Mariangela Gualtieri e a tradução do poema “A esta hora da noite”

Geraldo de Oliveira Alló Netto

Luciano de Oliveira

Nirvana Dornelles

Simone Maria Losso

Cláudia Tavares Alves

Foto: Dino Ignani
Fonte: https://www.artribune.com/arti-performative/teatro-danza/2012/10/cio-che-ci-rende-umani-secondo-mariangela-gualtieri/

 

Mariangela Gualtieri nasceu em 1951, em Cesena, Itália. Importante poeta e escritora contemporânea, é também atriz, dramaturga, formada em Arquitetura pela IUAV de Veneza. Fundou, em 1983, o Teatro Valdoca, junto ao diretor Cesare Ronconi, onde atua como dramaturga e intérprete. Gualtieri já venceu vários prêmios literários e publicou diversas coletâneas de poemas, entre elas, Antenata (Crocetti Editore, 1992), Fuoco centrale e altre poesie per il teatro (Einaudi, 2003), Senza polvere senza peso (Einaudi, 2006), Bestia di gioia (Einaudi, 2010), Le giovane parole (Einaudi, 2015), e sua mais recente publicação, Quando non morivo (Einaudi, 2019). Em suas obras, tanto poéticas quanto teatrais, reforça repetidas vezes o aspecto de “inadequação da palavra” e assume suas influências, como Dante Alighieri, Amelia Rosselli, Dylan Thomas, entre outros poetas e escritores, os quais aparecem citados frequentemente em suas entrevistas e declarações.

Tais influências também ficam evidentes no poema “In quest’ora della sera”, apresentado aqui em tradução para português[1]. O texto está repleto de intertextualidades e representa, por meio de seus próprios versos, uma espécie de agradecimento e homenagem a todos os poetas, filósofos e mestres que antecederam sua escrita, firmando ainda o propósito de estar aberto a todos os que venham complementá-lo posteriormente, seguindo o que diz o verso: “pelo fato de que este poema é inexaurível e não chegará nunca ao último verso”. Por extensão, podemos dizer que nesse poema testemunhamos Gualtieri transformando a linguagem poética no próprio tecido de que é feita a existência humana e vice-versa.

O alicerce principal deste poema parece ser “Outro Poema dos Dons”, de Jorge Luís Borges[2], que segue, por sua vez, a estrutura do Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis. Escrito provavelmente em torno do ano de 1224, tal cântico expressa a experiência espiritual pelo louvor a Deus através de suas criaturas. No poema de Gualtieri, esse louvor se transforma em agradecimento às coisas simples que nos são dadas, aos sentimentos que nos engrandecem e aos grandes mestres que nos permitem vislumbrar, pela poesia, esses momentos epifânicos.

Outras intertextualidades igualmente presentes são menos explícitas, como é o caso do verso “sono tornate le lucciole”, referindo-se provavelmente ao ensaio “L’articolo delle lucciole”[3], de Pier Paolo Pasolini. Há também uma referência ao poema “Se l’anima”, de Amelia Rosselli[4], retomado no verso “Se l’anima scende dal suo gradino, la terra muore”. Finalmente, é possível recuperar uma menção a um conto de Dino Buzzati, “Inviti Superflui[5], pelo verso “per il bene dell’amicizia, quando si dicono cose stupide e care”. O poema termina ainda com uma versão do verso que encerra o Paraíso, da Divina Comédia, de Dante Alighieri, visto aqui como “per l’amor che se move il sole e l’altre stelle. / E muove tutto in noi”.

Em relação à experiência de tradução coletiva do poema, os problemas apareceram das mais variadas formas, como em todo processo tradutório no qual se pretende promover a circulação de um texto fora de sua cultura de partida. Primeiramente, é importante destacar que, por se tratar de um trabalho feito a muitas mãos, foi necessário mediar as escolhas de cada tradutor sem deixar de considerar, como menciona Rosemary Arrojo[6], que “há (…) um outro autor a habitar o texto traduzido”.

Nesse sentido, as dificuldades começaram logo nos primeiros versos, devido à expressão “ringraziare desidero”, refrão central que sintetiza todo o tema do poema. Embora “desidero ringraziare” e “desejo agradecer” sejam as formas mais usuais, tanto em italiano como em português, optamos por manter na tradução a ordem original das palavras, ou seja, “agradecer desejo”, procurando assim preservar a inversão – que entendemos refletir o estilo e a escolha da autora – e a intertextualidade com a ordem sintática presente no poema de Borges.

Outro dilema recorrente que exemplifica como o tradutor está sempre diante de uma escolha refere-se à tradução do verbo essere. As diferenças entre estado permanente (verbo ser) e estado não permanente (verbo estar), no português, são marcadas, diferentemente do italiano. Por isso, na tradução, as escolhas se tornaram mais sutis e quase subjetivas, considerando que, na plenitude de um momento, como seria possível definir se somos ou apenas estamos?

