É possível o estudo científico do pensamento e da criatividade? – Parte I

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Por Ana Arantes, dO Divã de Einstein

“We can built a world in wich men and women will be better poets, better artists, better composers, better novelists, better scholars, better scientists – in a word, better people. We can, in short, have a better world”

B. F. Skinner, 1971

A Lecture on “Having” a Poem

    Tô meio nervosa com essa minha estréia aqui no Tubo de Ensaios e no ScienceBlogsBr…

    Pensei em bilhões e bilhões de assuntos para escrever, mas o povo aqui costuma ser sério, compenetrado, científico… e eu não escrevo assim nO Divã de Einstein – ele é sério e científico, mas não e lá muito compenetrado. Então, depois de muito trabalho, escrevi um ensaio sobre um tema que me interessa muito e sob uma perspectiva que eu conheço quase-muito-bem, que é a Análise do Comportamento.

    A idéia é discutir, do ponto de vista de B.F. Skinner, como a Ciência do Comportamento lida com os temas do pensamento e da criatividade e quais as implicações desses pressupostos para a construção de tecnologias para a compreensão, a pesquisa e o ensino da criatividade.

    Ao se discutir as noções de pensamento e criatividade em Skinner devemos principalmente levar em conta que esses conceitos, retirados do vocabulário mentalista, serão analisados por ele em termos operacionais. Isto implica em, primeiramente, qualificar o significado de tais termos no uso tanto por leigos como por estudiosos e, posteriormente, descrever em que situações palavras como “pensamento” e “criatividade” são empregadas. A estratégia empregada, então, é a de desconstrução dos significados de pensar em diversos tipos de comportamentos diferentes, analisando-os em termos das variáveis das quais são funções. Nesse processo, Skinner elimina os conceitos cognitivistas e mentalistas (processos mediacionais) através da descrição e da explicação do pensar enquanto comportamento.

    Partindo do conceito de mente, o autor faz reflexões críticas acerca dos problemas do dualismo, da introspecção e do pensar como armazenamento de informações. Sua crítica parte do reconhecimento de que os processos ditos mentais pressupõem variáveis não manipuláveis e, portanto, são apenas descritivos, não preenchendo os quesitos formadores de seu conceito de ciência, que são a manipulação, o controle e a previsão dos comportamentos. Outra crítica as psicologias cognitivistas e mentalistas é feita no que diz respeito ao método de investigação usado para se observar os fenômenos mentais, a introspecção, que Skinner renega enquanto método científico legítimo.

    Durante sua obra, Skinner desenvolve duas linhas principais de investigação para analisar o pensamento e o comportamento criativo. A primeira delas parte do ponto de vista evolutivo, tentando compreender as mudanças ambientais que levaram ao desenvolvimento desses comportamentos e a sua importância para a adaptação do homem ao ambiente em que está inserido. A segunda linha de raciocínio é empregada na estratégia de cobrir a explicação funcional dos comportamentos identificados como pensamento, analisando-os sob o referencial de seus estímulos controladores, das variáveis das quais são função.

    Divido aqui o texto em duas partes, iniciando com as críticas do autor ao modelo mentalista de estudo do pensamento e com a proposição do modelo comportamental para o estudo do tema. No posts seguintes, tratarei das implicações do modelo proposto por Skinner e do desenvolvimento da Ciência do Comportamento de Pensar.

1. Críticas ao modelo mentalista

     A crítica de Skinner as linhas psicológicas mentalistas começa com a crítica à sua implicação mais clara: o dualismo. Ele parte pressuposto epistemológico de que a ciência do comportamento, se devidamente incluída no campo das ciências, não pode lidar com um objeto insubstancial, tal como a mente cartesiana. Um dos problemas apontados por Skinner seria o de não poder manipular as variáveis de modo a produzir uma tecnologia útil, pois “se pudermos observar cuidadosamente o comportamento humano, de um ponto de vista objetivo e chegar a compreendê-lo pelo que é, poderemos ser capazes de adotar um curso mais sensato de ação” (Skinner, 1953).

