Literatura, Política e Resistência! A quem interessa queimar livros?, por Danielle Chagas de Lima

A quem interessa queimar livros?

O ano é 2018, século 21. Apesar da imensa distância espaço-temporal e também das diferenças entre as sociedades, vira e mexe eu me pego pensando em uma obra datada do século 2. São declarações como “Os livros que não trazem a verdade sobre o regime de 1964 têm que ser eliminados[1] e notícias como “Livros de direitos humanos são rasgados na biblioteca da UnB”[2] que me transportam à introdução da obra Agrícola, de P. Cornélio Tácito, escrita por volta do ano 98 d.C.[3]

Queima de livros. 30 ilustrações para “A História de Dom Quixote” (Fonte: The British Museum)

Tácito nasceu por volta do ano 56 e faleceu no ano 118 d. C. Ele foi um importante historiador de sua época e sua obra, que retrata o período do Império romano, nos chegou em grande parte conservada[4]. A obra da qual sempre me lembro intitula-se A vida de Júlio Agrícola (De uita Iulli Agricolae) e narra, conforme o título sugere, a biografia de seu sogro, Júlio Agrícola. Bem, tentando não me afastar demais do porquê tal livro me vem à mente, faço um breve resumo de seu contexto de produção.

Trata-se do início do principado de Trajano, em Roma, quando Tácito finalmente sente-se livre e seguro para escrever sem correr perigo por causa do conteúdo da obra que pretende produzir. No texto, antes de apresentar a personagem principal, o autor faz uma reflexão sobre a escrita da história, mais especificamente, de textos biográficos e autobiográficos. Segundo ele, desde tempos muito remotos, homenagear a vida daqueles considerados ilustres na sociedade era um costume bastante comum. Mas Tácito nos conta que, em seu ofício de historiador, durante muito tempo encontrou dificuldades para compor uma homenagem a Agrícola, um homem que julgava exemplar naquele contexto. Essa personagem central da obra viveu durante os principados de Nero e de Domiciano: dois imperadores que comumente são vistos como os mais cruéis da história do Império romano[5]. Ainda na abertura da obra, Tácito explica também sobre a impossibilidade de compor sua obra à época de Domiciano e relembra o que houve com aqueles que se atreveram a escrever:

Fyodor Bronnikov lendo a sentença de morte de Trásea Peto (Fonte: http://www.art-catalog.ru/picture.php?id_picture=11335)

Nós lemos que quando Trásea Peto e Helvídio Prisco foram louvados por Aruleno Rústico e Herênio Senecião, respectivamente, isso se tornou motivo de pena capital. E não se enfureceram só contra os próprios autores, mas também contra seus livros. Delegou-se aos triúnviros a tarefa de queimar as memórias dos mais ilustres espíritos, no comício do fórum. Certamente, pensavam ter também coibido com aquele fogo a voz do povo romano, a liberdade do senado e a consciência do ser humano. Sem contar os filósofos que foram expulsos e toda a nobre arte levada para o exílio, para que nada se encontrasse de honesto em parte alguma. Fornecemos, sem dúvida, uma grande prova de paciência, e tal como a geração antiga viu o extremo da liberdade, do mesmo modo nós vimos o extremo da escravidão e até o acordo entre o falar e o ouvir foi suprimido por meio de inquéritos. Também teríamos perdido com a voz a própria memória, se em nosso poder estivesse tanto o esquecer quanto o calar[6].

Aruleno Rústico e Herênio Senecião, seguindo a tradição literária, escreveram obras em homenagem a duas personalidades conhecidas na história romana por sua oposição à autoridade do imperador e à falta de liberdade de expressão do senado[7]. Ambos foram punidos com a morte. Seus livros, e talvez outros mais, foram queimados em público. Tudo isso porque representavam condutas de personagens que em certa medida questionavam a autoridade única do imperador e denunciavam a corrupção de seus pares. O fogo, como Tácito nos diz, também deveria silenciar a voz do povo, suas ideias, sua consciência. A liberdade de pensamento também foi censurada, expulsando-se dali os filósofos. Ou seja, havia uma grande preocupação em limitar os discursos circulantes. Pode-se dizer que a Literatura (e, consequentemente, o pensamento em circulação) só poderia representar aquilo que passasse pelo crivo do imperador[8].

