As mulheres dos estudos literários: uma conversa com Vera Lúcia de Oliveira

atravessar cada corpo
tocar o espesso do osso
que é nosso e do outro
estar onde se padece
com fúria de paciência
estar onde se lavra uma horta
onde se lava uma roupa
onde se reza e se cura uma dor
estar onde se nasce e onde se fenece
e ser nesse morar e estar nesse morrer

Vera Lúcia de Oliveira, em Minha língua roça o mundo

Há um ano conheci pessoalmente Vera Lúcia de Oliveira, durante o encontro do Mulherio das Letras Europa. Ali conheci seu comprometimento com o Mulherio das Letras, mas também sua poesia, sua atuação como professora e pesquisadora, seu empenho político. Essa conversa surge então a partir desse encontro e da admiração que tenho por seu trabalho. Ela é uma das mulheres dos Estudos Literários que nos inspiram força e coragem.

Vera Lúcia é poeta e publicou, entre diversas obras em português e em italiano, o livro A chuva nos ruídos (vencedor do Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras de 2005) e seu livro mais recente, Minha língua roça o mundo, de 2018. Também é docente e pesquisadora da Universidade de Perugia (UNIPG), na Itália, e publicou ensaios acadêmicos, entre eles sua tese de doutorado, que deu origem ao livro Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro, de 2002. É ainda organizadora de diversas antologias publicadas no Brasil e na Itália e tradutora de poesia brasileira para a língua italiana.

Vera Lúcia de Oliveira durante Encontro do Mulherio das Letras Europa 2018 [fonte: acervo].
Marca Páginas: Vera, nós nos conhecemos em um encontro do Mulherio das Letras na Europa, em 2018. Nessa ocasião, você fez uma apresentação muito interessante sobre o surgimento do Mulherio, refletindo sobre quais eram as intenções do projeto e como ele foi se organizando desde o início. Você poderia explicar para o Marca Páginas o que é o Mulherio das Letras e contar um pouco da história de como ele foi criado no Brasil?

Vera Lúcia: Essa pergunta requer um ensaio para respondê-la e tenho um texto publicado com o título “O Mulherio das Letras”[1], onde tento traçar os elementos de novidade desse movimento, que é um dos fenômenos culturais mais singulares e interessantes da atualidade brasileira. Nasceu quase espontaneamente, a partir de uma consideração informal feita pela escritora Maria Valéria Rezende, de que as mulheres que atuam no mundo das letras no país deveriam se unir mais e trabalhar em conjunto, já que continuam a ser discriminadas em amplos setores da sociedade. De fato, a maior parte das obras literárias publicadas pelas grandes editoras, são de escritores e os prêmios literários são quase sempre atribuídos aos mesmos, e raramente as colegas mulheres conseguem os mesmos espaços e a mesma visibilidade, não obstante a qualidade das obras de autoria feminina. Foi, portanto, a partir dessa constatação que nasceu a ideia de organizar um evento em João Pessoa, cidade em que vive Maria Valéria Rezende, evento que pudesse congregar as escritoras e as mulheres em geral que atuam no mundo das letras. Ele foi um grande sucesso e isso fez com que rapidamente essa rede de mulheres intelectuais, professoras, editoras, ilustradoras, jornalistas, artistas plásticas, compositoras, etc., encontrassem, no grupo “Mulherio das Letras”, um canal de comunicação, de troca de ideias e experiências, de publicações. Hoje há muitos grupos, também regionais, como o Mulherio das Letras de São Paulo, de Brasília, do Paraná, e assim por diante, onde as mulheres se unem para promover eventos de interesse e importância, como o que realizamos em Perugia, em outubro de 2018.

Marca Páginas: Hoje, vemos de fato que o Mulherio das Letras cresceu muito e ganhou novos espaços para além do Brasil. Seus desdobramentos estão presentes na Europa, nos Estados Unidos, entre outros lugares. Como você entende essa expansão do projeto?

Vera Lúcia: Entendo essa rápida expansão por uma exigência que as mulheres tinham de formar uma rede de contatos e intercâmbios. Nós aqui na Europa, por exemplo, estamos de certa forma isoladas. Inseridas, sim, nos vários países, mas distantes do Brasil. Somos estrangeiras aqui e todas nós vivemos experiências similares, de inicial dificuldade de inserção nas respectivas realidades culturais, de estranhamento, às vezes de nostalgia e solidão, às vezes simplesmente de vontade de falar com alguém na própria língua. Então, esse segundo encontro (o primeiro se realizou em 2017, em Paris) deu muito certo, para mim foi intenso e bonito e conheci mulheres batalhadoras, que estão fazendo e acontecendo onde quer que estejam. Escrevem, publicam, organizam feiras literárias, fundam editoras, são realmente ativas.

Marca Páginas: Você é poeta e também docente na Universidade de Perugia, ou seja, duas atuações bastante relacionadas à exposição pública em ambientes literários e acadêmicos. Enquanto mulher, de que maneira você acha que seu gênero impactou e impacta nas suas relações profissionais?

Vera Lúcia: No meu caso, até hoje nunca me senti discriminada como mulher no ambiente de trabalho aqui na Itália. Mas, com certeza, em outros contextos, sim, muitas vezes até no dia a dia, com certas piadinhas sobre o gênero feminino que todas conhecemos.

No Brasil, no entanto, sinto que há mais misoginia e machismo e que a falta de respeito é sentida até andando na rua, com homens que se sentem no direito de fazer comentários sobre como nos vestimos. Quando era adolescente, e tímida, tinha horror desses comentários e um dia dei com a bolsa na cabeça de um jovem que, além do comentário, me tocou o seio. Voltei-me na hora e bati a bolsa com tanta força na cabeça que ele saiu até meio zonzo. Desde aquele dia, aprendi a me defender nessas situações.

No âmbito da escrita, sinto que para uma mulher é mais difícil, porque o mundo das letras ainda é predominantemente masculino. É difícil ver uma mulher reitora, por exemplo, ou diretora de jornal.

