Geraldo de Oliveira Alló Netto
Luciano de Oliveira
Nirvana Dornelles
Simone Maria Losso
Cláudia Tavares Alves
Mariangela Gualtieri nasceu em 1951, em Cesena, Itália. Importante poeta e escritora contemporânea, é também atriz, dramaturga, formada em Arquitetura pela IUAV de Veneza. Fundou, em 1983, o Teatro Valdoca, junto ao diretor Cesare Ronconi, onde atua como dramaturga e intérprete. Gualtieri já venceu vários prêmios literários e publicou diversas coletâneas de poemas, entre elas, Antenata (Crocetti Editore, 1992), Fuoco centrale e altre poesie per il teatro (Einaudi, 2003), Senza polvere senza peso (Einaudi, 2006), Bestia di gioia (Einaudi, 2010), Le giovane parole (Einaudi, 2015), e sua mais recente publicação, Quando non morivo (Einaudi, 2019). Em suas obras, tanto poéticas quanto teatrais, reforça repetidas vezes o aspecto de “inadequação da palavra” e assume suas influências, como Dante Alighieri, Amelia Rosselli, Dylan Thomas, entre outros poetas e escritores, os quais aparecem citados frequentemente em suas entrevistas e declarações.
Tais influências também ficam evidentes no poema “In quest’ora della sera”, apresentado aqui em tradução para português[1]. O texto está repleto de intertextualidades e representa, por meio de seus próprios versos, uma espécie de agradecimento e homenagem a todos os poetas, filósofos e mestres que antecederam sua escrita, firmando ainda o propósito de estar aberto a todos os que venham complementá-lo posteriormente, seguindo o que diz o verso: “pelo fato de que este poema é inexaurível e não chegará nunca ao último verso”. Por extensão, podemos dizer que nesse poema testemunhamos Gualtieri transformando a linguagem poética no próprio tecido de que é feita a existência humana e vice-versa.
O alicerce principal deste poema parece ser “Outro Poema dos Dons”, de Jorge Luís Borges[2], que segue, por sua vez, a estrutura do Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis. Escrito provavelmente em torno do ano de 1224, tal cântico expressa a experiência espiritual pelo louvor a Deus através de suas criaturas. No poema de Gualtieri, esse louvor se transforma em agradecimento às coisas simples que nos são dadas, aos sentimentos que nos engrandecem e aos grandes mestres que nos permitem vislumbrar, pela poesia, esses momentos epifânicos.
Outras intertextualidades igualmente presentes são menos explícitas, como é o caso do verso “sono tornate le lucciole”, referindo-se provavelmente ao ensaio “L’articolo delle lucciole”[3], de Pier Paolo Pasolini. Há também uma referência ao poema “Se l’anima”, de Amelia Rosselli[4], retomado no verso “Se l’anima scende dal suo gradino, la terra muore”. Finalmente, é possível recuperar uma menção a um conto de Dino Buzzati, “Inviti Superflui[5]”, pelo verso “per il bene dell’amicizia, quando si dicono cose stupide e care”. O poema termina ainda com uma versão do verso que encerra o Paraíso, da Divina Comédia, de Dante Alighieri, visto aqui como “per l’amor che se move il sole e l’altre stelle. / E muove tutto in noi”.
Em relação à experiência de tradução coletiva do poema, os problemas apareceram das mais variadas formas, como em todo processo tradutório no qual se pretende promover a circulação de um texto fora de sua cultura de partida. Primeiramente, é importante destacar que, por se tratar de um trabalho feito a muitas mãos, foi necessário mediar as escolhas de cada tradutor sem deixar de considerar, como menciona Rosemary Arrojo[6], que “há (…) um outro autor a habitar o texto traduzido”.
Nesse sentido, as dificuldades começaram logo nos primeiros versos, devido à expressão “ringraziare desidero”, refrão central que sintetiza todo o tema do poema. Embora “desidero ringraziare” e “desejo agradecer” sejam as formas mais usuais, tanto em italiano como em português, optamos por manter na tradução a ordem original das palavras, ou seja, “agradecer desejo”, procurando assim preservar a inversão – que entendemos refletir o estilo e a escolha da autora – e a intertextualidade com a ordem sintática presente no poema de Borges.