     Não se trata de uma questão de facilidade, a complexidade dos processos ditos mentais não se reduz quando o objeto é o comportamento e não a mente. “O comportamento é uma matéria difícil, não porque seja inacessível, mas porque é extremamente complexo. O comportamento (…) é mutável, fluido e evanescente, e por esta razão faz grandes exigências técnicas à engenhosidade e energia do cientista” (Skinner, 1953). A noção de mente é problemática para uma ciência do comportamento porque a mente não é parte da natureza, não tem nenhuma propriedade de um objeto natural. É impossível observar os processos mentais interiores; a introspecção não pode ser levada a sério enquanto método científico pela razão última de que não temos órgãos sensoriais capazes de perceber os processos internos. “Nós temos mais informações sobre nós mesmo do que sobre outras pessoas, mas é apenas o mesmo tipo de informação – sobre estímulos, respostas e conseqüências, alguns destes internos e, neste sentido, privados. Nós não temos enervações sensoriais vindas das partes do cérebro que se engajam em ‘processos cognitivos'” (Skinner, 1986).

     Mesmo que abandonemos a noção de mente e a substituíssemos pela idéia de cérebro (solução muito adotada para se eliminar o mentalismo), voltaríamos ao mesmo ponto. O que pode ser observado pelos modernos aparelhos de imagem cerebral (PETscan e tomógrafos) são áreas cerebrais em funcionamento, mas o próprio funcionamento, os processos realizados pelo cérebro não são observáveis. “Vemos os materiais que processamos e o produto, mas não a produção” (Skinner, 1989). 

     Esse argumento não implica na negação das neurociências e de sua utilidade para a explicação completa do comportamento humano complexo, mas apenas na distinção clara dos limites da ciência do comportamento. “Os analistas do comportamento deixam o que está dentro da caixa preta para aqueles que dispõem dos instrumentos e métodos necessários ao seu estudo apropriado. Existem duas falhas inevitáveis em qualquer ponto de vista comportamental: uma entre ação estimuladora do ambiente e a resposta do organismo, e a outra entre as conseqüências e a mudança resultante no comportamento. Ao fazê-lo [o estudo], completa a descrição; não fornece uma explicação diferente. O comportamento humano inevitavelmente será explicado, e só poderá ser explicado através da ação conjunta da etologia, da ciência do cérebro e da análise do comportamento” (Skinner, 1989).

     A objeção behaviorista ao mentalismo, expressa principalmente na rejeição do dualismo, se manifesta na incapacidade que este demonstra de obter uma resposta a pergunta sobre como uma substância imaterial (não natural) pode afetar uma substância material (coisa natural). Chega-se, portanto, a inferência de que as causas ditas mentais do comportamento são causas fictícias.

     A objeção central de Skinner ao mentalismo é, no entanto, a de que este não consegue explicar aquilo a que se propõe. Parte dessa insuficiência se deve ao método introspectivo, como dito anteriormente e parte a circularidade das explicações propostas.  As explicações mentalista inferem uma entidade fictícia a partir do comportamento observável então afirmam que a entidade inferida é a causa do comportamento. Em razão das ficções mentais parecerem explicações, elas tendem a impedir a investigação das origens ambientais do comportamento, que levariam a uma explicação científica satisfatória. “Como a análise experimental do comportamento tem mostrado, o comportamento é modelado e mantido por suas conseqüências, mas apenas pelas conseqüências que permanecem no passado. Nós fazemos o que fazemos por causa do que aconteceu, e não do que acontecerá. Infelizmente o que aconteceu deixa poucos traços observáveis, e a razão pela qual fazemos o que fazemos, bem como o quão dispostos estamos a fazer algo, estão, conseqüentemente, muito além do alcance da introspecção” (Skinner, 1989).

     Uma dessas ficções explicativas mais combatidas por Skinner é a da idéia cognitivista do pensar como armazenamento de informações. Segundo essa visão, para responder novamente a um determinado estímulo, deveria haver
uma memória, ou uma espécie de cópia, armazenada em algum lugar da mente ou do cérebro, que quando acessada tornaria possível a repetição de um comportamento. Segundo Skinner, se usarmos a contingência de três termos como modelo explicativo para entendermos qualquer emissão de comportamento, não há necessidade de apelarmos a explicações mediacionais internas como a do armazenamento de informações. As explicações das relações entre o organismo e o ambiente são, portanto, suficientes para a total compreensão funcional. Para ele: “a objeção dos estados interiores não é a de que eles não existem, mas a de que não são relevantes para uma análise funcional” (Skinner, 1953).