Vera Lúcia de Oliveira [Fonte: acervo].
Marca Páginas: A experiência de dar aulas sobre literatura brasileira e portuguesa em uma universidade estrangeira certamente também é um tema muito interessante. Como docente e pesquisadora, o que você teria a dizer sobre a recepção da literatura brasileira no exterior atualmente?

Vera Lúcia: Gosto muito do meu trabalho, gosto da pesquisa e da relação com os alunos. Na verdade, desde pequena queria ser escritora e comecei a escrever cedo. Mas entendi que é muito difícil viver de literatura e ainda mais se o gênero que se escolhe é o poético. Então, pensei que a forma mais inteligente de ficar no mundo da escrita, de ser escritora, era escolher um tipo de trabalho que me deixasse próxima à literatura. Optei pelo ensino universitário, onde aprendi e aprendo muito todos os dias. Além disso, vivendo longe do Brasil, ensinar cultura e literatura brasileira é como estar próxima ao meu universo, onde reúno dois mundos, aliás três, porque ensino também literatura portuguesa. Estou dentro e fora, ao mesmo tempo, desses países, e tenho por isso uma dupla perspectiva.

Quanto à recepção, não se pode pensar que na Itália todos conheçam nossos escritores. Sabem pouco e, sobretudo nos últimos anos, depois do chocante impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o Brasil perdeu prestígio. Durante os governos Lula e Dilma o Brasil era notícia nos jornais, porque o país cresceu, a economia se expandiu, havia a presença do governo em encontros internacionais, a projeção era enorme. Isso fez com que aumentasse o interesse pela língua portuguesa e pela literatura do nosso país, o número de alunos cresceu, as universidades italianas passaram a oferecer mais bolsas para os estudantes daqui, porque, de fato, o mercado começou a pedir profissionais na área luso-brasileira. Agora, perdemos tudo isso, infelizmente. Às vezes percebo que quem vive no Brasil não tem a percepção do que perdemos em termos de interesse e prestígio no exterior. Claramente isso teve um impacto, porque os alunos diminuíram em praticamente todos os países europeus e começaram a cortar cadeiras de ensino de literatura brasileira.

Marca Páginas: Minha última pergunta é, na verdade, uma pergunta que tenho feito a mim mesma e, por isso, gostaria de criar aqui uma troca de pontos de vista. São tempos difíceis no mundo e, sobretudo, no Brasil. A ascensão de um governo conservador e despreparado politicamente para assumir essa responsabilidade nos deixa bastante preocupadas com o rumo do nosso país. Além disso, vemos na Itália e em outros países exemplos dessa mesma onda de conservadorismo retrógrado. Na sua opinião, enquanto poeta e professora, o que é possível se fazer em um momento como esse? Você acredita no poder de esclarecimento e transformação que a educação e a literatura possuem?

Vera Lúcia: Como disse acima e você mesma confirma, a situação é complexa e no momento o nosso trabalho é ainda mais difícil. Os universitários são alunos que se informam mais e é necessário falar de forma aberta e crítica sobre o que acontece em nosso país. Por outro lado, entendo que a literatura tem um fundamental papel humanizador e ler os nossos escritores contemporâneos é ler o Brasil. Faço o meu trabalho com responsabilidade e sei que podemos fazer muito no sentido de incentivar os alunos a desenvolver o senso crítico, a ver mais, a se interessar mais pelo mundo, a se dedicar e a estudar os fenômenos que nos envolvem, porque o mundo hoje é de fato um corpo em que tudo está interligado. O que acontece no Brasil tem reflexo aqui na Itália, o que acontece na África tem reflexo no Brasil, e assim por diante, não se pode mais falar de fenômenos isolados. A onda conservadora retrógrada, como você bem define, é contagiosa. Claramente, ela é fruto de um poder econômico e político, que cerceia e censura, nos faz perder direitos adquiridos, discrimina, simplifica a visão de mundo das pessoas, tenta anular as diferenças ou vê-las como algo que deve ser extirpado. Um intelectual tem que estar presente, destrinçar esses mecanismos de exclusão e repressão.

* Para mais informações sobre Vera Lúcia de Oliveira: <http://www.veraluciadeoliveira.it>.

[1] “O Mulherio das Letras”. Em Revista de Letras Norte@mentos, Universidade Federal de Mato Grosso, Sinop, vol. 11, 2018, pp. 47-61. Disponível em: <http://sinop.unemat.br/projetos/revista/index.php/norteamentos/article/view/3252>.

Cartoneras: a publicação de livros como instrumentos de resistência

Ao longo dos últimos meses, temos visto uma série de notícias sobre a crise do mercado editorial no Brasil. Sem entrar na discussão sobre o que é real e o que é especulação nesse cenário, o fato é que grandes redes e conglomerados editoriais brasileiros (e é preciso deixar claro: sustentados muitas vezes por empresas e capitais estrangeiros) estão lidando com dívidas exorbitantes, fechamento de lojas, demissão de funcionários e muitas outras perdas pelo caminho. Com isso, nós, leitoras e leitores, também perdemos alguma coisa.

Porém, paralelamente a essa situação, existe um respiro no mercado editorial com o qual ganhamos muito mais e que, por isso, merece nossa atenção. Pequenas editoras independentes têm ocupado os espaços literários em nosso país com livros de qualidade, produzidos segundo uma lógica totalmente diversa daquela praticada por editoras de grande porte. E é através da existência desse outro cenário editorial que as Cartoneras têm ganhado cada vez mais destaque, com uma proposta de publicação baseada em critérios bastante originais.

No início dos anos 2000, em Buenos Aires, na Argentina, surgiu a cooperativa Eloísa Cartonera com o objetivo de encontrar alternativas à crise econômica que ocorria no país e, ao mesmo tempo, tornar a literatura mais acessível para a população. Foi assim que se concretizou a ideia de utilizar papelão, recolhido nas ruas da cidade por catadoras e catadores de papel, para criar livros costurados e pintados à mão individualmente. O papelão, que a princípio seria descartado como lixo, ganha novo significado e se transforma em capas coloridas e únicas para livros impressos a um custo reduzido. Dessa forma, tal processo de confecção possibilita, além da reutilização de materiais recicláveis, a comercialização de livros por preços mais baixos. Não é à toa que, em pouco tempo, o projeto adquiriu importância e reconhecimento e publicou, além de escritoras e escritores estreantes, nomes renomados da literatura argentina, como Ricardo Piglia e César Aira.