Vale destacar ainda que os diversos exemplos de intertextualidade, mencionados anteriormente, atuaram também como ponto de apoio para algumas das opções de tradução, visto que determinadas frases ou expressões já possuíam traduções para o português publicadas e, por isso, buscamos consultá-las e mantê-las quando possível.

Considerando, finalmente, que a tradução é uma entre todas as leituras possíveis de um texto, apresentamos, a seguir, o resultado da nossa leitura e do nosso processo tradutório:

 

“A esta hora da noite”

 

A esta hora da noite

deste ponto do mundo

 

Agradecer desejo o divino

labirinto das causas e dos efeitos

pela diversidade das criaturas

que compõem este universo singular

agradecer desejo

pelo amor, que nos faz ver os outros

como os vê a divindade

pelo pão e pelo sal

pelo mistério da rosa

que esbanja cor e não a vê

pela arte da amizade

pelo último dia de Sócrates

pela linguagem, que pode simular a sabedoria

eu agradecer desejo

pela coragem e pela felicidade dos outros

pela pátria sentida nos jasmins

 

e pelo esplendor do fogo

que nenhum ser humano pode olhar

sem um estupor antigo

 

e pelo mar

que é o mais próximo e o mais doce

entre todos os Deuses

agradecer desejo

porque voltaram os vaga-lumes

e por nós

por quando somos ardentes e leves

por quando somos alegres e gratos

pela beleza das palavras

natureza abstrata de Deus

pela escrita e pela leitura

que nos fazem explorar a nós mesmos e o mundo

 

pela quietude da casa

pelas crianças que são

nossas divindades domésticas

pela alma, porque se descer de seu degrau

a terra morre

pelo fato de ter uma irmã

agradecer desejo por todos aqueles

que são pequenos, límpidos e livres

pela antiga arte do teatro, quando

ainda reúne os vivos e os nutre

 

pela inteligência do amor

pelo vinho e sua cor

pelo ócio com sua espera por nada

pela beleza tão antiga e tão nova

 

eu agradecer desejo pelas faces do mundo

que são várias e muitas são adoráveis

por quando à noite

se dorme abraçado

por quando somos atenciosos e apaixonados

pela atenção

que é a oração espontânea da alma

por todas as bibliotecas do mundo

por sentir-se bem entre aqueles que leem

pelos nossos mestres grandiosos

por quem ao longo dos séculos tem raciocinado em nós

 

pelo bem da amizade

quando se dizem coisas estúpidas e ternas

por todos os beijos de amor

pelo amor que nos torna destemidos

pelo contentamento, o entusiasmo, a embriaguez

pelos mortos nossos

que fazem da morte um lugar habitado.

 

Agradecer desejo

porque sobre esta terra existe a música

pela mão direita e pela mão esquerda

e seu íntimo acordo

por quem é indiferente à notoriedade

pelos cães, pelos gatos

seres fraternos cheios de mistério

pelas flores

e a secreta vitória que celebram

pelo silêncio e seus muitos dons

pelo silêncio que talvez seja a maior lição

pelo sol, nosso antepassado.

 

Eu agradecer desejo

por Borges

por Whitman e Francisco de Assis

por Hopkins, por Herbert

porque já escreveram este poema,

pelo fato de que este poema é inexaurível

e não chegará nunca ao último verso

e muda conforme os homens.

Agradecer desejo

pelos minutos que precedem o sono,

pelos íntimos dons que não enumero

pelo sono e pela morte

estes dois tesouros ocultos.

 

E enfim agradecer desejo

pela grande potência do antigo amor

pelo amor que move o sol e as outras estrelas.

E move tudo em nós.

 

 

“In quest’ora della sera”[7]

 

In quest’ora della sera

da questo punto del mondo

 

Ringraziare desidero il divino

labirinto delle cause e degli effetti

per la diversità delle creature

che compongono questo universo singolare

ringraziare desidero

per l’amore, che ci fa vedere gli altri

come li vede la divinità

per il pane e per il sale

per il mistero della rosa

che prodiga colore e non lo vede

per l’arte dell’amicizia

per l’ultima giornata di Socrate

per il linguaggio, che può simulare la sapienza

io ringraziare desidero

per il coraggio e la felicità degli altri

per la patria sentita nei gelsomini

 

e per lo splendore del fuoco

che nessun umano può guardare

senza uno stupore antico

 

e per il mare

che è il più vicino e il più dolce

fra tutti gli Dèi

ringraziare desidero

perché sono tornate le lucciole

e per noi

per quando siamo ardenti e leggeri

per quando siamo allegri e grati

per la bellezza delle parole

natura astratta di Dio

per la scrittura e la lettura

che ci fanno esplorare noi stessi e il mondo

 