Por um lado, quando eu vejo notícias como as que mencionei no início deste texto, não consigo deixar de pensar que, infelizmente, há mais de 2000 anos obras são lançadas ao fogo, a fim de apagar a pluralidade de visões em determinados momentos históricos. Nem era preciso ter ido tão longe para encontrar testemunhos desse tipo, tantas outras vezes isso já aconteceu na história da humanidade[9]. Por outro lado, eu fico feliz e me fortaleço ao pensar em como a Literatura dispõe de força, valor político e atua como resistência. Não é à toa que os livros tornam-se vítimas concretas e simbólicas daqueles que pretendem contar uma história única. Tácito passou quinze anos em silêncio para preservar sua vida. Ao primeiro sinal de abertura, não deixou de relatar o autoritarismo existente outrora e as consequências daqueles que escreviam obras livres de uma adulação ao imperador. Fez de sua obra, portanto, memória daqueles que perderam suas vidas e também resistência, ao incluir na história os nomes daqueles que mereciam ser lembrados[10].

Lucio Massari (1569-1633)

As manchetes que citei me fazem pensar nesse texto porque ali algumas palavras me chamam a atenção. Propõe-se eliminar livros que não contêm a verdade sobre um momento histórico há muito estudado e documentado. Mas qual verdade, afinal? Livros sobre direitos humanos são rasgados… a quem isso interessa nesse momento? A que tipo de políticas interessa suprimir obras, e mesmo seus autores, ao longo da História?

O nosso mundo e a nossa história são feitos de narrativas. De pontos de vistas. São sempre tempos lamentáveis aqueles em que vozes são silenciadas, concreta e simbolicamente. Mas a literatura resiste e, por meio dela, podemos também nós sempre resistir e buscar a liberdade de pensamento e de expressão. Afinal, a “arte conversa com a liberdade que resiste dentro de nós”[11].

Em tempo: este texto é sobre livros, mas não pode deixar de lembrar e lamentar a perda de tantos registros culturais, de obras de artes e de documentos que se perderam com o incêndio de museus importantes em nosso país. Museus que, negligenciados e abandonados pelo investimento público, foram consumidos pelo fogo junto com memórias do passado. Nos últimos três anos, o Memorial da América Latina, o Museu da Língua Portuguesa e o Museu Nacional tornaram-se vítimas desse fogo institucionalizado.

[1] Fonte: https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/09/28/general-ligado-a-bolsonaro-fala-em-banir-livros-sem-a-verdade-sobre-1964.htm?cmpid=copiaecola&cmpid=copiaecola. Acesso em 09/10/18.

[2] Fonte: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2018/10/04/livros-de-direitos-humanos-sao-rasgados-na-biblioteca-da-unb.ghtml. Acesso em 09/10/18.

[3] Antes de continuarmos, é importante ressaltar que a leitura de obras antigas requer atenção a diversos conceitos e ao funcionamento próprio daquela sociedade para que não sejamos anacrônicos. Além disso, mesmo a ideia de História, como disciplina, é muito diferente daquela que temos hoje, bem como os procedimentos de sua escrita, questões que escapam ao espaço deste post. Para mais informações a esse respeito, indicamos a tradução completa e anotada dessa obra, disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/271127/1/Lima_DanielleChagasde_M.pdf.

[4] Mais sobre o autor e outros historiadores romanos em FUNARI, P. P.; GARRAFONNI, R. S. Historiografia: Salústio, Tito Lívio e Tácito. Coleção Bibliotheca Latina. Campinas: Editora Unicamp, 2016.