      O que se coloca para Skinner é a questão da modificação produzida no organismo quando da emissão de um comportamento. Do mesmo modo que a teoria da seleção de Darwin, a causalidade de Skinner exclui qualquer suposição de que o comportamento possa ocorrer a partir de um projeto futuro. São as conseqüências ocorridas no passado que determinam a probabilidade de ocorrência do comportamento em uma situação futura. Não por que essas conseqüências são armazenadas ou memorizadas para serem recuperadas e orientarem uma ação futura, mas por que as ocorrências passadas modificam o organismo, i. e, alteram sua forma de se relacionar com o ambiente. Com esta noção de causalidade, Skinner combate a noção de um agente iniciador (das concepções mentalistas) e suprime a necessidade de procurar instâncias armazenadoras de informação ou memória. Nesse sentido, “as contingências que afetam um organismo não são armazenadas por ele. Elas nunca estão dentro dele; elas simplesmente o modificam. Daí resulta que o organismo se comporta de maneiras especiais sob tipos especiais de controle por estímulos. Os estímulos futuros serão eficazes se se assemelharem aos que foram parte de contingências anteriores; um estímulo acidental pode nos fazer lembrar uma pessoa, um lugar ou um acontecimento se tal estímulo tiver alguma semelhança com essa pessoa, lugar ou acontecimento. Ser lembrado significa ser tornado capaz de responder” (Skinner, 1974).

2. Pensamento como comportamento

     No entender de Skinner, o que comumente é identificado como o processo cognitivo superior do pensamento pode ser descrito como uma série de comportamentos ou processos comportamentais que não são públicos, mas cujos produtos finais, ou os estímulos controladores, podem ser observados ou inferidos de eventos observáveis. “Não se trata de nenhum processo misterioso responsável pelo comportamento, mas do próprio comportamento em toda a complexidade de suas relações de controle, relativas tanto ao homem que se comporta como ao meio em que ele vive” (Skinner, 1957).
    

     No intuito de explicar as variáveis que controlam diversos tipos de comportamento diferentes que podem ser chamados de pensamentos, Skinner faz uma espécie de catalogação desses possíveis comportamentos (ou processos comportamentais), analisando funcionalmente cada um deles e especulando sobre sua importância adaptativa e seu possível caminho evolutivo. É importante notar que com isso ele pretende identificar o termo “pensar” com comportamento operante, ou seja, sujeita-lo apenas as leis que regem o comportamento operante, sem que para explica-lo seja necessário recorrer a nenhum tipo de processo mediacional ou cognitivo.

     Vale ainda ressaltar que para cumprir seu projeto de explicar os comportamentos de pensar como tal, o primeiro passo foi substituir o substantivo “pensamento” pelo verbo “pensar”, eliminando assim a idéia do pensamento como uma coisa a ser descrita e levantando a questão do pensar enquanto uma ação direta no mundo, um comportamento que opera modificações no ambiente que o produziu, ou seja, um operante. Com isso, ele elimina ainda o peso mentalista do termo pensamento enquanto construto teórico cognitivista que nomeia um processo mental. Assim, “pensar significa muitas vezes o mesmo que comportamento. Dizemos, nesse sentido, que se pensa matematicamente, musicalmente, politicamente, verbalmente ou não verbalmente e assim por diante. Em um sentido ligeiramente diverso, significa comportar-se em relação a estímulos. (…) Pensar também é identificado com certos processos comportamentais, como aprender, discriminar, generalizar e abstrair. Esses processos não são comportamento, mas sim modificações no comportamento. Não há ação, nem mental, nem qualquer outra” (Skinner, 1968).

     Uma das situações mais comuns em que se emprega o termo “pensar” é a situação de se resolver problemas. Ter um problema é estar diante de uma situação em que uma resposta apresenta certa probabilidade de ser emitida, mas por falta de uma estimulação discriminativa adequada isso não ocorre. Portanto, o processo de resolução de problema pode ser considerado como constituído, basicamente, por respostas manipulativas e discriminativas: diante de um problema manipulamos variáveis a fim de produzir estímulos discriminativos que permitam a emissão da resposta discriminativa consumatória (Lopes & Abib, 2002). Ou seja, para Skinner o problema é uma questão para a qual não há resposta até o momento e sua solução é o comportamento responsável pela mudança da situação. O comportamento de pensar enquanto “resolver um problema” seria um encadeamento de comportamentos que, para o indivíduo que “pensa”, ocorreria para mudar a si mesmo ou a situação até que ocorra uma resposta (solução do problema). “Resolver um problema é um evento comportamental” (Skinner, 1963).

