Luciano de Oliveira
Cláudia Tavares Alves
É possível dizer que um dos escritores “que melhor soube interpretar o momento histórico e político da cultura italiana nos primeiros anos do pós-guerra foi Elio Vittorini”.[1] Isso porque Vittorini (Siracusa, 1908 – Milão, 1966) foi um dos protagonistas do ambiente cultural italiano entre as décadas de 1930 e 1950. Criticava a burguesia, por exemplo, através de personagens que representavam figuras políticas problemáticas, como em Il garofano rosso [O cravo vermelho] (1948), ou descrevendo a vida em um bairro operário, como em Erica e i suoi fratelli [Érica e os seus irmãos] (1956), ambos romances que circularam inicialmente em periódicos. Em 1945, publicou Uomini e no [Homens e não], romance dedicado ao tema da guerra e da Resistência. Com a queda do fascismo, Vittorini se envolveria ainda com a militância comunista e com um intenso trabalho pela renovação cultural italiana, o que pode ser visto em revistas como Il Politecnico e Il Menabò, em colaboração com a editora Einaudi. O escritor foi também tradutor, a partir da busca por uma experiência internacional, o que possibilitou a publicação de Americana (1942), importante antologia de escritores estadunidenses, como Edgar Allan Poe.[2] Conquistar novas fronteiras, olhando para a tradição democrática americana, era uma forma de eliminar as restrições impostas pelo fascismo e dar novo fôlego à tradição literária italiana.
Sua obra prima, Conversazione in Sicilia [Conversa na Sicília], narração alegórico-autobiográfica em primeira pessoa, foi publicada em episódios na revista Letteratura entre abril de 1938 e abril de 1939. Finalmente, quando reunida em um único volume, recebeu inicialmente o título de Nome e lacrime [Nome e lágrimas], em 1941, ao ser publicada pela editora Parenti; no mesmo ano, foi republicada pela editora Bompiani, com seu título definitivo[3]. Nessa obra, o narrador Silvestro, jovem intelectual que representaria o próprio Vittorini, volta à Sicília, vindo de Milão, para reencontrar sua mãe. O estilo empregado, em uma prosa quase lírica, evoca a ideia de fuga da realidade. Entretanto, durante sua viagem, o personagem reflete sobre a situação da Itália e das regiões mais marginalizadas ao final do regime, assim como sobre o seu papel político.[4]
O conto “Nome e lacrime”, cuja tradução para o português é apresentada aqui,[5] foi publicado pela primeira vez em 31 de outubro de 1939, na revista Corrente, e integrou a primeira edição homônima do livro, em 1941. É possível reconhecer, na escrita de Vittorini, referências aos tempos de repressão fascista. Alguns exemplos dessa afirmação ocorrem em trechos como a pergunta feita pelo guarda ao protagonista, buscando saber se este último estava escrevendo alguma mensagem de enaltecimento ou protesto (“Nenhum ‘Viva’? Nenhum ‘Abaixo’?”), ou ainda a menção ao Campo de Marte, região da Roma antiga dedicada a Marte, deus da guerra. Essa menção poderia também se relacionar ao famoso Champs de Mars, área próxima à Torre Eiffel, em Paris, que tradicionalmente servia a manobras da escola militar. Assim, apesar do tom misterioso que ronda a narrativa, percebemos que ela está relacionada à realidade mais imediata do escritor.
Boa leitura!
Nome e Lágrimas[6]
Eu estava escrevendo nas pedrinhas do jardim e já estava escuro havia algum tempo, com as luzes acesas em todas as janelas.
O guarda passou.
— O que o senhor está escrevendo? — ele me perguntou.
— Uma palavra — respondi.
Ele se inclinou para olhar, mas não viu.
— Que palavra? — perguntou de novo.
— Bem — eu disse. — É um nome.
Ele sacudiu as suas chaves.
— Nenhum “Viva”? Nenhum “Abaixo”?
— Não, não! — eu exclamei.
E ri também.
— É um nome de pessoa — eu disse.
— De uma pessoa que o senhor está esperando? — ele perguntou.
— Sim — eu respondi. — Estou esperando.
O guarda então se afastou e eu voltei a escrever. Escrevi e encontrei a terra embaixo das pedrinhas e escavei, e escrevi, e a noite ficou mais escura.
O guarda voltou.
— Está escrevendo ainda? — ele disse.
— Sim — eu disse. — Escrevi um pouco mais.
— O que mais o senhor escreveu? — ele perguntou.
— Nada mais — eu respondi. — Nada além daquela palavra.
— O quê? — gritou o guarda. — Nada além daquele nome?
E de novo sacudiu as chaves, acendeu a lanterna para olhar.
— Estou vendo — ele disse. — Não é nada além daquele nome.
Levantou a lanterna e me encarou.
— Escrevi mais fundo — eu expliquei.
— Ah, é? — ele reagiu. — Se quiser continuar lhe dou uma enxada.
— Me dê — eu respondi.
O guarda me deu a enxada, novamente se afastou, e com a enxada eu escavei e escrevi o nome até ficar muito profundo na terra. Eu teria escrito, na verdade, até o carvão e o ferro, até os metais mais secretos de nomes antigos. Mas o guarda voltou outra vez e disse:
— Agora o senhor deve ir embora. Estamos fechando.