per la quiete della casa

per i bambini che sono

nostre divinità domestiche

per l’anima, perché se scende dal suo gradino

la terra muore

per il fatto di avere una sorella

ringraziare desidero per tutti quelli

che sono piccoli, limpidi e liberi

per l’antica arte del teatro, quando

ancora raduna i vivi e li nutre

 

per l’intelligenza d’amore

per il vino e il suo colore

per l’ozio con la sua attesa di niente

per la bellezza tanto antica e tanto nuova

 

io ringraziare desidero per le facce del mondo

che sono varie e molte sono adorabili

per quando la notte

si dorme abbracciati

per quando siamo attenti e innamorati

per l’attenzione

che è la preghiera spontanea dell’anima

per tutte le biblioteche del mondo

per quello stare bene fra gli altri che leggono

per i nostri maestri immensi

per chi nei secoli ha ragionato in noi

 

per il bene dell’amicizia

quando si dicono cose stupide e care

per tutti i baci d’amore

per l’amore che rende impavidi

per la contentezza, l’entusiasmo, l’ebrezza

per i morti nostri

che fanno della morte un luogo abitato.

 

Ringraziare desidero

perché su questa terra esiste la musica

per la mano destra e la mano sinistra

e il loro intimo accordo

per chi è indifferente alla notorietà

per i cani, per i gatti

esseri fraterni carichi di mistero

per i fiori

e la segreta vittoria che celebrano

per il silenzio e i suoi molti doni

per il silenzio che forse è la lezione più grande

per il sole, nostro antenato.

 

Io ringraziare desidero

per Borges

per Whitman e Francesco d’Assisi

per Hopkins, per Herbert

perché scrissero già questa poesia,

per il fatto che questa poesia è inesauribile

e non arriverà mai all’ultimo verso

e cambia secondo gli uomini.

Ringraziare desidero

per i minuti che precedono il sonno,

per gli intimi doni che non enumero

per il sonno e la morte

quei due tesori occulti.

 

E infine ringraziare desidero

per la gran potenza d’antico amor

per l’amor che se move il sole e l’altre stelle.

E muove tutto in noi.

 

[1] Tradução realizada no âmbito das atividades da disciplina “Prática de Tradução”, ministrada entre fevereiro e maio de 2021, sob supervisão da Profa. Cláudia Tavares Alves, na Universidade Federal de Santa Catarina.

[2] Cf. El Oltro, El Mismo (1964). Disponível em: www.literatura.us/borges/elotro.html, consulta em: 11 jun. 2021.

[3] Cf. Scritti corsari (1975).  O ensaio também está disponível em: https://www.corriere.it/speciali/pasolini/potere.html, consulta em: 11 jun. 2021.

[4] Cf. Variazioni beliche (1964). O poema está disponível em https://ameliarosselli.blogspot.com/2008/12/archivio-rosselli.html, consulta em: 11 jun. 2021.

[5] Cf. La Boutique del mistero (1968). Um trecho do conto está disponível em: http://tomascipriani.it/inviti-superflui-dino-buzzati/, consulta em: 11 jun. 2021.

[6] ARROJO, Rosemary. Tradução, desconstrução e psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 80.

[7] In: Le giovani parole. Turim: Einaudi, 2015, pp. 115-117.

Elio Vittorini e o conto “Nome e Lágrimas”

 

Luciano de Oliveira

Cláudia Tavares Alves

 

Foto disponível em: https://www.cancelloedarnonenews.it/elio-vittorini/

 

É possível dizer que um dos escritores “que melhor soube interpretar o momento histórico e político da cultura italiana nos primeiros anos do pós-guerra foi Elio Vittorini”.[1] Isso porque Vittorini (Siracusa, 1908 – Milão, 1966) foi um dos protagonistas do ambiente cultural italiano entre as décadas de 1930 e 1950. Criticava a burguesia, por exemplo, através de personagens que representavam figuras políticas problemáticas, como em Il garofano rosso [O cravo vermelho] (1948), ou descrevendo a vida em um bairro operário, como em Erica e i suoi fratelli [Érica e os seus irmãos] (1956), ambos romances que circularam inicialmente em periódicos. Em 1945, publicou Uomini e no [Homens e não], romance dedicado ao tema da guerra e da Resistência. Com a queda do fascismo, Vittorini se envolveria ainda com a militância comunista e com um intenso trabalho pela renovação cultural italiana, o que pode ser visto em revistas como Il Politecnico e Il Menabò, em colaboração com a editora Einaudi. O escritor foi também tradutor, a partir da busca por uma experiência internacional, o que possibilitou a publicação de Americana (1942), importante antologia de escritores estadunidenses, como Edgar Allan Poe.[2] Conquistar novas fronteiras, olhando para a tradição democrática americana, era uma forma de eliminar as restrições impostas pelo fascismo e dar novo fôlego à tradição literária italiana.