      Skinner cita várias formas segundo as quais nos comportamos no sentido de gerar comportamentos que levariam à solução de uma determinada situação. Para cada uma dessas formas de comportamento usa-se comumente a expressão “pensar”: (1) quando se faz algo que torna possível outro comportamento; (2) quando nenhum estímulo efetivo está disponível e as pessoas expõem algum; (3) quando não se pode descobrir um estímulo, às vezes deixa-se um outro acessível de reserva até que a resposta ocorra; (4) quando junta-se várias coisas diferentes para possibilitar uma resposta única; (5) faz-se o inverso quando separa-se coisas de modo que se possa lidar mais facilmente com elas em outra ocasião; (6) marca-se coisas de modo que se possa nota-las mais facilmente em outra ocasião; (7) compara-se coisas, colocando-as “lado a lado” de modo que se possa ver mais facilmente se elas combinam entre si; (8) especula-se sobre as coisas, no sentido de que se olha para elas de diferentes ângulos e (9) depois de “pensar” por algum tempo chega-se a uma decisão (a própria palavra deriva da expressão “por fim a alguma coisa”) (Skinner, 1989).

Referências:

Baum, W. (1994). Compreender o behaviorismo. Porto Alegre: Artmed.

Lopes, C. E. & Abib, J. A. D. (2002). Teoria da percepção no Behaviorismo Radical. Psicologia: Teoria e Pesquisa. 18, 2. 129-137.

Skinner, B. F. (1953). Ciência e comportamento humano. São Paulo: Martins Fontes.

Skinner, B. F. (1957). Verbal behavior. New York: Appleton-Century-Crofts.

Skinner, B. F. (1963). Contingences of reinforcement: A theoretical analysis. New York: Appleton-Century-Crofts.

Skinner, B. F. (1968). The technology of teaching. New York: Appleton-Century- Crofts.

Skinner, B. F. (1970). Creating the creative artist. Em B. F. Skinner (Org.). Cumulative records: A selection of papers – Third edition (1972). New Yark: Appleton- Century-Crofts.

Skinner, B. F. (1971a). A lecture on “Having” a poem. Em B. F. Skinner (Org.). Cumulative records: A selection of papers – Third edition (1972) . New Yark: Appleton- Centur
y-Crofts.

Skinner, B. F. (1971b). Beyond freedom and dignity. New York: Alfred A. Knopf.

Skinner, B. F. (1974). About behaviorism. New York: Applenton-Century-Crofts.

Skinner, B. F. (1978). The shaping of phylogenic behavior. Em B. F. Skinner. Reflections on behaviorism and society. Englewood Cliffs: Prentice Hall.

Skinner, B. F. (1986). Upon Further Reflection. Englewood Cliffs: Prentice Hall.

Skinner, B. F. (1989). Questões recentes na análise comportamental. Campinas: Papirus.

Tourinho, E. Z.; Teixeira, E. R. e Maciel, J. M. (2000). Fronteiras entre análise do comportamento e fisiologia: Skinner e a temática dos eventos privados. Psicologia: Reflexão e Crítica. 13, 3. 425-434.

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Uma luz dentro de células

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Por Joey Salgado


A Fernanda Poletto, do excelente Bala Mágica, publicou recentemente um texto falando sobre Armas Mágicas (quanta mágica por aqui…), o qual recomendo fortemente a leitura. O conceito de Armas Mágicas se resume a uma metodologia capaz de promover a internalização de fármacos em tumores, através da utilização de peptídeos chamados de iRGD. Os iRGD “guiam” o fármaco até o tumor e “abrem a porta” para que o mesmo entre na célula tumoral, aumentando assim a especificidade de sua ação. 