Antologia do poeta brasileiro Haroldo de Campos, publicada em edição bilíngue pela Sarita Cartonera (Lima, Peru), em 2005

Foi em 2006, por ocasião da 27a Bienal de São Paulo, cujo tema era “Como viver junto”, que a experiência de Eloísa Cartonera finalmente chegou ao Brasil e começou a se estabelecer aqui graças ao trabalho de Lúcia Rosa. Em 2007, a partir da parceria entre Lúcia, Peterson Emboava e outros integrantes da cooperativa argentina, surge enfim a Dulcinéia Catadora, editora pioneira na editoração cartonera em nosso país.

Dulcinéia Catadora está localizada em uma cooperativa de reciclagem, na cidade de São Paulo. Já publicou cerca de 130 títulos e vendeu mais de 12 mil exemplares, conforme números informados no site da editora. A equipe também tem realizado oficinas em outros ambientes, divulgando e reunindo cada vez mais apoiadores. No catálogo de publicações, entre livros de poesia, contos e teatro, vemos nomes de autores estreantes, que graças à editora puderam ter seus trabalhos publicados pela primeira vez, assim como estão presentes grandes figuras da literatura brasileira contemporânea, como Alice Ruiz, Plínio Marcos e Manoel de Barros.

Tive a oportunidade de conversar, por e-mail, com Lúcia Rosa no final do ano passado, quando ela me contou um pouco mais sobre o coletivo. Lúcia explicou que a editora norteia suas atividades seguindo valores como “troca, sustentabilidade, luta contra a invisibilidade, compartilhamento do sensível, acesso à literatura e construção de vias alternativas para a divulgação de autores não inseridos no mercado editorial tradicional”. Por se sustentar em ideais como esses, ela afirma que a Dulcineia Catadora é “um coletivo com uma ação ativista”.

Segundo essa perspectiva, o livro é então tratado como um “instrumento de resistência”, que foge da “produção em larga escala, cada vez mais sem sentido,  resultado de uma produção fria, massificante”. De acordo com Lúcia, essa atitude de resistência também molda o processo de seleção dos títulos que serão publicados, afinal prioriza-se o experimentalismo de quem escreve, mais do que a preocupação por vender livros: “como o lucro não é nosso objetivo, ficamos livres para divulgar autores que não desenvolvem uma literatura de fácil apelo”.

Fonte: dulcineiacatadora.com.br

Movida por essa possibilidade de ressignificação do objeto livro, a escritora ítalo-brasileira Francesca Cricelli publicou pela Dulcinéia Catadora, no início deste ano,  sua primeira prosa, Errância. No livro são narradas suas experiências de deslocamento e viagem, tema que pauta suas experiências pessoais e literárias desde que se mudou para a Itália quando ainda era criança. Na entrevista que realizamos em dezembro do ano passado, Francesca contou como aceitou o convite para publicar esse livro por uma editora cartonera antes de publicá-lo por uma editora não artesanal. Ela acredita que “usar materiais recicláveis nos ajuda a ter uma consciência maior”, o que altera a experiência de publicação: “conhecer pessoalmente quem fabricou e editou o seu livro é algo que transforma a relação com o objeto”.

Francesca declarou ainda que acredita na importância de sermos “cupidos da leitura”, facilitando o “enamoramento entre leitor e livro”. Para a escritora, é essencial estarmos atentos à formação de leitores e, nesse sentido, Lúcia aposta na aproximação através do trabalho artesanal que envolve cada publicação cartonera: “para chegar às mãos do leitor os livros precisam ir além, somando linguagens; precisam ter como diferencial aquela fatura artesanal, cuidadosa, criativa e pessoal que marca as produções independentes”.

Errância, de Francesca Cricelli, publicado por Dulcinéia Catadora em 2018

O processo de fazer esses livros chegarem às mãos dos leitores se torna assim um movimento que também passa a ser ressignificado, mostrando que o encontro entre leitores e livros não se dá apenas em ambientes virtuais ou livrarias tradicionais. Para que isso possa acontecer, Francesca considera importante a “itinerância editorial” possibilitada pela existência de feiras e eventos literários que modificam a cena atual da literatura no Brasil. “Há uma proliferação de eventos literários em que a venda dos livros acontece em paralelo; acho que estamos há um tempo inventando novas formas de existirmos no campo editorial”, declara a escritora. Nesses ambientes, ela destaca ainda como é possível encontrar momentos “de alegria e efusividade, pois compram-se os livros, conhecem-se autores e editores”, resultando em trocas diretas entre as várias etapas que fazem parte da publicação de um livro.

A experiência das cartoneras tem ainda conquistado novos territórios, por exemplo, viajando por outros continentes e motivando pesquisas em universidades. A pesquisadora Liz Gray, doutora em Literatura Comparada pela Brown University, defendeu recentemente sua tese sobre as poéticas de intervenção na América Latina, pensando como as crises econômicas causadas pelo modelo neoliberal de produção e consumo acabaram por motivar nos países latino-americanos justamente o surgimento de práticas alternativas de ativismo, as quais estão relacionadas à arte e à literatura. Parte de sua pesquisa se volta à produção cartonera, inclusive às iniciativas brasileiras, como a de Dulcinéia Catadora.