Eu saí das valas do nome.
— Está bem — respondi.
Larguei a enxada, enxuguei a testa, olhei para a cidade à minha volta, além das árvores escuras.
— Está bem — eu disse. — Está bem.
O guarda sorriu maliciosamente.
— Ela não veio, não é?
— Ela não veio — eu disse.
Mas logo depois perguntei:
— Quem não veio?
O guarda levantou a lanterna me encarando como antes.
— A pessoa que o senhor estava esperando — ele disse.
— Sim — eu disse — ela não veio.
Mas, de novo, logo depois, perguntei:
— Que pessoa?
— Diacho! — disse o guarda. — A pessoa do nome.
E ele sacudiu a lanterna, sacudiu as chaves, acrescentou:
— Se o senhor quiser esperar um pouco mais, não faça cerimônia.
— Não é isso que importa — eu disse. — Obrigado.
Mas eu não fui embora, fiquei, e o guarda ficou ali comigo, como se me fizesse companhia.
— Noite bonita! — ele disse.
— Bonita — eu disse.
Então ele deu alguns passos, com a lanterna na mão, em direção às árvores.
— Mas — ele disse — tem certeza de que ela não está lá?
Eu sabia que ela não podia vir, mesmo assim estremeci.
— Onde? — eu disse em voz baixa.
— Lá — o guarda disse. — Sentada no banco.
Folhas, com essas palavras, se moveram; uma mulher se levantou da escuridão e começou a caminhar sobre as pedrinhas. Eu fechei os olhos ao som dos seus passos.
— Ela tinha vindo, não? — disse o guarda.
Sem lhe responder, eu fui atrás daquela mulher.
— Estamos fechando — o guarda gritou. — Estamos fechando.
Gritando “estamos fechando”, ele se afastou por entre as árvores.
Eu fui atrás da mulher saindo do jardim, e depois pelas ruas da cidade.
Eu a segui atrás do que tinha sido o som dos seus passos sobre as pedrinhas.
Ou melhor: guiado pela recordação dos seus passos. E foi um caminhar longo, um seguir longo, ora entre a multidão, ora por calçadas solitárias, até que, pela primeira vez, levantei os olhos e a vi, uma transeunte, à luz da última loja.
Vi os seus cabelos, na verdade. Nada mais. E tive medo de perdê-la, comecei a correr.
A cidade, naquelas latitudes, se alternava em prados e casas altas, Campos de Marte obscuros e feiras de luzes, com o olho vermelho do gasogênio ao fundo.
Perguntei várias vezes:
— Ela passou por aqui?
Todos me respondiam que não sabiam.
Mas uma menina brincalhona se aproximou, andando rápido de patins e riu.
— Aaah! — ela riu. — Aposto que você está procurando a minha irmã.
— A sua irmã? — eu exclamei. — Como ela se chama?
— Não vou lhe dizer — a menina respondeu.
E de novo riu; fez, com os patins, um giro de dança da morte ao meu redor.
— Aaah! — ela riu.
— Me diga então onde ela está — eu pedi a ela.
— Aaah! — a menina riu. — Ela está num portão.
Ela rodopiou ao meu redor na sua dança da morte por mais um minuto, depois foi embora patinando na avenida sem fim, rindo.
— Ela está num portão — gritou de longe, rindo.
Havia casais infames nos portões, mas eu cheguei em um que estava deserto e nu. O portão se abriu quando eu o empurrei, subi as escadas e comecei a ouvir alguém chorando.
— É ela que está chorando? — perguntei à zeladora.
A velha estava dormindo sentada no meio das escadas, com os seus panos de limpeza na mão, e acordou, olhou para mim.
— Não sei — ela respondeu. — Quer que chame o elevador?
Eu não quis, queria ir até aquele choro, e continuei subindo as escadas dentre as janelas escuras e escancaradas. Cheguei finalmente aonde estava o choro: atrás de uma porta branca. Entrei e estava próximo dela, acendi a luz.
Mas não vi ninguém no cômodo, nem ouvi mais nada. Porém, sobre o sofá, estava o lenço das suas lágrimas.
[1] VECCE, Carlo. Piccola Storia della Letteratura Italiana. Napoli: Liguori Editore, 2009, p. 512. Tradução nossa.
[2] ANSELMI, Gian Mario. Profilo storico della letteratura italiana. 4ª ed. Milano: Sansoni, 2008, p. 365.
[3] BRIGATTI, Virna. “Vittorini, Elio” in Dizionario Biografico degli Italiani, v. 99, 2020. Disponível em: https://www.treccani.it/enciclopedia/elio-vittorini_%28Dizionario-Biografico%29/. Acesso em: 4 jun. 2021.
[4] BATTISTINI, Andrea. (Org.) Letteratura Italiana: Dal Settecento ai nostri giorni. Bologna: Società editrice il Mulino, 2014, p. 468.
[5] Tradução realizada no âmbito das atividades da disciplina “Prática de Tradução”, ministrada entre fevereiro e maio de 2021, sob supervisão da Profa. Cláudia Tavares Alves, na Universidade Federal de Santa Catarina.
[6] Utilizou-se como referência para esta tradução a versão do conto publicada em LAHIRI, Jhumpa (org.). Racconti italiani. Milão: Ugo Guanda, 2019, pp. 33-36.