Achei sensacional a utilização desses peptídeos iRGD para o carregamento do fármaco e, por conta disso, recordei-me de um trabalho relativamente recente (2006 tá novo ainda?), onde uma certa sequência de peptídeos mostrou-se fundamental para a proposta de uma nova técnica. Em 2006 (quatro anos… tá novo, foi a menos de uma Copa do Mundo atrás…), Jones e colaboradores, da Universidade de Standford (sempre eles…) demonstraram a possibilidade de se utilizar oligopeptídeos contendo oito resíduos de arginina como cross-coupling peptides (ou CCP) de moléculas conjugadas com luciferina (lembra dela?). O princípio da técnica é demonstrado na figura abaixo.[1]

luciferin_conjugates.gif

Vamos por partes. Oligopeptídeos de arginina, principalmente esses contendo oito unidades desse aminoácido, são chamados de cross-coupling peptides justamente por possuírem a capacidade de permearem através da membrana lipofílica de células, chegando ao citoplasma da mesma. A subunidade em verde da molécula na figura acima diz respeito à sequência de CPPs. Pelo fato de permearem por membranas lipofílicas, ao mesmo tempo que são solúveis em meio aquoso, CPPs podem ser conectados a outros peptídeos, fármacos ou agentes marcadores, formando os chamados “conjugados”, que podem ser carregados para dentro de uma célula. Já na época do trabalho, o mesmo grupo de pesquisas havia apresentado a utilização de CPPs conjugados com ciclosporina A, um imunossupressor, para “entrega” de drogas em tecidos vivos.[2] O problema, de certa forma, é que a velocidade com que a entrega do fármaco era realizada, ou de qualquer outra molécula conjugada ao CPP, era desconhecida até então. Sabia-se que o CPP realizava a entrega, visto que os efeitos do fármaco eram observados, mas não se tinha ideia de quanto tempo era necessário para o mesmo permear para dentro da célula e/ou para liberar o fármaco.

No sentido de se desenvolver uma técnica que permitisse avaliar a eficiência e a velocidade da “entrega” de um determinado conjugado com CPP, em tempo-real e in vivo, chegou-se a conjugados de CPP com luciferina, como já demonstrado na figura acima. A luciferina (destacada em azul) está conectada ao CPP (em verde) através de uma molécula-ponte (em vermelho). Tal molécula-ponte está conectada ao CPP por uma ligação disulfeto S-S (em vermelho e verde), que quando na presença de glutationa intracelular (GSH) é rapidamente clivada, liberando a molécula de luciferina. Utilizando-se tal conjugado em células de organismos transfectados com o gene luc de vaga-lumes, responsável pela expressão da enzima luciferase, o par luciferina/luciferase emite luz, que pode ser registrada em tempo-real por uma câmera.

Dessa forma, mostrou-se ser possível averiguar a eficiência e a velocidade de permeação de CPPs de arginina, utilizando-se esse conjugado com luciferina como modelo para entrega intracelular de drogas. Apesar do sucesso obtido pelos autores, parte da complicação em se utilizar tal técnica reside na síntese do conjugado, que não é trivial, e no fato de que devem ser utilizados organismos geneticamente modificados para avaliação do modelo. Contudo, a técnica equivalente, que utiliza CPPs conjugados com moléculas fluorescentes, apesar de possibilitar que se faça a avaliação da liberação de drogas in vitro, não é funcional para sistemas in vivo e não permite o acompanhamento da mesma em tempo-real. Outra opção, o uso de CPPs conjugados com moléculas contendo radioisótopos, possibilita a observação in vivo, mas não tem resolução suficiente para determinar se o conjugado marcado se encontra dentro ou fora da célula e não permite saber se a molécula marcada que simula o fármaco ainda está ligada ao CPP (o radioisótopo emite radiação independente se foi liberado dentro do meio celular ou não).

Este é um exemplo de um belo trabalho, na minha opinião, que apresenta uma técnica fenomenal, capaz de modelar em tempo-real a entrada em células de drogas conjugadas a CPPs, e que ao mesmo tempo permite as observações da liberação intracelular da mesma e da interação com um receptor enzimático.

Que beleza esses peptídeos, né não?!

Referências e notas:

[1] Jones, L. R.; GOun, E. A.; Shinde, R.; Rothbard, J. B.; Contag, C. H.; Wender, P. A.; “Releasable Luciferin-Transporter Conjugates: Tools for the Real-Time Analysis of Cellular Uptake and Release” J. Am. Chem. Soc. 2006, 128, 6526. DOI: 10.1021/ja0586283.

[2] Rothbard, J. B.; Garlington, S.; Lin, Q.; Kirschberg, T.; Kreider, E.; McGrane, P. L.; Wender, P. A.; Khavari, P. A.; “Conjugation of arginine oligomers to cyclosporin A facilitates topical delivery and inhibition of inflamation” Nat. Med. 2000, 6, 1253. DOI: 10.1038/81359.

Que se faça a luz!