Além disso, pude assistir, em 2018, a uma apresentação da professora e pesquisadora Paula de Paiva Limão, da Università degli Studi di Perugia, na qual foi abordado o tema das editoras cartoneras. Paula mencionou encontros e eventos realizados recentemente na Europa e nos Estados Unidos, nos quais a produção cartonera foi o tema central, o que demonstra a disseminação desses projetos ao redor do mundo. Outro ponto analisado por Paula foi como existe uma característica que unifica essa prática em todas as experiências analisadas por ela: as Cartoneras criaram espaços onde circulam a voz e o trabalho de mulheres. Desde as catadoras de papelão, relegadas às margens da sociedade não apenas por seu gênero mas também por sua classe social, até a escritoras e editoras, que participam da publicação desses livros, observamos o envolvimento de mulheres que assumem uma posição essencial na editoração cartonera.

Projetos como esses, entre tantas outras iniciativas menores e independentes que têm surgido nos últimos anos, mostram que uma outra forma de existência é possível, em alternativa ao sistema dominante que vê na publicação de livros uma oportunidade de lucrar com o consumo de literatura. É uma luta desproporcional tentar medir forças com o capital e com o consumismo, mas não podemos deixar de participar de uma batalha só porque ela vai ser difícil de vencer. Seguimos!

Para saber mais sobre as Cartoneras:

Um quase relato de uma viagem, uma experiência, um livro…, por Daísa Rossetto

A escrita de um livro pode ter muitos pontos de partida: um acontecimento pessoal, uma criação ficcional, uma encomenda editorial, e por aí vai. Quando conheci a escritora Daísa Rossetto, essa foi a pergunta que quis fazer a ela – afinal, qual foi o ponto de partida para você escrever seu livro Quando o vento sopra em Israel (2018)? E a resposta dela foi: uma viagem de 12 dias por Israel para, quem sabe, escrever um livro. Para contar essa história surpreendente, convidei Daísa para compartilhar seu relato com o blog Marca Páginas. Ela topou e eu só posso lhe agradecer por se dispor a contar sua experiência de forma tão sensível.

Daísa Rossetto é mestra e graduada em Direito, pela Universidade de Caxias do Sul, com a dissertação “A relação entre direito e literatura à conflitante questão animal: uma análise dos personagens Flush e Baleia” (2016), que relaciona Direito, Literatura e Animais com as obras Vidas Secas e Flush, Memórias de um cão. Atualmente, é doutoranda em Literatura de Língua Portuguesa pela Universidade de Coimbra. Participou da coletânea Outono Literário: Mulherio em prosa e verso (2018), do Mulherio das Letras Europa, e em breve será lançada, pela Editora Desdêmona, a coletânea As coisas que as mulheres escrevem, da qual também faz parte.

Um quase relato de uma viagem, uma experiência, um livro…, por Daísa Rossetto

Não sei quantas vezes sentei em frente ao computador com o objetivo de escrever sobre a aventura que foi ir para Israel em busca do que então se tornou o meu primeiro livro publicado. Digo publicado porque eu poderia nadar num mar de escrituras. Escrevo infinitas coisas que repousam calmamente nos arquivos de um computador que, já cansado, ainda resiste na função de arquivista de uma crescente pilha de pastas com datas ( / / ), de ano após ano.

Mas voltando ao assunto, em linhas gerais foi assim: em meados de 2017, fui convidada para acompanhar um grupo de filósofos e filósofos clínicos a uma viagem de estudos que se realiza todos os anos em algum lugar do mundo e que naquele ano foi em Israel. O objetivo era que a viagem pudesse também prosperar através de uma obra literária, pessoal, autoral. Sendo assim, não me era exigida qualquer obrigação de escrita, apenas que eu pudesse me transpor livre para desenhar as palavras que quisesse e como quisesse. Fiquei honrada com o convite, mas, num primeiro momento, não achei que se concretizaria.

No entanto, conversa vai, conversa vem, ficou decidido: eu iria para Israel. A preparação que fiz para a viagem foi um tanto diferente do que se espera de um viajante que reúne o máximo de informações possíveis sobre o futuro destino. O que fiz foi ler o livro de Érico Veríssimo, Israel em abril e, por garantia e questão de sobrevivência, pesquisar opções de comida vegana lá. Comprei um caderno e testei várias canetas que foram divididas entre bolsa, mochila e mala. Foi isso.

Daísa Rossetto. Foto por Michelle Csordas

Havia algumas semanas até a viagem, mas nesta altura já estava eu em Israel, cheguei lá antes dos meus pés. Comecei a vivenciar Israel ali, num pequeno pedaço de mundo onde se mora depois de onde os olhos alcançam. Comecei a escrever antes de partir, escrevi sentada na mesa da cozinha enquanto minha mãe preparava o almoço, escrevi num café em Gramado, escrevi no aeroporto. Continuo escrevendo…

Também não sei dizer quantas horas andei pelas ruas da pequena cidade de Nonoai (RS), olhando para o céu azul e espreitando os filhotes de coruja, imaginando como era o céu nas margens do mediterrâneo; as histórias dos olhos não estranhos dos estranhos; esperando pelo vento para empurrar meus olhos para o topo de onde as tâmaras doces mudam de cor. Não tive medo algum de escrever nem receio de ser atingida pelo branco que acinzenta as mãos dos escritores que ficam sem saber o que dizer. Em contrapartida, não sei quantas vezes senti as fisgadas da dúvida sobre escrever sobre Israel quando eu, desde antes, esperava conhecer o outro lado do muro – a Palestina (sim, desde o tempo em que eu imaginava seria a jornalista correspondente – mas abandonei o curso cedo demais).

Em setembro, embarquei num avião com conexão em Istambul e destino Tel Aviv. É verdade, a aventura já tinha começado muito tempo antes. No entanto, chegar e estar num lugar tão diferente e ao mesmo tempo tão igual foi uma oportunidade de abrir meus olhos mais um pouco para perceber que as respostas certas não existem. Existe sempre um âmago mais profundo entrelaçado a outras coisas que podem ser chamadas de questões – mas eu não gosto desse termo; diria outros reflexos da vida, talvez… (quem sabe seja isso o que se chama de complexidade).