Sua obra prima, Conversazione in Sicilia [Conversa na Sicília], narração alegórico-autobiográfica em primeira pessoa, foi publicada em episódios na revista Letteratura entre abril de 1938 e abril de 1939. Finalmente, quando reunida em um único volume, recebeu inicialmente o título de Nome e lacrime [Nome e lágrimas], em 1941, ao ser publicada pela editora Parenti; no mesmo ano, foi republicada pela editora Bompiani, com seu título definitivo[3]. Nessa obra, o narrador Silvestro, jovem intelectual que representaria o próprio Vittorini, volta à Sicília, vindo de Milão, para reencontrar sua mãe. O estilo empregado, em uma prosa quase lírica, evoca a ideia de fuga da realidade. Entretanto, durante sua viagem, o personagem reflete sobre a situação da Itália e das regiões mais marginalizadas ao final do regime, assim como sobre o seu papel político.[4]

O conto “Nome e lacrime”, cuja tradução para o português é apresentada aqui,[5] foi publicado pela primeira vez em 31 de outubro de 1939, na revista Corrente, e integrou a primeira edição homônima do livro, em 1941. É possível reconhecer, na escrita de Vittorini, referências aos tempos de repressão fascista. Alguns exemplos dessa afirmação ocorrem em trechos como a pergunta feita pelo guarda ao protagonista, buscando saber se este último estava escrevendo alguma mensagem de enaltecimento ou protesto (“Nenhum ‘Viva’? Nenhum ‘Abaixo’?”), ou ainda a menção ao Campo de Marte, região da Roma antiga dedicada a Marte, deus da guerra. Essa menção poderia também se relacionar ao famoso Champs de Mars, área próxima à Torre Eiffel, em Paris, que tradicionalmente servia a manobras da escola militar. Assim, apesar do tom misterioso que ronda a narrativa, percebemos que ela está relacionada à realidade mais imediata do escritor.

Boa leitura!

Nome e Lágrimas[6]

Eu estava escrevendo nas pedrinhas do jardim e já estava escuro havia algum tempo, com as luzes acesas em todas as janelas.

O guarda passou.

— O que o senhor está escrevendo? — ele me perguntou.

— Uma palavra — respondi.

Ele se inclinou para olhar, mas não viu.

— Que palavra? — perguntou de novo.

— Bem — eu disse. — É um nome.

Ele sacudiu as suas chaves.

— Nenhum “Viva”? Nenhum “Abaixo”?

— Não, não! — eu exclamei.

E ri também.

— É um nome de pessoa — eu disse.

— De uma pessoa que o senhor está esperando? — ele perguntou.

— Sim — eu respondi. — Estou esperando.

O guarda então se afastou e eu voltei a escrever. Escrevi e encontrei a terra embaixo das pedrinhas e escavei, e escrevi, e a noite ficou mais escura.

 

O guarda voltou.

— Está escrevendo ainda? — ele disse.

— Sim — eu disse. — Escrevi um pouco mais.

— O que mais o senhor escreveu? — ele perguntou.

— Nada mais — eu respondi. — Nada além daquela palavra.

— O quê? — gritou o guarda. — Nada além daquele nome?

E de novo sacudiu as chaves, acendeu a lanterna para olhar.

— Estou vendo — ele disse. — Não é nada além daquele nome.

Levantou a lanterna e me encarou.

— Escrevi mais fundo — eu expliquei.

— Ah, é? — ele reagiu. — Se quiser continuar lhe dou uma enxada.

— Me dê — eu respondi.

O guarda me deu a enxada, novamente se afastou, e com a enxada eu escavei e escrevi o nome até ficar muito profundo na terra. Eu teria escrito, na verdade, até o carvão e o ferro, até os metais mais secretos de nomes antigos. Mas o guarda voltou outra vez e disse:

— Agora o senhor deve ir embora. Estamos fechando.

Eu saí das valas do nome.

— Está bem — respondi.

Larguei a enxada, enxuguei a testa, olhei para a cidade à minha volta, além das árvores escuras.

— Está bem — eu disse. — Está bem.

O guarda sorriu maliciosamente.

— Ela não veio, não é?

— Ela não veio — eu disse.

Mas logo depois perguntei:

— Quem não veio?

O guarda levantou a lanterna me encarando como antes.

— A pessoa que o senhor estava esperando — ele disse.

— Sim — eu disse — ela não veio.

Mas, de novo, logo depois, perguntei:

— Que pessoa?