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Por Joey Salgado

Não há quem nunca tenha se impressionado com vaga-lumes perambulando noite adentro. Aquelas gracinhas luminosas piscando feito luzes de natal, parecem faíscas geradas espontaneamente no ar, como inclusive observou Aristóteles e seus asseclas pouco mais de um par de milhares de anos atrás.[1] Para a mente mais inquisidora, seguinte à observação do fato de um inseto curiosamente poder emitir luz, talvez venha esse questionamento: como ele consegue fazer isso? De fato, o processo é um tanto complicado, envolvendo substratos específicos e catálise por enzimas adequadas, além de um ou outro metabólito biológico.
Expandindo-se o número de dados oferecidos para apreciação de vocês, leitores, cito o exemplo dos lightsticks, aqueles brinquedinhos de festas de casamento que geralmente são distribuídos quando a banda já começou a tocar “Balão Mágico” e coisas do gênero. Como o nível alcoólico no sangue geralmente está alto nessa altura do campeonato, talvez isso não desperte tanto o interesse e curiosidade das pessoas quanto vaga-lumes, geralmente encontrados em ambientes mais “verdes” e “limpos”. Mas lightsticks tem mais em comum com esses insetos do que outros insetos tem com vaga-lumes, por incrível que pareça.
vagalumes_lightsticks.png
Nesse ponto, talvez seja importante se definir alguns termos. Uma reação química que emita luz como um dos seus produtos de reação é dita quimiluminescente, como definido por Wiedemman em 1888.[2] Se o mesmo processo ocorre em um organismo vivo, e não dentro de uma vidraria de laboratório, refere-se ao mesmo por bioluminescência. Interessante ressaltar que Wiedemman, na mesma publicação,[2] diferenciou a quimiluminescência, fenômeno de “luz fria”, da incandescência, que é a emissão de luz por certos materiais mediante aquecimento. A incandescência, como bem se sabe, resulta do efeito fotolétrico, estudado intensamente por Planck e racionalizado em termos matemáticos por Einstein, o que daria o prêmio Nobel de Física para o último em 1921. A quimi e bioluminescências também são diferentes em seus princípios de funcionamento da triboluminescência, que é a emissão de luz por cristais macerados mecânicamente. Em um quarto escuro, com a visão bem acostumada para a falta de luminosidade, é possível se observar a emissão de luz a partir de cristais de açúcar de cozinha comum, quando submetidos a esmagamento (tentem, é uma ótima brincadeira!). 
A semelhança entre quimi e bioluminescências vem, principalmente, pelo fato de que em ambas há a formação de um intermediário peroxídico cíclico orgânico durante a reação química. Exemplifico esse intermediário de forma geral logo abaixo. Notem que o mesmo é uma cadeia fechada (cíclica), no formato de um anel de quatro átomos (dois de carbono e dois de oxigênio) e que possui uma ligação peroxídica (que é essa ligação química entre dois átomos de oxigênio, O-O). Nesse exemplo, os carbonos estão fazendo apenas duas ligações cada um (para fins de simplificação) sendo que cada um possui mais duas posições livre para se ligar a outros átomos.
intermediário_peroxídico.png
Na reação bioluminescente de vaga-lumes, uma molécula chamada luciferina, na presença de ATP (que é uma “fonte de energia disponível” em seres vivos), oxigênio molecular (O2) e de uma enzima chamada luciferase, forma exatamente esse intermediário peroxídico (notem o mesmo, destacado em vermelho, dentro de uma estrutura molecular mais complexa) (Figura 1).[3,4] Tal intermediário é formado em várias etapas e então decompõem para formar uma molécula de oxiluciferina no ‘estado eletrônico excitado’ (representado pelo símbolo S1). Um ‘estado eletrônico excitado’ pode ser entendido como um estado de maior energia da molécula, que está pronto para perder essa energia em excesso por emissão de calor ou de luz. No caso da oxiluciferina, a mesma perde essa energia emitindo luz, no final do processo de bioluminescência (Figura 1).[3] A reação quimiluminescente que ocorre dentro de lighsticks também leva a formação de um intermediário contendo esse anel peroxídico (Figura 2). Tal mecanismo descrito na Figura 2 foi formulado à medida que uma série de moléculas chamadas 1,2-dioxetanonas foram sintetizadas e estudadas em laboratório, demonstrando que as mesmas decompõem emitindo luz, quando da adição de um catalisador comum a essas duas reações (Figura 3, os grupos ligados ao anel peroxídico pelos carbonos pode mudar, sendo que nesse caso exemplificou-se com a molécula contedo dois grupos metila, -CH3).[5] Utilizando os resultados obtidos no estudo da reação envolvida em lighsticks (chamada de peróxi-oxalato) e 1,2-dioxetanonas, chegou-se à síntese e posterior estudo de moléculas chamadas 1,2-dioxetanos-aril-substituídos, que são capazes de decompor emitindo luz (Figura 4),[5] por uma via mecanística muito parecida com a da bioluminescência de vaga-lumes (Figura 1) (como sempre, notem a formação do anel peroxídico destacado em vermelho). Tanto a bioluminescência de vaga-lumes (Figura 1) quanto a decomposição de 1,2-dioxetanos-aril-substituídos (Figura 4) possuem eficiências de emissão de luz extremamente altas, o que faz desses 1,2-dioxetanos importantes ferramentas analíticas.[5]
luciferina.bmp
– Figura 1 –