Na primeira noite no Hotel de Tel Aviv, eu não conseguia dormir (“o que eu tô fazendo aqui?”, pensava) e então no escuro peguei o celular e escrevi: “Senti medo deste mundo por onde meus pés se aventuram carregando um pedaço de mim que é toda de sonho… Quis chorar pelo desconhecido que me abraça e no meio da noite me rouba o sono desperto em ansiedade… Penso nos primeiros pássaros que vi aqui e sinto outra vez a brisa quente da terra que me foi prometida, choro emocionada com tudo que é mundo e que pode ser concreto em minha mão… Acalmo no peito esse futuro insolúvel que num recado alerta que existe uma missão…”.

Cada vez que escrevo me salvo, me curo. Escrever ali não era obrigação nenhuma, era oportunidade de escrever se houvesse algo a escrever. E eu descobri coisas que me levaram a isso, tais como sentir o vento e ter paz, ver o sol se pondo e sentir que se está em casa, que qualquer lugar pode ser casa…

Fiquei 12 dias em Israel, acompanhei o curso na Universidade Hebraica, escutei sobre mentes incríveis, ouvi pensadores lamentarem a tensão e o conflito na região. Reparei em quem ia e vinha nos corredores e nas ruas. Estive distraidamente atenta a tudo que estava a minha volta, deixei-me viver e deixei que tudo fosse como quisesse ser. Israel foi flor, mas como flor não escondeu os espinhos que machucam os olhos. Eu os sinto quando tomo a forma de um muro que vi desenhado no horizonte de um mesmo solo. Talvez, não sei concluir, no solo sagrado a irrigação vem das águas do mar, mas também vem do sangue. Ainda é penitência reconhecer o quão perto estavam as armas, tão perto de quem é julgado por ser diferente. Ainda é penitência pedir paz com guerra.

Sem religião ou devoção a algo, vivi emoções singulares ao sentir emoção a partir da emoção dos outros. Foi assim quando me deparei com a gente chorando comovida pelas margens do Mar da Galileia – (quem era aquele mar?). Entendi o que era sagrado quando, chegada a hora, as portas dos comércios da cidade murada se fechavam e atrás delas o tapete se estendia e os joelhos se dobravam. Todas as histórias do imaginário infantil plantadas na escola de repente viravam cenário para o gato que se aquietava sentado às margens de um leito corrente de pessoas, os corredores com saídas marcadas em que só o bicho sabia onde estava. E as histórias em desfechos de épocas. Tempos sobrepostos em tempos. Nenhuma coisa nem outra, um pouco de tudo. E o mar, os ares, a areia, as voltas em avenidas vestidas em arte e as livrarias erguidas num idioma que não deduzo.  E o fim do dia sagrado e o dia sem trabalho e os goles de vinho e as caminhadas noturnas.

Foto por Daísa Rossetto

Em cada chegada acalmei meus pés e descansei meus olhos, tentei respeitar cada canto para então ouvir tudo aquilo que se lançava ao próprio gosto de ser invisível. Cada relato que posso fazer desta experiência acaba por me levar a outros becos labirínticos. Não se esgotam. Reavivam e descobre-se qualquer outra coisa outra vez, pela primeira vez.   

Depois de 12 dias voei para Portugal. Escrevi um livro a partir daquilo que tinha anotado em mim e usei as anotações que ainda faziam sentido do caderno verde – companheiro de viagem. Passado quase um ano depois de ter terminado o livro, consigo quase perceber o quão natural foi desenha-lo. Alguns episódios, sem dúvida, hoje me deixam em ranhuras, entre eles o fato do meu primeiro livro ter Israel no título e como isso pode ser lido como uma insensibilidade. Não sou indiferente a quem está sofrendo. Não defendo estado de opressão, nem fecho os olhos para quem é roubado de suas terras, de suas crenças, das próprias vivências e da própria vida. A verdade é que chego a lamentar ter escrito esse livro cada vez que me encontro com o que estão fazendo com o povo da Palestina.

Mas o livro que escrevi não é sobre um país, nem um arremesso de confetes a ele. É um relato de quem se lançou ao mundo e descobriu um pouco de si. Hoje o livro não é mais meu, tem vontade própria, é o que quiser ser e de quem o quiser tomar para alguma coisa. A partir da experiência de escrita descobri uma fração da minha escrita, tive lições valiosas sobre a minha forma de ditar palavras. Fiz sem receio de quem iria ler ou se quem o lesse iria gostar ou não. Esse livro me ensinou a escrever. Mas, claro, eu sei que ainda não o sei de todo e talvez nunca o saiba…

Não sei se fechei os olhos ou se abri olhos outros enquanto escrevi tais páginas. O que sei é que para quem o escreveu só escrever importava. Ainda é assim, escrever importa. Publicar, ser lida, ser vista ou notada, vender exemplares, isso fica pra depois… O que espero continuar fazendo é escrever. No tempo de escrever o que for preciso escrever, mesmo quando o computador não aguentar mais arquivar.

Literatura, Política e Resistência! As Mulheres dos Estudos Literários

Ontem, dia 26 de outubro de 2018, tive a honra e a alegria de participar de um encontro do Mulherio das Letras. Esse grupo de mulheres, que se auto-organizou em 2016/2017 para dar voz à literatura lida e escrita por mulheres, é um dos movimentos mais lindos que já vi acontecer no Brasil. E poder estar pessoalmente com essas tantas mulheres foi uma experiência que iluminou minha jornada e renovou minha fé na vida. Então, eu gostaria de compartilhar aqui com vocês o que eu apresentei lá ontem. Eu queria dizer para todas nós, mulheres, que sabemos que nossa luta nunca foi fácil, mas que nossa força renascerá sempre que precisarmos ser resistência. Às vésperas do segundo turno das eleições brasileiras, eu queria lembrar cada mulher que eu conheço, e cada mulher que vocês conhecem, de que floresceremos quantas vezes forem necessárias! Meu amor por todas vocês <3

 

Flash mob pela democracia em Perugia

 

As Mulheres dos Estudos Literários

Cláudia Tavares Alves

 

Outubro Literário: Mulherio Europa em verso e prosa

Università degli Studi di Perugia – Italia

26/10/2018

 