— Diacho! — disse o guarda. — A pessoa do nome.

E ele sacudiu a lanterna, sacudiu as chaves, acrescentou:

— Se o senhor quiser esperar um pouco mais, não faça cerimônia.

— Não é isso que importa — eu disse. — Obrigado.

 

Mas eu não fui embora, fiquei, e o guarda ficou ali comigo, como se me fizesse companhia.

— Noite bonita! — ele disse.

— Bonita — eu disse.

 

Então ele deu alguns passos, com a lanterna na mão, em direção às árvores.

— Mas — ele disse — tem certeza de que ela não está lá?

Eu sabia que ela não podia vir, mesmo assim estremeci.

— Onde? — eu disse em voz baixa.

— Lá — o guarda disse. — Sentada no banco.

Folhas, com essas palavras, se moveram; uma mulher se levantou da escuridão e começou a caminhar sobre as pedrinhas. Eu fechei os olhos ao som dos seus passos.

— Ela tinha vindo, não? — disse o guarda.

Sem lhe responder, eu fui atrás daquela mulher.

— Estamos fechando — o guarda gritou. — Estamos fechando.

Gritando “estamos fechando”, ele se afastou por entre as árvores.

 

Eu fui atrás da mulher saindo do jardim, e depois pelas ruas da cidade.

Eu a segui atrás do que tinha sido o som dos seus passos sobre as pedrinhas.

Ou melhor: guiado pela recordação dos seus passos. E foi um caminhar longo, um seguir longo, ora entre a multidão, ora por calçadas solitárias, até que, pela primeira vez, levantei os olhos e a vi, uma transeunte, à luz da última loja.

Vi os seus cabelos, na verdade. Nada mais. E tive medo de perdê-la, comecei a correr.

A cidade, naquelas latitudes, se alternava em prados e casas altas, Campos de Marte obscuros e feiras de luzes, com o olho vermelho do gasogênio ao fundo.

Perguntei várias vezes:

— Ela passou por aqui?

Todos me respondiam que não sabiam.

Mas uma menina brincalhona se aproximou, andando rápido de patins e riu.

— Aaah! — ela riu. — Aposto que você está procurando a minha irmã.

— A sua irmã? — eu exclamei. — Como ela se chama?

— Não vou lhe dizer — a menina respondeu.

E de novo riu; fez, com os patins, um giro de dança da morte ao meu redor.

— Aaah! — ela riu.

— Me diga então onde ela está — eu pedi a ela.

— Aaah! — a menina riu. — Ela está num portão.

Ela rodopiou ao meu redor na sua dança da morte por mais um minuto, depois foi embora patinando na avenida sem fim, rindo.

— Ela está num portão — gritou de longe, rindo.

 

Havia casais infames nos portões, mas eu cheguei em um que estava deserto e nu. O portão se abriu quando eu o empurrei, subi as escadas e comecei a ouvir alguém chorando.

— É ela que está chorando? — perguntei à zeladora.

A velha estava dormindo sentada no meio das escadas, com os seus panos de limpeza na mão, e acordou, olhou para mim.

— Não sei — ela respondeu. — Quer que chame o elevador?

Eu não quis, queria ir até aquele choro, e continuei subindo as escadas dentre as janelas escuras e escancaradas. Cheguei finalmente aonde estava o choro: atrás de uma porta branca. Entrei e estava próximo dela, acendi a luz.

Mas não vi ninguém no cômodo, nem ouvi mais nada. Porém, sobre o sofá, estava o lenço das suas lágrimas.

 

[1] VECCE, Carlo. Piccola Storia della Letteratura Italiana. Napoli: Liguori Editore, 2009, p. 512. Tradução nossa.

[2] ANSELMI, Gian Mario. Profilo storico della letteratura italiana. 4ª ed. Milano: Sansoni, 2008, p. 365.

[3] BRIGATTI, Virna. “Vittorini, Elio” in Dizionario Biografico degli Italiani, v. 99, 2020. Disponível em: https://www.treccani.it/enciclopedia/elio-vittorini_%28Dizionario-Biografico%29/. Acesso em: 4 jun. 2021.

[4] BATTISTINI, Andrea. (Org.) Letteratura Italiana: Dal Settecento ai nostri giorni. Bologna: Società editrice il Mulino, 2014, p. 468.

[5] Tradução realizada no âmbito das atividades da disciplina “Prática de Tradução”, ministrada entre fevereiro e maio de 2021, sob supervisão da Profa. Cláudia Tavares Alves, na Universidade Federal de Santa Catarina.

[6] Utilizou-se como referência para esta tradução a versão do conto publicada em LAHIRI, Jhumpa (org.). Racconti italiani. Milão: Ugo Guanda, 2019, pp. 33-36.