Outro dilema recorrente que exemplifica como o tradutor está sempre diante de uma escolha refere-se à tradução do verbo essere. As diferenças entre estado permanente (verbo ser) e estado não permanente (verbo estar), no português, são marcadas, diferentemente do italiano. Por isso, na tradução, as escolhas se tornaram mais sutis e quase subjetivas, considerando que, na plenitude de um momento, como seria possível definir se somos ou apenas estamos?
Vale destacar ainda que os diversos exemplos de intertextualidade, mencionados anteriormente, atuaram também como ponto de apoio para algumas das opções de tradução, visto que determinadas frases ou expressões já possuíam traduções para o português publicadas e, por isso, buscamos consultá-las e mantê-las quando possível.
Considerando, finalmente, que a tradução é uma entre todas as leituras possíveis de um texto, apresentamos, a seguir, o resultado da nossa leitura e do nosso processo tradutório:
“A esta hora da noite”
A esta hora da noite
deste ponto do mundo
Agradecer desejo o divino
labirinto das causas e dos efeitos
pela diversidade das criaturas
que compõem este universo singular
agradecer desejo
pelo amor, que nos faz ver os outros
como os vê a divindade
pelo pão e pelo sal
pelo mistério da rosa
que esbanja cor e não a vê
pela arte da amizade
pelo último dia de Sócrates
pela linguagem, que pode simular a sabedoria
eu agradecer desejo
pela coragem e pela felicidade dos outros
pela pátria sentida nos jasmins
e pelo esplendor do fogo
que nenhum ser humano pode olhar
sem um estupor antigo
e pelo mar
que é o mais próximo e o mais doce
entre todos os Deuses
agradecer desejo
porque voltaram os vaga-lumes
e por nós
por quando somos ardentes e leves
por quando somos alegres e gratos
pela beleza das palavras
natureza abstrata de Deus
pela escrita e pela leitura
que nos fazem explorar a nós mesmos e o mundo
pela quietude da casa
pelas crianças que são
nossas divindades domésticas
pela alma, porque se descer de seu degrau
a terra morre
pelo fato de ter uma irmã
agradecer desejo por todos aqueles
que são pequenos, límpidos e livres
pela antiga arte do teatro, quando
ainda reúne os vivos e os nutre
pela inteligência do amor
pelo vinho e sua cor
pelo ócio com sua espera por nada
pela beleza tão antiga e tão nova
eu agradecer desejo pelas faces do mundo
que são várias e muitas são adoráveis
por quando à noite
se dorme abraçado
por quando somos atenciosos e apaixonados
pela atenção
que é a oração espontânea da alma
por todas as bibliotecas do mundo
por sentir-se bem entre aqueles que leem
pelos nossos mestres grandiosos
por quem ao longo dos séculos tem raciocinado em nós
pelo bem da amizade
quando se dizem coisas estúpidas e ternas
por todos os beijos de amor
pelo amor que nos torna destemidos
pelo contentamento, o entusiasmo, a embriaguez
pelos mortos nossos
que fazem da morte um lugar habitado.
Agradecer desejo
porque sobre esta terra existe a música
pela mão direita e pela mão esquerda
e seu íntimo acordo
por quem é indiferente à notoriedade
pelos cães, pelos gatos
seres fraternos cheios de mistério
pelas flores
e a secreta vitória que celebram
pelo silêncio e seus muitos dons
pelo silêncio que talvez seja a maior lição
pelo sol, nosso antepassado.
Eu agradecer desejo
por Borges
por Whitman e Francisco de Assis
por Hopkins, por Herbert
porque já escreveram este poema,
pelo fato de que este poema é inexaurível
e não chegará nunca ao último verso
e muda conforme os homens.
Agradecer desejo
pelos minutos que precedem o sono,
pelos íntimos dons que não enumero
pelo sono e pela morte
estes dois tesouros ocultos.
E enfim agradecer desejo
pela grande potência do antigo amor
pelo amor que move o sol e as outras estrelas.
E move tudo em nós.