Bom dia. Gostaria de agradecer ao cuidado da organização, sempre tão prestativa, e à escuta de vocês aqui hoje. Pensando em como eu poderia começar esta apresentação, me dei conta de que seria possível partir de muitos pontos diferentes para abordar o tema das Mulheres nos Estudos Literários. Eu poderia, por exemplo, começar me apresentando, dizendo que sou doutoranda na Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, que estudo literatura há 11 anos, e que atualmente estou na Itália fazendo um estágio de pesquisa sobre o escritor Pier Paolo Pasolini. Ou eu poderia começar dizendo que tenho um blog de divulgação científica sobre Literatura, o Marca Páginas, vinculado a um portal de blogs da Unicamp, e que nele mantenho uma série de publicações que se chama, justamente, as Mulheres dos Estudos Literários. Eu poderia também citar alguma escritora mulher que se dedicou a pensar sobre seu próprio fazer literário ou a teorizar a produção literária existente, e daí pegar um gancho para pensar a relação das mulheres com a Literatura. Quem sabe eu poderia ainda começar pela situação caótica e horrenda que estamos vivendo em nosso país e como, enquanto mulheres brasileiras, temos visto nossos direitos mais básicos serem ameaçados por um candidato à presidência. E que pouco importa não estarmos fisicamente no Brasil nesse momento de instabilidade política, continuamos sendo brasileiras onde quer que estejamos.

Apesar dessas tantas possibilidades, escolhi começar minha apresentação dizendo que hoje estou aqui não só como Cláudia Tavares Alves, mas também como alguém que conversou e ouviu companheiras da área dos Estudos Literários e que, por isso, acredita que tem algo a dizer sobre o assunto. Estou aqui como uma mulher que foi silenciada e que viu serem silenciadas diversas outras mulheres ao longo desses 11 anos de estudo e pesquisa. Estou aqui como alguém que teve que lidar durante todo esse tempo com a sensação de incapacidade, de inferioridade e de não merecimento por ocupar os lugares que ocupa e que sabe que, infelizmente, seu caso não é único nem isolado. Por isso, ainda que falando em nome de outras mulheres, é difícil não conjugar esses verbos na primeira pessoa do singular: essas experiências foram sentidas no meu corpo, na minha pele, na minha mente. E mesmo que elas não tenham acontecido exclusivamente comigo, como pude confirmar com os depoimentos que recolhi, é sempre difícil despir-se das próprias experiências individuais para falar em nome de alguma coletividade.

Mas talvez a primeira e mais importante coisa que preciso dizer antes de desdobrar esse ponto é que, de todos os inícios que imaginei, nenhum deles poderia ser imparcial ou apolítico. Estar aqui hoje, ao lado de mulheres extremamente fortes e capacitadas, é um gesto político que não podemos perder de vista. Hoje, na Itália e no Brasil, somos vozes políticas que ressoam, que lutam, que resistem. Um encontro de mulheres para falar sobre Literatura em suas diversas manifestações só pode ser um gesto político e, nesse sentido, precisamos nos lembrar de que estamos reunidas hoje por nós mesmas, e também pelas outras tantas mulheres que não puderam estar aqui.

E pensando nas Mulheres dos Estudos Literários, não consigo evitar a ideia de que temos feito tantas coisas apesar de. Apesar do machismo, dos espaços reduzidos, do silenciamento, da insegurança, do pouco incentivo e investimento, hoje temos uma rede de mulheres lendo, escrevendo, traduzindo, estudando, produzindo conhecimento de alta qualidade. Se historicamente precisamos lembrar que nosso lugar foi por muito tempo reservado a trabalhos domésticos, hoje, pelo contrário, somos maioria no Ensino Superior[1]: ocupamos 57,2% das vagas das universidades brasileiras. Esse número, entretanto, não corresponde ao número de professoras universitárias: nesse caso, somos ainda 45,5% do total de docentes de Ensino Superior em nosso país. Um número bastante baixo se pensarmos que, na Educação Básica, 80% são de professoras do sexo feminino.

Esses números foram divulgados pelo INEP (Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa), em 2016, e, para além dos dados quantitativos, tive contato com uma série de depoimentos que me fizeram perceber como não foram tantas as professoras mulheres que em geral tivemos na graduação no que se refere a crítica, teoria e história literária. Mesmo sendo uma área ligada a Letras, na qual majoritariamente vemos mulheres se graduando, a Literatura, por algum tempo, foi um território tomado por homens. Por isso foi e ainda é bastante comum que professoras sejam referenciadas, em geral, apenas como professoras, enquanto que os professores homens podem ser professores, escritores, intelectuais, renomados e reconhecidos por seus sobrenomes.

E o que dizer ainda das mulheres que foram e são sutilmente apagadas da história? Penso, por exemplo, em quantas de nós chegamos a ler Gilda de Melo e Sousa ou Viviana Bosi, grandes pensadoras e professoras universitárias de Literatura. Com certeza, não na mesma proporção com que lemos Antonio Candido e Alfredo Bosi. É claro que não estou aqui diminuindo a importância desses críticos literários devido ao seu gênero masculino, mas me pergunto há algum tempo por que será que lemos tão poucas mulheres em todas as etapas de nossa formação escolar e universitária. Me pergunto, por exemplo, por que quando me formei, em 2006 no Ensino Médio, minhas referências literárias de escritoras estavam reduzidas a Clarice Lispector, Cecília Meirelles e Lygia Fagundes Telles. Isso porque sempre fui uma aluna que gostava de Literatura, tive boas condições econômicas para adquirir livros e me interessava em ler para além das leituras obrigatórias. Quantas das minhas colegas pararam em Machado de Assis e Graciliano Ramos, e nunca souberam dos livros incríveis que foram escritos também por escritoras mulheres?

