”

Odeio os indiferentes[1]

Antonio Gramsci (1891-1937)

Tradução: Cláudia Tavares Alves

Odeio os indiferentes. Acredito, assim como Federico Hebbel, que “viver quer dizer ser partidário[2]”. Não podem existir apenas homens, estranhos à cidade. Quem vive de verdade não pode não ser cidadão e não tomar partido. Indiferença é abulia, é parasitismo, é covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.

A indiferença é o peso morto da história. É a bola de chumbo de um inovador, é a matéria inerte em que os entusiasmos mais esplêndidos frequentemente se afogam, é o pântano que cerca a velha cidade e a defende melhor do que os muros mais sólidos, melhor do que o peito de seus guerreiros, porque deglute os assaltantes em seus poços limosos, e os dizima e os abate e por vezes os faz desistir do feito heroico.

A indiferença age potentemente na história. Age passivamente, mas age. É a fatalidade; é aquilo com que não se pode contar; é aquilo que estraga os programas, que inverte os planos mais bem construídos; é a matéria bruta que se rebela contra a inteligência e a estrangula. O que acontece, o mal que recai sobre todos, o bem possível que um ato heroico (de valor universal) pode gerar não se deve tanto à iniciativa dos poucos que agem, mas à indiferença, ao absenteísmo de muitos. O que acontece não acontece porque alguns querem que aconteça, mas porque a massa dos homens abdica à sua vontade, deixa que façam, deixa que se agrupem os nós que depois só a espada poderá cortar, deixa que promulguem leis que depois só a revolta poderá revogar, deixa que cheguem ao poder homens que depois só um motim poderá derrubar.

A fatalidade que parece dominar a história não é outra coisa que não a aparência ilusória dessa indiferença, desse absenteísmo. Alguns fatos amadurecem à sombra; poucas mãos não supervisionadas por nenhum controle tecem a teia da vida coletiva, e a massa não sabe, porque não se preocupa com isso. Os destinos de uma época são manipulados por visões restritas, escopos imediatos, ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens não sabe, porque não se preocupa com isso. Mas os fatos amadurecidos dão em algum lugar, a teia tecida à sombra chega a um fim, e então parece que a fatalidade está a abater tudo e todos, parece que a história não é nada além de um enorme fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, do qual todos são vítimas, quem quis e quem não quis, quem sabia e quem não sabia, quem estava ativo e quem era indiferente. E esse último se irrita, querendo fugir das consequências, querendo deixar claro que ele não queria isso, que ele não é responsável. Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas ninguém ou poucos se perguntam: se eu também tivesse cumprido com meu dever, se tivesse tentado fazer valer minha vontade, meu ponto de vista, teria acontecido o que aconteceu? Mas ninguém ou poucos se culpam por sua indiferença, por seu ceticismo, por não ter estendido seu braço e suas atividades aos grupos de cidadãos que, justamente para evitar tal mal, combatiam, à procura do bem a que se propunham.

Sobre acontecimentos já concluídos, a maioria dessas pessoas prefere falar em fracassos ideais, programas arruinados em definitivo e outras amenidades similares. Recomeçam assim a se ausentar em relação a qualquer responsabilidade. Não que não vejam as coisas com clareza, que não sejam capazes de às vezes apresentar boas soluções aos problemas mais urgentes ou àqueles problemas que, por exigirem mais preparação e tempo, são igualmente urgentes. Mas essas soluções permanecem amplamente infecundas, essa contribuição à vida coletiva não é animada por alguma luz moral. Ela é produto da curiosidade intelectual e não de um sentido pungente de responsabilidade histórica que quer todos ativos na vida, que não admite agnosticismos e indiferenças de nenhum tipo.

Odeio os indiferentes também por me entediarem com seu choramingo de eternos inocentes. Peço as contas a cada um deles sobre como cumpriram a missão que a vida lhes impôs e lhes impõe cotidianamente, sobre o que fizeram e especialmente sobre o que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar minha piedade, que não devo dividir com eles as minhas lágrimas. Sou partidário, vivo, já sinto pulsar nas consciências viris da causa que escolhi a cidade futura que essa causa está construindo. E nela a cadeia social não pesa sobre poucos, nela cada coisa que acontece não é por acaso, por fatalidade, mas pela ação inteligente dos cidadãos. Não há nela ninguém que esteja na janela só olhando enquanto poucos se sacrificam, sangram em sacrifício; e aquele que estiver na janela, em uma emboscada, quererá usufruir do pouco bem que o trabalho de poucas pessoas tentou realizar e descontará a sua desilusão insultando o sacrificado, o sangrado, porque não conseguiu cumprir seu objetivo.

Vivo, sou partidário. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes.

11 de fevereiro de 1917.


[1] Tradução a partir da versão publicada no livro Odio gli indifferenti (Milão: Chiarelettere Editore, 2018 [2011]).

[2] Uma curiosidade: na citação utilizada por Gramsci, em italiano, a palavra que aparece é partigiano. Historicamente, esse termo se tornou mais conhecido com a Resistência Italiana ao fascismo. Durante as ocupações ocorridas de 1939 a 1945, na Segunda Guerra Mundial, partigiano era aquele que combatia contra os exércitos fascistas. Porém, no contexto em que o texto de Gramsci foi escrito, em 1917, tal termo foi utilizado no sentido de tomar parte, tomar partido a favor de determinada causa, em oposição à ideia de ser indiferente a algo [nota da tradutora].

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Afinal, por que pensar sobre literatura?

É muito comum se questionar sobre qual é a utilidade prática de algum conhecimento. A literatura, enquanto campo de estudos, também passa por esse questionamento.  Afinal, por que pensar sobre literatura? Para que serve uma análise literária? Por que existe um campo de pesquisas voltado aos estudos literários?

Falar sobre literatura é abrir-se a reflexões que envolvem todos os campos de conhecimento. Pensar literariamente é, sobretudo, pensar sobre o lugar do ser humano no mundo e suas manifestações. Nesse sentido (e sendo bastante simplista), os estudos literários se voltam a investigar mecanismos de construção mediados sobretudo pela linguagem e suas relações com o tempo e o espaço que ocupam (e ocuparam, e ocuparão).

Partindo desses questionamentos, o objetivo desse blog é divulgar, de maneira simples e acessível, trabalhos sobre literatura, tanto em andamento quanto finalizados, com o intuito de mostrar que o universo dos estudos literários pode transcender a ideia de que uma pesquisa acadêmica precisa necessariamente ter uma finalidade prática.

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Sugestão de leitura: Antoine Compagnon, Literatura para quê? Tradução de Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.