[5] Tácito escreveu sobre o principado de Nero na obra Anais (Annales), nos livros 13 a 16.

[6] Tácito, A vida de Júlio Agrícola, 2. Tradução do latim de minha autoria. Temos outro testemunho antigo sobre este fato: Suetônio, que escreveu a obra A Vida dos doze césares, também menciona esse ocorrido na biografia de Domiciano.

[7] Trásea Peto foi um senador romano cujo comportamento é lembrado como símbolo da oposição a Nero. Lutou por seus ideais até a morte. Helvídio Prisco foi exilado pelo imperador na mesma época. Para saber mais, indicamos os Anais e as Histórias, de Tácito.

[8] Domiciano não foi o único imperador a agir desta forma. O imperador Tibério também condenara o historiador Cremúcio Cordo, cujos escritos não lhe agradaram; sua obra foi queimada, conforme relatam Tácito (Anais, 4.34-5) e Suetônio (Vida de Tibério, 61.3).

[9] Em diversos momentos e sociedades, livros com discursos diferentes daquele dos regimes vigentes foram incinerados. O caso da biblioteca de Alexandria é bastante conhecido. Durante a Inquisição isso também ocorreu. Em 1933, livros foram queimados durante o Nazismo, na Alemanha. Mais recentemente, em 1973, Pinochet também ordenara queimar livros. Para mais eventos do tipo: https://pt.wikipedia.org/wiki/Queima_de_livros.

[10] Assim Tácito nos conta: Pois, se por quinze anos, um grande espaço de tempo da vida humana, muitos foram mortos por circunstâncias fortuitas e os mais diligentes pela crueldade do príncipe, poucos, por assim dizer, somos não só sobreviventes a outros, mas também a nós mesmos. Fomos arrebatados do meio da vida tantos anos, durante os quais viemos em silêncio, jovens até a velhice, velhos até quase o próprio fim de sua geração. Mas eu não lamentarei ter composto, mesmo com tom grosseiro e rude, a memória da servidão passada e o testemunho dos êxitos do presente (Tácito, A vida de Júlio Agrícola, 3.2).

[11] De Eliane Brum, Como resistir em tempos brutos, aqui: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/08/opinion/1539019640_653931.html.

Vou ali fazer um sanduíche e já volto…, por Danielle Lima

É comum encontrarmos estudantes de pós-graduação, dos estudos literários ou das demais áreas, que já viveram ou têm planos de viver algum tipo de experiência de pesquisa no exterior, ou seja, o famoso doutorado sanduíche. O texto de hoje é uma contribuição da mestra e doutoranda pela Unicamp Danielle Lima, falando sobre sua experiência como pesquisadora no exterior. A autora explica ainda as motivações e os ganhos de um doutorado sanduíche. Em uma época em que a pesquisa científica do nosso país anda  agonizante, vale a pena conhecer um pouco mais sobre a importância dessa experiência!

Vou ali fazer um sanduíche e já volto…
Danielle Lima

Você pode estar se perguntando o que um sanduíche tem a ver com a universidade, se nunca ouviu falar desse termo. É assim que a gente chama o período de estágio que os alunos de pós- graduação – que fazem mestrado e doutorado – fazem no exterior. Pois é, o período de pesquisa em outro país é o recheio desse lanche, digo, desse trabalho que fazemos durante alguns anos na academia. Pode até parecer que eu inventei esse nome, mas é assim que a própria Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), que são agências de fomento da ciência no Brasil[1], denominam o estágio de pesquisa doutoral no exterior. Para os alunos de graduação, há também bolsas que permitem a realização de uma graduação-sanduíche, ou ainda o duplo-diploma.