Atualmente, com as ondas do feminismo e os movimentos sociais que têm trazido para as esferas institucionais esse tipo de debate, podemos perceber um certo esforço em querer modificar esse cenário. Para pensarmos em exemplos concretos, trago a lista de leituras obrigatórias proposta pelo vestibular da Unicamp. Ele é historicamente considerado inovador e progressista no sentido de priorizar a capacidade de reflexão crítica dos candidatos. Além disso, tem sua própria lista obrigatória de leituras, a qual é uma das mais atentas às discussões atuais e busca sempre inovar e dialogar com as questões contemporâneas. Pudemos ver, recentemente, a inserção das canções do álbum Sobrevivendo no Inferno, do grupo de rap Racionais MC’s, como leitura literária obrigatória. Essa escolha, com certeza, representa uma quebra importante de paradigmas dentro do que pode ou não ser considerado Literatura.

Porém, já se deram conta de que a primeira vez que uma obra literária escrita por uma mulher esteve nessa lista foi em 2016, com o conto “Amor”, de Clarice Lispector? E por mais que exista um esforço em alterar essa situação, ela não melhora tanto assim com o passar dos anos. Antes de 2016, a lista era composta por 9 livros escritos por homens e nenhum por mulheres. Depois de 2016, a lista passou a ser composta por 12 leituras e apenas um conto escrito por uma mulher foi incorporado a ela.

Para as listas de 2019 e 2020, já anunciadas, a situação apresenta uma melhora que deve ser considerada. Dentre as 12 leituras obrigatórias, agora temos 3 escritas por mulheres. Em 2019, além do já mencionado conto de Clarice, temos o livro de poemas A teus pés, de Ana Cristina César, e os diários de Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. Para 2020, permanecem Ana Cristina César e Carolina Maria de Jesus, sai Clarice Lispector, e acrescenta-se Júlia Lopes de Almeida, com o romance A falência.

Confesso que eu não conhecia a escritora Júlia Lopes de Almeida antes da lista do vestibular e, assim como eu, acredito que muitas outras pessoas também não a conhecessem. Conversando com alguém que estudou justamente o romantismo brasileiro em sua pesquisa de Doutorado, percebi que nem mesmo ele conhecia a escritora desse período. Então, de alguma forma, a presença desse livro na nova lista de leituras obrigatórias o reinsere na história literária brasileira, à medida que reconhece a importância de um livro esquecido por grande parte da nossa historiografia literária.

Acredito que esse movimento pode ser entendido de pelo menos duas maneiras distintas, mas complementares. A primeira a partir da ideia de que existe um movimento político de inserir a leitura dessas mulheres nas listas dos vestibulares, de forma que as próprias universidades passem a pautar os conteúdos escolares e acabem gerando dessa forma uma reação em cadeia. Ao levar os livros dessas escritoras para as salas de aula do ensino fundamental e médio, ainda que pela obrigatoriedade do vestibular, mais gente estará lendo mulheres.

A outra maneira seria entender que estamos, dentro das universidades, mais atentas a esse tipo de produção literária, e que, por isso, conforme conhecemos mais Literatura produzida por mulheres, mais encontramos boa Literatura escrita por mulheres. Então, a inserção dessas escritoras se deve à qualidade estético-literária dessas obras, que estavam até então esquecidas pela crítica e pelo público leitor, enão ao gênero a que elas estão vinculadas.

A meu ver, essas duas interpretações se complementariam e de maneira nenhuma a primeira anularia a pertinência da qualidade da segunda. Vejam, é consenso que não foram só os homens que escreveram e escrevem boa Literatura. Mas se não conhecermos a Literatura feita por mulheres, se não tivermos oportunidades para lê-las, não poderíamos sequer julgar sua qualidade.

A professora e pesquisadora Regina Dalcastagnè, em parceria com o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB), tem levantado dados alarmantes, aos quais me deterei brevemente apenas para ilustrar o nível de disparidade existente. Com a pesquisa Personagens do romance brasileiro contemporâneo, foi constatado que, entre o período de 1990 e 2004, nos quase 300 romances pesquisados, apenas 27,8% das obras foram escritas por mulheres. Os 72,2% dos escritores homens eram ainda, em sua grande maioria, brancos, de classe média e habitantes do eixo Rio-São Paulo. Esse dado talvez nos ajude a entender por que, no mesmo período e baseando-se nos mesmos romances pesquisados, apenas 37,8% das personagens eram mulheres e por que cerca de 16% desses livros não apresentavam nenhuma personagem mulher significativa[2]. É ainda chocante que, em um segundo momento dessa mesma pesquisa, que compreende o período de 2005 a 2014, entre os quase 200 romances pesquisados, esses dados se alteram muito pouco: 29,4% de autoras mulheres e apenas 34,6% de personagens femininas[3].

Se as mulheres escritoras são minoria e, por isso, são pouco lidas, e ainda não são representadas nos livros que lemos, como então nos sentirmos motivadas a ocupar esse lugar de escrita e de estudo? Não nos vimos, por muito tempo, representadas nas leituras que nos foram impostas e também nas leituras que pudemos escolher. Além disso, quantas mulheres ao longo dos anos foram incentivadas a serem escritoras? Acredito que pouquíssimas. Em contrapartida, nunca tivemos tantas mulheres escrevendo e se movimentando no meio literário como hoje – e a existência do Mulherio e desse evento nos últimos anos é uma prova maravilhosa de que esse espaço existe e pode ser diferente.

Registro da minha apresentação por Ana Júlia Valezi

É por todos esses motivos que posso dizer que estamos diante de um movimento que se complementa e faz a roda girar, possibilitando uma mudança dessa situação. E à medida que políticas públicas, como as das listas dos vestibulares, colocam em jogo mais escritoras mulheres, mais escritoras mulheres se sentem representadas e aptas a escreverem e publicarem suas obras. E assim, felizmente, a literatura produzida por mulheres ganha força no cenário literário brasileiro.

