A tradução de textos literários – parte 2

Há algum tempo, lancei um desafio literário para algumas pessoas próximas a mim e que também estão ligadas à área de estudos literários. Tendo como inspiração o texto “23 traduções para um poema de Emily Dickinson (1830-1886)”, escrito por Matheus Mavericco e publicado pelo blog Escamandro[1], propus que cada uma de nós traduzisse individualmente um mesmo poema e depois reuníssemos e publicássemos as diferentes versões aqui no blog Marca Páginas. Os resultados, é claro, ficaram muito divertidos e finalmente apresento tudo aqui nessa publicação[2]. E vale também como comemoração pelo dia 30 de setembro, dia internacional da tradução!

Por afinidades acadêmicas e pessoais (e porque acho que, exceto pelo fenômeno Elena Ferrante, ainda se lê pouca literatura italiana no Brasil), acabei escolhendo esse pequeno poema do poeta italiano Giorgio Caproni[3]. São só 4 linhas, mas é incrível como as palavras, e o uso poético que podemos fazer delas, se multiplicam em uma vastidão de possibilidades quando estamos diante do desafio de reescrever, em formato de tradução, um poema.

Foto por Ylanite Koppens.

E foi justamente essa a razão pela qual me senti motivada a propor (e também a encarar) o desafio da tradução desse poema. De quantas maneiras diferentes é possível ler um mesmo poema? De quantas formas diferentes é possível, então, traduzir um mesmo poema? Aparentemente, infinitas. Uma obra como a Odisseia, por exemplo, reconhecida por ser talvez a obra literária mais antiga de que temos notícias, é até hoje traduzida e publicada em diversas versões muito diversas entre si. Isso porque, em sua riqueza de sentidos, ela desperta em cada um de seus leitores-tradutores um aspecto que merece ser priorizado por sua tradução. Por isso há traduções que foram feitas em forma de poema, com estrofes, versos e rimas, e há outras que foram feitas em prosa: e todas elas partindo exatamente do mesmo texto-fonte.

Como as línguas não são exatamente equivalentes ou transparentes, mesmo que por vezes sejam parecidas, como é o caso do português e do espanhol, escolhas precisam ser feitas e é aí que entra a interpretação de quem está traduzindo, de forma que um texto na verdade pode se tornar vários à medida que novas pessoas o leem e o reescrevem em suas próprias línguas. Com a poesia é preciso ainda balancear a questão da forma poética, escolhendo ou não manter as rimas, as sonoridades, os paralelismos, a melodia etc. do poema original. E se a escolha for mesmo priorizar a forma, mantendo ou criando uma rima, por exemplo, é preciso ainda manter a atenção em relação ao significado das palavras e se elas, no geral, conseguem criar no leitor alguma experiência de leitura semelhante à criada pelo original.

Não é nem um pouco fácil traduzir literatura. Na minha humilde opinião, é o campo em que as palavras estão mais livres e mais sensíveis aos seus infindáveis usos possíveis. No uso literário da linguagem, nessa potência de beleza à que a linguagem pode chegar, não existem limites para o que é humano se manifestar. A tradução busca, por sua vez, recriar as liberdades e as sensações de uma língua na outra.

Foto por Dino Ignani.

A seguir, o poema original escrito por Caproni[4], publicado em 1982, na coletânea Il franco cacciatore[5]. Na sequência, seguem as traduções feitas por amigas e amigos literatos. Cada versão traz em si suas próprias escolhas, suas prioridades literárias e particularidades interpretativas. Deixo aqui publicamente, mais uma vez, meu agradecimento a vocês que toparam participar do desafio. Mesmo que minha opinião seja suspeita, digo novamente que adorei os resultados. As traduções ficaram excelentes e os efeitos de leitura alcançados pelas diferentes versões com certeza valeram todo nosso esforço.

 

ERRATA

Non sai mai dove sei.

CORRIGE

Non sei mai dove sai.

(Giorgio Caproni)

 

ERRATA

Não sabes nunca onde estás.

CORREÇÃO

Não estás nunca onde sabes.

(Fabiana Assini)

 

Errata

Não sai mais donde sabe.

Corrige

Não sabe mais donde sai.

(Lucas Michelani)

 

Errata

Você nunca sabe onde está.

Corrige

Quem é que está onde sabe?

(Júlia Mendes)

 

Errata

Nunca sabe onde está.

Corrige

Nunca está onde pensa.

(Carlos Silva)

 

Desvios

não vô nunca onde tô.

Endireitar:

não tô nunca onde vô.

(Danielle Lima)

 

Errata

não sai nunca; sabe que não vai.

Corrige

não vai nunca; sabe que não sai.

(Danielle Lima)

 

ERRATA

Nunca sabes onde estás.

CORRIGE

Nunca estás onde sabes.

(Cláudia Alves)

 

Errado

Não acho nunca onde estou.

Correto

Não estou nunca onde acho.

(Cláudia Alves)

[1] Texto disponível em: https://escamandro.wordpress.com/2018/02/22/23-traducoes-para-um-poema-de-emily-dickinson-1830-1886-por-matheus-mavericco/. A dica preciosa é que o blog Escamandro como um todo é muito interessante e vale a visita de quem gosta de literatura, poesia, tradução e crítica.

[2] Recomendo a leitura de outros textos já publicados aqui no blog que também discutem tradução literária: “A tradução de textos literários – parte 1”, disponível em https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2017/04/20/traducao-de-textos-literarios-parte-1/, e “O camelo pelo buraco da agulha e outras histórias estranhas de tradução”, publicado recentemente em parceria com Jacqueline Plaça (tradutora) e Stant Litore (autor), no qual se pensa a questão das escolhas lexicais operadas em uma tradução: https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2018/09/18/o-camelo-pelo-buraco-da-agulha-e-outras-historias-estranhas-de-traducao-por-stant-litore-traducao-jacqueline-placa/.

[3] Mais uma dica preciosa: acompanhem o blog Literatura Italiana traduzida no Brasil, disponível em http://literatura-italiana.blogspot.com/. Aqui encontramos mais informações sobre o escritor Giorgio Caproni e outros importantes autores e autoras italianos.

[4] Para mais um poema de Caproni, traduzido para o português pelo professor e tradutor Maurício Santana Dias, vejam http://revistamododeusar.blogspot.com/2010/02/giorgio-caproni-1912-1990.html. E fica a última dica do post: a Revista Modo de Usar e Co. foi uma iniciativa incrível que criou um acervo online muito bom de poesia e de tradução.

[5] Agradeço Fabiana Assini, cuja pesquisa de mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina é sobre Caproni, pela indicação bibliográfica.