peroxioxalato.bmp
– Figura 2 –

dioxetanona.bmp
 – Figura 3 –

dioxetanoarilico.bmp
– Figura 4 –

Agora vem o pulo do gato: de fato, foi o estudo de tais 1,2-dioxetanos-aril-substituídos que permitiu que se entendesse melhor o funcionamento da bioluminescência de vaga-lumes, inclusive, melhorando a compreensão do processo que leva à formação do ‘estado excitado’ emissor de luz. E para tal, foi necessário antes disso estudar a reação de 1,2-dioxetanonas e a reação peróxi-oxalato, que ocorre em lightsticks. Tanto o preparo de 1,2-dioxetanonas e 1,2-dioxetanos-aril-substituídos quanto o estudo dos mecanismos de decomposição dessas moléculas e da reação peróxi-oxalatonão é trivial e fez (e ainda faz…) muitos alunos de pós-graduação e pesquisadores arrancarem os cabelos. A síntese de moléculas peroxídicas isoláveis, ou seja, que podem ser sintetizadas, purificadas, identificadas por técnicas espectrocópicas adequadas, como 1,2-dioxetanonas (Figura 3) e 1,2-dioxetanos-aril-substituídos (Figura 4) é muito complicada, levando de três a quatro anos até que se tenha sucesso em sua preparação. Um processo complicado e trabalhoso para, ao final, “destruir” a substância preparada para vê-la emitindo luz. A recompensa para todo esse esforço é, obviamente, gerar conhecimento que sustente a proposta para o funcionamento de um processo biológico intrigante e, porque não, elegante.
Notem como, algumas vezes, antes de se entender como certas coisas ocorrem em organismos biológicos, é necessário ficar um bom tempo na bancada do laboratório de química. É necessário se usar bem o tubo de ensaio antes de se trazer certos fatos à luz, rs.
Fonte das fotos: vaga-lume e lightsticks.
Referências e notas:
[1] Campbel, A. K.; Chemiluminescence: Principles and Applications in Biology and Medicine; Elis Howard Ltd.: Chichester, 1988.
[2] Wiedemann, E.; Ann. Phys. Chem. 1888, 24, 446. (Em alemão)
[3] Shimomura, O.; Chemical and Biological Generation of Excited States; Adam, W.; Cilento, G., eds.; Academic Press Inc.: New York, 1982.
[4] Interessante notar que, em química orgânica, geralmente não se representa um átomo de carbono pelo seu símbolo “C” em estruturas. Logo, em cada “esquina” formada por ligações químicas (no encontro entre “arestas”, onde não há símbolo algum), deve-se enxergar a presença de um átomo de carbono, com seu respectivo número de hidrogênio, de forma a completar suas quatro ligações de ‘direito’.
[5] Baader, W. J.; Bastos, E. L.; Stevani, C. V.; The Chemistry of Peroxides, Rappoport, Z., ed.; WIley & Sons: Chichester, 2005.
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Em tempo, eu Fernando “Joey Salgado” Heering Bartoloni sou químico, atualmente no doutorado, estudando alguns sistemas orgânicos quimiluminescentes. E estou mais careca a cada ano. Não tenho palavras para expressar minha felicidade por estar participando do Tubo de Ensaios, nessa fantástica oportunidade que me foi dada pelo SBBr. Obrigado.