Quanto à área dos Estudos Literários, a situação também é ainda hoje um campo de ressignificação constante. Ouvi de mais de uma amiga, assim como ouvi de mim mesma por muito tempo, que a carreira acadêmica na área de Literatura não foi sequer desejada por pensarmos que essa área não seria para nós. O que significa, então, quando mulheres nem sequer cogitam uma possibilidade profissional por acreditarem que não servem, que não se encaixam naquela posição social? Com que frequência, aliás, ocorre essa espécie de autossabotagem em que, antes mesmo de considerarmos que não teremos capacidade para alcançar algo, dizemos a nós mesmas, em silêncio, que determinado lugar simplesmente não nos pertence? A construção social é tão forte, e estamos tão imersas nas escolhas que nos seriam óbvias, que não conseguimos mais conceber o que estão nos dizendo que é impossível de realizarmos.

Mas afirmo mais uma vez que estamos aqui hoje reunidas para lembrarmos umas às outras, cada qual com sua própria caminhada, que somos sim uma rede de mulheres extremamente capacitadas para fazermos o que quisermos. Estamos ocupando espaços que até pouco tempo atrás eram pouco imagináveis porque estamos nos vendo espelhadas em outras mulheres que conseguiram, que são brilhantes, que merecem estar onde estão porque têm capacidade de sobra para ocupar as posições que ocupam. E quando vemos outras mulheres nessas posições em que gostaríamos de estar, o impossível se torna possível.

Hoje, depois de tantos anos formulando e lidando com essas inquietações, faço questão de estar atenta à produção literária e crítica feita por mulheres. Mas é fato que grande parte desse acompanhamento se dá de maneira não institucionalizada, para além do universo acadêmico. O que quero dizer com isso é que é preciso que eu faça um esforço para chegar à Literatura e à crítica literária produzida por mulheres, pois nós ainda ocupamos um espaço reduzido na academia. Uma série de iniciativas, como o próprio Mulherio, nos ajudam a acessar esse tipo de conteúdo produzido por mulheres. Além disso, a pesquisa formal, nas bibliotecas, e a informal, em passeios despretensiosos por livrarias, não me deixam perder de vista que a cada homem que tenho a chance de ler, pois seu livro está exposto na vitrine, existe provavelmente uma mulher contemporânea a ele que não teve oportunidades igualitárias de ter seu trabalho divulgado.

E com isso retorno aos nossos dias presentes e penso que, quando o trabalho das mulheres em geral é diminuído até mesmo por um candidato à presidência do Brasil – e, infelizmente, isso provavelmente não o fará perder uma eleição –, estamos diante de um cenário pouco animador. Pesquisas realizadas recentemente, em 2017 e 2018, pela agência de empregos CATHO, mostram que ainda somos pior remuneradas em todas as áreas profissionais. Mulheres com ensino superior ganham ainda hoje um salário 43,5% menor do que homens ocupando exatamente os mesmos cargos. Além disso, somos minoria em cargos importantes e de gestão, e apenas aproximadamente 25% dos cargos de presidência são ocupados por mulheres. Nem mesmo na área da Educação, onde, como já vimos, somos maioria no ensino básico, essa disparidade salarial deixa de existir: as mulheres ainda recebem 9% a menos do que os homens[4].

E obviamente nada disso está relacionado à nossa menor capacidade de atuação. Pelo contrário, as experiências de trabalho tendem a ser melhores com mulheres ocupando cargos importantes, justamente porque precisamos nos preparar muito mais para fazer o que precisamos fazer, já que sabemos que seremos mais cobradas e mais questionadas por qualquer deslize cometido. E precisamos ainda demonstrar mais seriedade e compromisso com o trabalho, pois estamos sujeitas ao assédio moral e sexual recorrentes em ambientes de trabalho, inclusive dentro das universidades.

É diante desse cenário alarmante, entretanto, que nos refazemos. Somos mulheres, conhecemos desde sempre a força que nos habita e nos encoraja. Nossa própria existência é um ato constante de resistência e, por isso, os percalços de um mundo difícil de mudar não nos assusta. Estamos cercadas de boas companhias: boas companheiras de luta, boa literatura feita por mulheres, boas professoras, pesquisadoras e estudantes que hoje configuram uma geração que se questiona sobre as reflexões que tentei apresentar aqui hoje. A geração de crianças e adolescentes meninas que vem por aí, por sua vez, está chegando ainda mais consciente de que ninguém poderá limitar sua existência.

Eu gostaria então de terminar minha apresentação com a leitura de um poema escrito pela poeta italiana Piera Oppezzo, falecida em 2009, que está recolhido no livro Donne in poesia, de 1976. Fiz essa tradução há alguns meses quando a legalização do aborto não foi aprovada pelo Senado, na Argentina. Eu queria dizer para nossas hermanas, assim como eu gostaria de dizer aqui para todas nós hoje, que nossa existência como mulheres é a nossa maior força e que é com os nossos medos, com os nossos fracassos e os nossos erros, que reconstruímos essa nossa força. Com ela, nos reinventamos e reinventamos, inclusive, nossa própria esperança de que, um dia, um mundo menos desigual floresça. Obrigada.

 

O grande medo, de Piera Oppezzo

A história da minha pessoa

é a história de um grande medo

de ser eu mesma,

contraposto ao medo de me perder de mim mesma,

contraposto ao medo do medo.

Não poderia ser diferente:

na apreensão se perde a memória,

na submissão, tudo.

Não poderia

a minha infância,

saqueada pela família,

me permitir uma maturidade estável, concreta.

Nem a minha vida isolada

me permitir algo menos frágil

do que este debater-me entre ânsias e incertezas.

À infância, eu sobrevivi,

À idade adulta, eu sobrevivi.

Quase nada em comparação à vida.

Eu sobrevivi, no entanto.

E agora, entre as ruínas do meu ser,

Alguma coisa, uma utopia imóvel, está para florescer.[5]

[1] http://portal.inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/mulheres-sao-maioria-na-educacao-superior-brasileira/21206

[2] https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2018/03/19/as-mulheres-dos-estudos-literarios-regina-dalcastagne/

[3] https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-o-autor-brasileiro/

[4] https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/mulheres-ganham-menos-que-os-homens-em-todos-os-cargos-e-areas-diz-pesquisa.ghtml

[5] https://internopoesia.com/2014/09/09/piera-oppezzo/