A viagem de Pier Paolo Pasolini ao Brasil

Em março de 1970, um avião vindo da Itália, com destino a Argentina, fez um pouso de emergência na cidade de Recife, no litoral brasileiro. Nesse avião, viajavam Pier Paolo Pasolini e Maria Callas, ambos a caminho do Festival de Cinema de Mar del Plata, no qual apresentariam ao público o filme Medea (1969). Pasolini havia escrito e dirigido o filme e Maria Callas, grande cantora lírica, havia atuado como a protagonista Medeia. Durante as poucas horas em que ficaram confinados ao aeroporto pernambucano, ambos tiveram as suas primeiras impressões em território brasileiro. E dessa experiência improvável, resultado de um pouso surpresa, veio a inspiração para que Pasolini, que além de cineasta era também poeta, escrevesse dois poemas sobre o país que ali conhecera: “Comunicato all’Ansa (Recife)” e “Il piagnisteo di cui parlava Marx”. E é assim que o poeta descreve como se sentiu em sua chegada:

no aeroporto em construção, passando

diante de um grupo de operários que trabalham, dos olhos

que se levantam aos passageiros

É assim que o Brasil me saúda

(Transumanar e organizzar, 1971; tradução minha).

Pasolini associa as suas primeiras experiências no Brasil a essa espécie de porta-retrato do país. A imagem criada pelo poeta mostra que, dentre todas as primeiras observações que ele teve ao aterrissar e adentrar o aeroporto, foi o olhar dos operários, trabalhando na construção enquanto observavam os passageiros recém chegados, que lhe saudou, em nome do país, pela primeira vez.

Esses dois poemas que mencionam a estadia do cineasta em Recife estão publicados no livro Transumanar e organizzar, de 1971. E nesse mesmo livro, quase no final, encontramos ainda mais um longo poema, “Gerarchia”, em que o Brasil é novamente referenciado. Porém, ao invés de se referir às horas passadas dentro do aeroporto, nesse outro poema a referência é a um momento posterior, quando do retorno do escritor à Itália após o festival. A essa altura da viagem e já sozinho, Pasolini decide fazer uma breve parada de poucos dias nas cidades de Salvador e Rio de Janeiro, e “Gerarchia” é a descrição do que Pasolini viu e viveu em terras cariocas.

Nesse poema, reproduzido a seguir, o autor italiano descreve como foi ser guiado por um rapaz brasileiro (algo como Dante ao ser guiado por Virgílio) ao subir até uma favela, onde o autor teve a oportunidade de conhecer uma casa genuinamente brasileira, construída nas periferias da cidade. Esse jovem que Pasolini conheceu nas areias de Copacabana, Joaquim, integraria o que o poeta chamaria de hierarquia do país, composta em uma de suas extremidades por velhos intelectuais burgueses, semelhantes ao próprio poeta italiano (como ele mesmo declara) e, na outra, por jovens proletários, como Joaquim. As diferenças entre as duas classes originariam uma ambiguidade, o “nó inextricável”, que comporia a sociedade brasileira, segundo a visão do escritor.

Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, em 1969 (Fonte: Acervo O Globo)

É interessante observar que o poeta, ao descrever suas impressões sobre a sociedade brasileira, reconhece recorrentemente algo de sua própria nacionalidade, a ponto de se dizer concidadão brasileiro e de se referir ao Brasil como sua “pátria” e “terra natal”. O que haveria de similar entre o Brasil e a Itália para Pasolini? O que seria essa ambiguidade que o poeta percebe ao visitar uma favela no Brasil e que, de alguma forma, em sua opinião, se aproxima de características que ele tão bem conhecia em seu próprio país?

Uma possibilidade é pensar que, nos anos de 1970, isto é, contemporaneamente à sua passagem pelo Brasil, Pasolini estava bastante atento às mudanças culturais que ocorriam na Itália, sobretudo nas periferias (borgate) e no Sul do país, denominando o conjunto de transformações em curso de “mutação antropológica”. Nas palavras do escritor, o processo de industrialização tecnológica pelo qual o seu país passou após o fim da Segunda Guerra Mundial foi responsável por uma transformação econômica e social profunda na sociedade italiana, à que ele dá o nome de mutação. Entre as consequências desse processo estariam a padronização cultural dos jovens italianos (devido à influência da televisão e da escolarização, por exemplo), e à busca desenfreada por bens de consumo. O aburguesamento da população, fruto dessa padronização cultural, seria ainda o fim de uma época, pois diante da força do consumismo os comportamentos do passado, ligados a certas tradições, não poderiam mais resistir.

