Com um frango no quintal

Talvez uma das facetas mais importantes que um pesquisador pode desempenhar é a de divulgar a ciência, tanto o conhecimento por ele produzido quanto por seus pares. A divulgação cientifica possibilita a aproximação de duas esferas tidas como tradicionalmente distantes que é o conhecimento popular e o conhecimento cientifico, Por meio da divulgação os pesquisadores nutrem a esperança de que pelo menos partes do conhecimento cientifico comece a integrar o conhecimento popular (e.g., teoria da gravidade, relatividade, alguns fatos sobre dinosauros, etc). A divulgação cientifica feita pelos próprios cientistas é relativamente rara e no mínimo controversa, visto que pesquisadores divulgadores são vistos como “estranhos no ninho” por seus pares (ver postagem). No entanto, cada vez mais os orgãos de fomento brasileiros estão reconhecendo a importância de divulgar os resultados das pesquisas por eles financiadas. Portanto, vem  se tornando cada vez mais comum a necessidade de direcionar parte do recurso solicitado, via projeto a um destes orgãos, a divulgação direta de seus resultados.
Com o intuito de ilustrar a importância da divulgação da ciência para a comunidade não-cientifica trago os relatos de dois pesquisadores que estiveram envolvidos no projeto de divulgação do Tapuiasaurus realizado em sua “cidade natal”, Coração de Jesus.
Esta primeira postagem foi feita pela doutoranda Mariana Galera Soler e a segunda postagem será uma contribuição do doutorando Natan Santos Brilhante.
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A divulgação da ciência não é uma novidade da nossa sociedade. Desde o século XVIII há extensos registros de ações de profissionais e amadores da ciência buscando apresentar os seus resultados para plateias, muitas vezes selecionadas. Longe de ser uma ação altruísta, o processo de comunicação dos resultados de uma pesquisa é fundamental para a validação desta pesquisa pelo público que, em última instância, atende funções econômicas (financiamento público e privado) e profissionais (formação de novos profissionais e apoio social à pesquisa).
Já na contemporaneidade, a partir da década de 1970 houve um forte movimento intitulado public undestanding of science, que tem resultado nas ações de divulgação que conhecemos atualmente, como centros de ciência mega-interativos, clubes de ciências, jogos, livros, filmes etc. Neste período a divulgação científica passou a ter um caráter de essencialmente educativo. Fala-se no meio acadêmico em letramento científico ou alfabetização científica, ou seja, informar as pessoas de modo que elas possam tomar suas decisões de acordo com os conceitos científicos vigentes. Em uma sociedade imersa em ciência e tecnologia, como vivemos atualmente, parece um discurso coerente.
No entanto, ao mesmo tempo que falamos em sociedade do conhecimento, hiperconectividade, redes sociais, ao abrirmos os jornais nos deparamos com uma chamada “crise dos direitos humanos”, novos muros estabelecendo fronteiras físicas, além dos “fatos alternativos” e da pseudociência. Conhecemos o corpo humano e o universo em um nível de detalhamento que era impensável no século XIX, mas questionamos a ciência que nos deu acesso a estas informações de uma forma que jamais pensávamos no pós-guerra.

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“Vivemos em uma sociedade extremamente dependente de ciência e tecnologia, em que quase ninguém sabe nada de ciência e tecnologia” – Carl Sagan. Fonte da imagem: http://bigthink.com/words-of-wisdom/carl-sagan-on-science-and-technology

 
Então, põe-se em questão: como falar de ciência para públicos que interessados em likes no Instagram?
Atualmente falar de ciência parece cool, então vou focar em exemplos da Paleontologia. Desenhos de dinossauros estampam camisetas e geralmente grandes bilheterias no cinema. Mas, o que é mesmo um fóssil? Um dinossauro é tão antigo quando meu tataravô? Eu posso ter um fóssil em casa? Quando Pedro Alvares Cabral chegou no Brasil ainda existiam preguiças gigantes?
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“Em minhas veias corre o sangue dos Dinossauros. Dos dinossauros eu te digo!”. Um dos meus memes favoritos sobre dinossauros! Por que divulgação científica também pode ser feita com likes e curtidas. Fonte: http://www.ifunny.com/pictures/veins-flows-blood-dinosaurs/