Mas o que é que se faz nesse estágio, afinal? Ao longo de nossa pesquisa, nos deparamos, algumas vezes, com a dificuldade de encontrar fontes, textos ou trabalhos que nos ajudem a construir a nossa tese. E como não há (quase) nada de novo sobre a terra, pode ser que aquilo que precisamos esteja em algum outro canto do planeta. Por isso, os alunos de pós-graduação podem se candidatar a uma bolsa sanduíche no exterior para complementar suas pesquisas.

O processo todo envolve escrever um projeto que, além de explicar sua proposta, justifique a necessidade de ir a outro país buscar novos dados para a escrita de nosso trabalho. Precisamos também encontrar um professor que aceite nos receber nessa universidade no exterior e enviar os demais documentos solicitados, como carta de motivação, currículo etc. Depois disso, é só fazer as malas e se preparar para conhecer outro ambiente de pesquisa e pôr a mão na massa!

Faço parte dos meus estudos, ou seja, meu sanduíche, na França, numa cidade chamada Bordeaux. Aqui há várias universidades e fui aceita para trabalhar como pesquisadora na Université Bordeaux Montaigne. Veja só: aqui na França, o trabalho de pesquisa é considerado um emprego mesmo; então, não necessariamente sou considerada aqui uma estudante. Em outros países, ou a depender da universidade (mesmo na França), os alunos que vêm fazer seu sanduíche podem frequentar a universidade como estudantes e, assim, a depender de suas pesquisas e de seus orientadores no exterior, além de pesquisarem, também podem frequentar aulas.

No meu caso, meu trabalho é ir a bibliotecas (sim, há várias!), recolher material de pesquisa e apresentar relatórios para o professor que acompanha minha pesquisa aqui. Então, uma das bibliotecas que mais frequento é especial para pesquisadores e doutorandos, havendo muita bibliografia interessante para meu trabalho. Ou seja, pesquiso, separo obras, me dedico à leitura e também a me organizar para levar o que for possível para o Brasil.

Ah, mas precisa ir tão longe para isso? Hoje há tantas coisas na internet, não dá para pesquisar assim? Sim, é preciso ir longe!

 

O período sanduíche de uma pesquisa é importante não só para o pesquisador em si, que encontrará materiais variados, em diversas línguas, mas também para a própria universidade de onde vem. Afinal, para além do trabalho braçal de pesquisa, esse estágio permite a troca de ideias, o conhecimento de outra cultura e a divulgação daquilo que fazemos no Brasil. Vejam, eu sou aluna de Letras Clássicas e estudo latim. Trata-se de uma área de pesquisa que ainda pode ser considerada recente e que ganha cada vez mais força em nosso país. Porém, já são estudos tradicionais em diversos países como França, Itália, Alemanha entre outros, que muito produziram e ainda produzem sobre a literatura e cultura clássica – sem contar que alguns deles guardam não só influências da cultura greco-romana em sua arquitetura, mas também ruínas da Antiguidade.

Assim, tendo a oportunidade de vir pesquisar na França, posso conhecer um pouco das inúmeras pesquisas feitas aqui e contar o que faço no Brasil, expandindo as possibilidades de diálogo na pesquisa científica.

Isso vale, é claro, para qualquer área do conhecimento! Por isso as bolsas sanduíche são importantes para a formação acadêmica e para tornar a pesquisa brasileira internacional. Não à toa, além das bolsas oferecidas por instituições nacionais (tanto governamentais, quanto privadas), muitas universidades estrangeiras oferecem financiamento para que brasileiros realizem pesquisas no exterior.

Se você ganhou ânimo para pensar num tema de pesquisa e, quem sabe, fazer parte dela no exterior, você pode procurar informações práticas pelos links abaixo:

Bolsa Sanduíche Capes: http://www.capes.gov.br/bolsas/bolsas-no-exterior

Bolsa Sanduíche CNPq: http://cnpq.br/bolsas-no-exterior1

Outras bolsas: http://noticias.universia.com.br/estudiar-extranjero

[1] Ou seja, agências que são responsáveis por manter e por divulgar a produção científica em nosso país.