Pasolini em uma periferia de Roma, em 1969 (Foto de Carlo Bavagnoli)

Esse cenário devastador foi, sobretudo depois dos movimentos estudantis de 1968, a linha argumentativa preponderante nas obras de Pasolini. Então quando o poeta reconhece algo de similar entre a sua cultura e aquela vivida no Brasil é justamente nesse universo de referências que ele está interessado. Por isso, ao afirmar a ideia de um país latino criado “à imagem e semelhança do mundo europeu”, isto é, do seu próprio país, Pasolini nos leva a pensar que há algo na sociedade brasileira que se assemelha ao contexto consumista e padronizante que ele via impactar cada vez mais a sociedade italiana da mesma época.

Ainda que resguardadas as devidas particularidades históricas de cada país (as quais, sabemos, são muitas), haveria algo que nos aproximaria enquanto nações capitalistas, isto é, nações que fazem parte de um mesmo sistema econômico selvagem, baseado na produção e no consumo de mercadorias. A crítica de Pasolini é justamente às consequências culturais que esse regime econômico teria causado, padronizando todas as pessoas a partir do momento que todos consumiriam e se comportariam da mesma forma, pois não haveria outra alternativa.

Na Hierarquia social, essa padronização poderia ser vista sobretudo no comportamento dos jovens. No caso da Itália, Pasolini criticava a forma como os jovens que viviam nas borgate romanas ou no Sul do país se tornavam cada vez mais iguais fisicamente aos jovens do Centro, já que as diferenças culturais entre ambos haviam sido eliminadas pelo consumo e pela lógica burguesa. Parece que há a mesma linha crítica quando o poeta se refere ao Brasil, de forma que um jovem da Favela do Rio de Janeiro seria bastante semelhante a um jovem do Centro da cidade.       

O diálogo entre as duas nacionalidades nos faz então questionar como é possível que níveis de desenvolvimento tão distantes pudessem ser aproximados pelo escritor. Porém, acredito ser inegável que, com o passar dos anos e com cada vez mais intensidade, nós, brasileiros ou italianos, continuamos a habitar esse mundo que Pasolini tanto criticava. Um mundo igualmente nocivo a todas as tradições e as diferenças, como o escritor denunciava, mas a que hoje não chamamos mais de padronizado e sim de globalizado.

Hierarquia (Pier Paolo Pasolini)

Se chego a uma cidade

de além-mar

Muitas vezes chego a uma cidade nova, levado pela dúvida.

Transformado da noite para o dia em peregrino

de uma fé em que não creio;

representante de uma mercadoria depreciada há tempos,

mas é grande, sempre, uma estranha esperança –

Desço do avião com o passo do culpado,

o rabo entre as pernas, e uma eterna vontade de mijar,

que me faz andar meio dobrado com um sorriso incerto –

É preciso livrar-se da alfândega e, muitas vezes, dos fotógrafos:

prática ordinária que cada qual cuida como uma exceção.

Depois o desconhecido.

Quem passeia às quatro da tarde

por canteiros cheios de árvores

e alamedas de uma desesperada cidade aonde europeus pobres

vieram para recriar um mundo à imagem e semelhança do seu,

impelidos pela pobreza a fazer do exílio uma vida?

Com um olho em minhas coisas, em minhas obrigações –

Depois, nas horas vagas,

começa minha busca, como se também ela fosse uma culpa –

Mas a hierarquia está bem clara em minha cabeça.

Não há Oceano que resista.

Nessa hierarquia os últimos são os velhos.

Sim, os velhos, a cuja categoria começo a pertencer

(não falo do fotógrafo Sardeman que com a mulher

já íntima da morte me acolhe sorrindo

no estudiozinho de sua vida inteira)

Sim, há uns velhos intelectuais

que na Hierarquia

se põem à altura dos mais belos michês

os primeiros a ocupar os pontos mais cobiçados

e que como Virgílios conduzem com popular delicadeza

alguns velhos são dignos do Empíreo,

dignos de estar ao lado do primeiro garoto do povo

que se dá por mil cruzeiros em Copacabana

ambos são o meu guia

que me levando pela mão com delicadeza,

a delicadeza do intelectual e a do operário

(quase sempre desempregado)

a descoberta da invariabilidade da vida

necessita de inteligência e de amor

Vista do hotel da Rua do Rezende Rio –

a ascese precisa do sexo, do pau –

aquela estreita janela do hotel em que se paga o quartinho –

se olha por dentro o Rio, num aspecto de eternidade,

a noite de chuva que não traz frescor,

e molha as ruas miseráveis e os destroços,

e as últimas cornijas art nouveau dos portugueses pobres

milagre sublime!

E assim Josvé Carrea é o Primeiro na Hierarquia,

e com ele Harudo, vindo menino da Bahia, e Joaquim.

