Uma biblioteca no jardim de casa: entrevista com Ilana Eleá sobre a Bibliotek Barnstugan

Em outubro desse ano, no encontro do Mulherio das Letras realizado na Itália, tive o prazer de conhecer vários projetos realizados por mulheres brasileiras espalhadas pelo mundo. E a Bibliotek Barnstugan (em português, Biblioteca Casinha de Campo das Crianças) foi certamente um dos projetos que mais me encantou. Os resultados do encontro ainda reverberam, inclusive aqui no blog, e com muita alegria hoje publico uma entrevista com a idealizadora desse projeto incrível.

Ilana Eleá construiu, em 2017, no jardim de sua própria casa, na cidade de Estocolmo (Suécia), uma casinha de brinquedo que é também uma linda biblioteca comunitária, um espaço literário aberto ao público para acolher as crianças e suas famílias semanalmente. Ali, estão disponíveis um acervo de livros infantis e espaços ao ar livre e internos para que as crianças possam se encontrar, brincar e, sobretudo, estar em contato com livros e com o hábito de ler. Como forma de reconhecimento por sua iniciativa em promover a cultura em sua região, Ilana recebeu recentemente o prêmio Bättre Stadsdel 2018.

Pedagoga e doutora em Educação pela PUC-Rio, Ilana, além de se dedicar à biblioteca, é também escritora, poeta e fez parte da comissão organizadora do Outubro Literário – II Encontro do Mulherio das Letras na Europa. Agradeço o seu carinho em compartilhar com o blog Marca Páginas essa entrevista e a história do seu projeto. Desejo vida longa à Bibliotek Barnstugan e que Ilana e suas ideias maravilhosas continuem inspirando mais pessoas a promoverem, nos espaços que lhe são possíveis, a literatura.

Fotos por Ilana Eleá

Marca Páginas: A ideia de trazer, para o jardim da sua própria casa, uma biblioteca infantil é encantadora e corajosa ao mesmo tempo. Você poderia contar um pouco mais sobre a história de como surgiu esse projeto? Que tipo de expectativas você imaginava quando criou a biblioteca?

Ilana Eleá: Costumo dizer que a Suécia não precisava da minha biblioteca no jardim, mas eu precisava dessa invenção e por isso a fiz acontecer. Nossa família se mudou para um bairro residencial em Estocolmo, com casas de madeira coloridas, muitas crianças e amplos jardins. Há bosques nos arredores, há lago, um parque para esportes e uma estação de metrô, mas não há uma biblioteca pública. A mais próxima fica a duas estações de casa, o que não é longe e lá tem um ótimo acervo infanto-juvenil, mas algo me dizia que não eram apenas livros que me moveriam. Então, a criação de um espaço literário de convivência, um ponto suspenso que fizesse a interlocução entre o público e o privado,  um lugar em que o aroma do café e do bolo assado no forno de casa fosse protagonista de uma atmosfera acolhedora e poética para se ler, ouvir e sonhar histórias foi ganhando corpo e telhado, como mágica.

Marca Páginas: Atualmente, a biblioteca já conta com um acervo considerável de livros infantis. Como é feita a curadoria desses livros? Existe algum tipo de critério em que você se baseie para selecionar novas obras?

Foto por Ilana Eleá

Ilana Eleá: Quando as pessoas me perguntam se aceito doações para a biblioteca, respondo que aceitamos sim, muito obrigada, mas apenas dos livros mais extraordinários que já tocaram a sua vida, marcando a sua memória até hoje, livros que nos surpreendam, tanto crianças como adultos. A curadoria é a chave com a qual conseguimos entrar no que temos de mais lúdico, livre e impressionante. A preferência é por títulos que tragam questões existencialistas, ricos em metáforas, ilustrados, com carga poética, livros que nos convidem a ver os dias com a beleza da complexidade.

Marca Páginas: A biblioteca e o jardim da sua casa, além de serem espaços de empréstimo e de leitura de livros, são também lugares de encontros e trocas entre as crianças e suas famílias. Você poderia explicar como são esses encontros, com que periodicidade eles ocorrem e como eles são organizados?

Ilana Eleá: Para participar dos encontros semanais, abertos ao público, as famílias se inscrevem  pelo site da biblioteca. Com a informação de quantas pessoas estarão presentes e sabendo a idade dos participantes, preparo, no dia anterior, com cartolina preta e caneta branca, o cartão para empréstimo dos livros, onde consta o nome de cada criança. É artesanal e simples,  elas adoram. Há também uma caixa com adesivos variados para que elas escolham e colem nos seus cartões, o que completa o ritual da devolução dos livros na semana seguinte, quando são convidadas a deixar alguma impressão para os próximos leitores. Espalho livros por todo o jardim, ocupando lugares óbvios como mesas, cadeiras e bancos, mas também pendurando-os na árvore de magnólia, decorada com fitas coloridas de cetim, ou os apoio em cestas de frutas, no banco de trás de bicicletas e triciclos, ou ainda os livros para os bebês que vão em toalhas de picnic e almofadas. A trilha sonora toca na caixa de som, encostada na varanda. Os encontros são divididos em 3 grandes momentos: 1) visita livre à biblioteca, para manuseio de livros. A  mesa da bibliotecária fica aberta para registrar nos cartões a escolha de novos títulos para empréstimo e para a devolução dos livros anteriores. 2) lanche com café, bolo feito em casa e frutas; nesse momento, os irmãos mais velhos são encorajados a ler para os menores, e pais e mães de outras famílias leem para quem se aproximar. Esse é o momento que também abraça performances (musicais, poéticas) tanto dos pais quanto das crianças. 3) leitura em voz alta dos livros previamente anunciados no blog para dois grupos de faixas etárias diversas: 0-3 anos e 4-7 anos de idade. O encontro entre pessoas e livros acaba se tornando uma inusitada festa.

Foto por Ilana Eleá

Marca Páginas: Imagino que realizar esses encontros seja algo que perpasse também a sua própria experiência de ser mãe. Pensando na sua percepção com seus filhos, assim como com outras tantas crianças que frequentam a biblioteca, você acredita no impacto da leitura em suas vidas, principalmente fora do ambiente escolar? Como você vê a relação dessas crianças com os livros e a literatura?

Ilana Eleá: A Suécia tem um longo histórico de investimento público na educação, na literatura, nas bibliotecas, no fomento ao livro, na valorização dos autores, leitores e ilustradores. A liberdade dos temas é respeitada e há uma abertura a tópicos impensáveis no Brasil atual, principalmente em relação a questões de gênero e feminismo, uma das conquistas das quais o país mais se orgulha e que tanto me inspiram. Penso que o tempero especial da nossa biblioteca não seja apenas o seu acervo ou oferta de livros, mas sua tipologia ambígua, que  mistura casa e biblioteca, adultos e crianças, livros e cafés no mesmo jardim. É uma forma de samba no gelo, de dança na neve, um círculo em volta da fogueira para as histórias passarem melhor. A biblioteca no jardim é uma forma de abraço.