“In quest’ora della sera”[7]
In quest’ora della sera
da questo punto del mondo
Ringraziare desidero il divino
labirinto delle cause e degli effetti
per la diversità delle creature
che compongono questo universo singolare
ringraziare desidero
per l’amore, che ci fa vedere gli altri
come li vede la divinità
per il pane e per il sale
per il mistero della rosa
che prodiga colore e non lo vede
per l’arte dell’amicizia
per l’ultima giornata di Socrate
per il linguaggio, che può simulare la sapienza
io ringraziare desidero
per il coraggio e la felicità degli altri
per la patria sentita nei gelsomini
e per lo splendore del fuoco
che nessun umano può guardare
senza uno stupore antico
e per il mare
che è il più vicino e il più dolce
fra tutti gli Dèi
ringraziare desidero
perché sono tornate le lucciole
e per noi
per quando siamo ardenti e leggeri
per quando siamo allegri e grati
per la bellezza delle parole
natura astratta di Dio
per la scrittura e la lettura
che ci fanno esplorare noi stessi e il mondo
per la quiete della casa
per i bambini che sono
nostre divinità domestiche
per l’anima, perché se scende dal suo gradino
la terra muore
per il fatto di avere una sorella
ringraziare desidero per tutti quelli
che sono piccoli, limpidi e liberi
per l’antica arte del teatro, quando
ancora raduna i vivi e li nutre
per l’intelligenza d’amore
per il vino e il suo colore
per l’ozio con la sua attesa di niente
per la bellezza tanto antica e tanto nuova
io ringraziare desidero per le facce del mondo
che sono varie e molte sono adorabili
per quando la notte
si dorme abbracciati
per quando siamo attenti e innamorati
per l’attenzione
che è la preghiera spontanea dell’anima
per tutte le biblioteche del mondo
per quello stare bene fra gli altri che leggono
per i nostri maestri immensi
per chi nei secoli ha ragionato in noi
per il bene dell’amicizia
quando si dicono cose stupide e care
per tutti i baci d’amore
per l’amore che rende impavidi
per la contentezza, l’entusiasmo, l’ebrezza
per i morti nostri
che fanno della morte un luogo abitato.
Ringraziare desidero
perché su questa terra esiste la musica
per la mano destra e la mano sinistra
e il loro intimo accordo
per chi è indifferente alla notorietà
per i cani, per i gatti
esseri fraterni carichi di mistero
per i fiori
e la segreta vittoria che celebrano
per il silenzio e i suoi molti doni
per il silenzio che forse è la lezione più grande
per il sole, nostro antenato.
Io ringraziare desidero
per Borges
per Whitman e Francesco d’Assisi
per Hopkins, per Herbert
perché scrissero già questa poesia,
per il fatto che questa poesia è inesauribile
e non arriverà mai all’ultimo verso
e cambia secondo gli uomini.
Ringraziare desidero
per i minuti che precedono il sonno,
per gli intimi doni che non enumero
per il sonno e la morte
quei due tesori occulti.
E infine ringraziare desidero
per la gran potenza d’antico amor
per l’amor che se move il sole e l’altre stelle.
E muove tutto in noi.
[1] Tradução realizada no âmbito das atividades da disciplina “Prática de Tradução”, ministrada entre fevereiro e maio de 2021, sob supervisão da Profa. Cláudia Tavares Alves, na Universidade Federal de Santa Catarina.
[2] Cf. El Oltro, El Mismo (1964). Disponível em: www.literatura.us/borges/elotro.html, consulta em: 11 jun. 2021.
[3] Cf. Scritti corsari (1975). O ensaio também está disponível em: https://www.corriere.it/speciali/pasolini/potere.html, consulta em: 11 jun. 2021.
[4] Cf. Variazioni beliche (1964). O poema está disponível em https://ameliarosselli.blogspot.com/2008/12/archivio-rosselli.html, consulta em: 11 jun. 2021.
[5] Cf. La Boutique del mistero (1968). Um trecho do conto está disponível em: http://tomascipriani.it/inviti-superflui-dino-buzzati/, consulta em: 11 jun. 2021.
[6] ARROJO, Rosemary. Tradução, desconstrução e psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 80.
[7] In: Le giovani parole. Turim: Einaudi, 2015, pp. 115-117.