A Favela era como Cafarnaum sob o sol –

Percorrida por córregos de esgoto

os barracos amontoados

vinte mil famílias

(ele na praia me pedindo cigarro como um prostituto)

Não sabíamos que aos poucos revelaríamos uns aos outros,

prudentemente, uma palavra após a outra

dita quase distraidamente:

eu sou comunista, e: eu sou subversivo;

sou soldado num destacamento especialmente treinado

para combater subversivos e torturá-los;

mas eles não sabem;

as pessoas não se dão conta de nada;

só pensam em viver

(me fala do subproletariado)

A Favela fatalmente nos esperava,

eu grande conhecedor, ele guia –

seus pais nos acolheram, e o irmãozinho pelado

recém-saído de trás do oleado –

ah, sim, invariabilidade da vida, a mãe

me falou como Maria Lìmardi, preparando a sagrada

limonada para o hóspede; a mãe branca mas ainda de carnes jovens;

envelhecida como envelhecem as pobres, e no entanto menina;

sua gentileza, e a de seu companheiro,

fraternal com o filho que só por sua vontade

era agora uma espécie de mensageiro da Cidade –

Ah, subversivos, procuro o amor e encontro vocês.

Procuro a perdição e encontro a sede de justiça.

Brasil, minha terra,

terra de meus verdadeiros amigos,

que não se ocupam de nada

ou se tornam subversivos e como santos são cegados.

No círculo mais baixo da Hierarquia de uma cidade

imagem do mundo que de velho se faz jovem,

ponho os velhos, os velhos burgueses

pois um velho popular da cidade permanece jovem

não tem nada a defender –

anda vestido de regata e calças aos trapos como Joaquim, o filho.

Os velhos, minha categoria,

quer queiram ou não –

Não se pode escapar ao destino de possuir o Poder,

ele se põe por si

lenta e fatalmente na mão dos velhos,

ainda que tenham as mãos furadas

e sorriam humildemente como mártires sátiros –

Acuso os velhos de terem de todo modo vivido,

acuso os velhos de terem aceitado a vida

(e não podiam não aceitá-la, mas não há

vítimas inocentes)1

a vida, acumulando-se, produziu o que ela queria –

acuso os velhos de terem feito a vontade da vida.

Voltemos à Favela

onde ou não se pensa em nada

ou se quer ser mensageiro da Cidade

lá onde os velhos são pró-americanos –

Entre os jovens que jogam bola mal

diante de elevações encantadas sobre o frio Oceano,

quem quer alguma coisa e o sabe foi escolhido ao acaso –

ignorantes de imperialismo clássico

de qualquer delicadeza quanto ao velho Império a explorar

os Americanos dividem entre si os irmãos supersticiosos

sempre acesos por seu sexo como bandidos por uma fogueira de gravetos –

É assim por puro acaso que um brasileiro é fascista e outro subversivo;

aquele que arranca os olhos

pode ser confundido com aquele cujos olhos são arrancados.

Joaquim nunca poderia ser diferente de um sicário.

Por que então não amá-lo se o tivesse sido?

Também o sicário está no vértice da Hierarquia,

com seus traços simples apenas esboçados

com seu simples olho

sem outra luz que aquela da carne

Assim no topo da Hierarquia

encontro a ambiguidade, o nó inextricável.

Ó Brasil, minha pátria desgraçada,

destinada sem escolha à felicidade

(de tudo são donos o dinheiro e a carne,

ao passo que você é tão poético)

dentro de cada habitante seu, meu concidadão,

há um anjo que não sabe nada,

sempre dobrado sobre seu sexo,

que se move, velho ou jovem,

para pegar em armas e lutar

indiferentemente pelo fascismo ou pela liberdade –

Oh, Brasil, minha terra natal, onde

as velhas lutas – bem ou mal já vencidas –

para nós, velhos, readquirem sentido –

respondendo à graça de delinquentes ou de soldados

à graça brutal.

  1. Sartre.

(Poesia de Pier Paolo Pasolini, 2015; tradução Maurício Santana Dias)

  • “Il viaggio di Pasolini in Brasile” foi escrito a convite de Simone Apollo para o blog Dentro Rio de Janeiro, onde o texto está publicado em italiano: http://www.dentroriodejaneiro.it/storie/approfondimenti/pasolini-brasile-viaggio.html 
  • Os professores-pesquisadores Maria Betânia Amoroso (Unicamp), Mariarosaria Fabris (USP) e Michel Lahud (Unicamp) também escreveram sobre as relações entre Pasolini e o Brasil.
  • “A viagem de Pasolini ao Brasil” faz parte de uma série de reflexões que compõem a minha pesquisa de doutorado, “A importância de Pasolini no jornalismo italiano dos anos 1970”, desenvolvida na Unicamp e financiada pela FAPESP.