Estas questões podem parecer bobas para quem é da área, mas não são triviais para a maioria das pessoas. No contexto mais óbvio, o escolar, embora sejam assuntos apontados nos parâmetros curriculares de todos os níveis da Educação Básica brasileira, são temas pouco explorados pelos livros didáticos e na formação dos profissionais da Educação, de forma que a informação sobre paleontologia não está evidente e os conteúdos paleontológicos aparecem dispersos nos currículos escolares, quando aparecem.
Espaços para aprender sobre Paleontologia no Brasil também são escassos. Por exemplo, em todo o estado de São Paulo há menos de uma dezena de museus que possuem fósseis em exposição. Há também alguns centros de ciência, como o Catavento Cultural (em São Paulo/SP), Sabina – Parque Escola do Conhecimento (Santo André/SP) ou o Museu de Ciência e Tecnologia da PUCRS (Rio Grande do Sul / RS), mas dada as dimensões brasileiras ainda são ações esparsas. O Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro/RJ) é uma instituição diferenciada neste aspecto, dado ao espaço oferecido a uma exposição permanente sobre as diferentes faunas paleontológicas brasileiras, como também por ações educativas desenvolvidas pela equipe e alunos do museu.
Estas são ações pontuais e, geralmente, circunscritas a capitais e regiões de grande circulação de pessoas. No entanto, quem usa t-shirt com a estampa do “T-rex”, em geral, tem acesso a um museu ou a internet e pode descobrir mais facilmente que aquele personagem tão bravo do “Jurassic Park” não passa de um frangão desengonçado e carniceiro. Voltando a sociedade hiperconectada, a informação paleontológica nas redes sociais está disponível, e é possível dar likes no Instagram de diversos museus, seguir canais no Youtube de divulgadores científicos. O desafio é descobrir onde está a informação qualificada sobre a Paleontologia. E, neste sentido, as instituições e os termos “estudos comprovam” apresentam um peso de qualificadores.
No entanto, esta é uma questão já bem explorada por outros textos. Gostaria aqui de discutir uma outra situação: como nos comunicar com quem encontra fósseis nos seus quintais? Com quem está a margem destas grandes instituições, cuja ciência se aprende tanto na prática cotidiana quanto na escola. Como falar em tempo geológico, para aqueles que contam os períodos do ano entre as épocas de chuva e seca?
Para esta questão, trago um outro referencial que ainda é pouco explorado na Paleontologia brasileira, que é o conceito do fóssil como um patrimônio. Embora legalmente reconhecido como tal desde a década de 1940, e esta ser uma legislação bastante conhecida pelos paleontólogos, a dimensão cultural dos fósseis ainda é pouco explorada nas ações educativas.
Entender o fóssil como um patrimônio natural, implica em contextualizar estes materiais por meio de uma linguagem clara e objetiva, buscando estabelecer relações entre as populações locais onde os fósseis foram encontrados e as equipes que pesquisam. Para além questões biológicas e geológicas diretamente relacionas aos fósseis, a utilização do referencial da educação patrimonial em Paleontologia fornece subsídios para que esses materiais façam parte da identidade local e sejam entendidos como um patrimônio natural a ser preservado. Para que sejam efetivas estas práticas, ou seja, para que a população local seja agente na conservação de sítios paleontológicos e também possam compartilhar seu conhecimento, até mesmo indicando novos afloramentos, abrindo suas casas e propriedades ou históricos da região, é fundamental que as ações atendam as demandas específicas dos grupos locais.
Não há apostilas ou fórmulas. Há estudos de caso que demonstram que a parceria entre populações locais e paleontólogos podem ser frutíferas para ambos. Um exemplo ocorreu no ano de 2012, no município de Coração de Jesus (MG). Nesta localidade foram encontrados fósseis de dinossauros terópodes e saurópodes da Bacia São-franciscana que datam do Período Cretáceo Inferior, com idades em torno de 120 milhões de anos. Esta região tem sido objeto de estudo da equipe de paleontologia do Museu de Zoologia da USP (SP), desde 2005.
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Em destaque, município de Coração de Jesus, no norte do estado de Minas Gerais. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cora%C3%A7%C3%A3o_de_Jesus_(Minas_Gerais)

De forma que, passados sete anos em que a população local convivia com a chegada de uma pick-up branca com emblema de uma universidade de outro estado, pessoas estranhas saiam cedo, iam para a área rural do município e voltavam sujos de terra e com o carro cheios de rochas cobertas por gesso, muitas histórias foram criadas e situações com a equipe. Dizia-se de tudo um pouco: havia um tal dinossauro na cidade, que foi vendido para os EUA há centenas de milhares de reais, os donos das terras onde os fósseis foram encontrados ganharam dinheiro e as equipes de paleontólogos eram apelidados de “osseiros”.  Depois de tanto tempo sem entender bem o que estava acontecendo, as relações entre a população e a equipe começaram a se tornar mais difíceis, ao ponto do prefeito da época ligar para o Museu de Zoologia e pedir explicações.
Bem, tais explicações vieram na forma de um projeto educativo e uma exposição itinerante. Como não era possível levar e fazer uma montagem do fóssil original, foi montada a exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”, ao redor da réplica completa do dinossauro Tapuiassaurus macedoi. As ações educativas seguiram quatro linhas: (i) Curso de Formação Continuada de Professores, em que os conhecimentos gerados a partir dos estudos na região foram compartilhados com professores; também foram abordadas ferramentas da Educação Patrimonial, para que os professores e alunos pudessem explorar a exposição e o patrimônio fossilífero regional. Participaram 118 professores e funcionários das escolas públicas estaduais e municipais, urbanas e rurais. (ii) Oficinas nas escolas, que discutiram o trabalho do paleontólogo, por meio de desenhos, dobraduras, interação com réplicas e fósseis e roda de conversa entre alunos e profissionais, intitulada “Converse com um Paleontólogo”. Em maio de 2012, foram realizadas oficinas para 10 escolas públicas (urbanas e rurais), envolvendo mais de 600 alunos. (iii) Formação de Monitores, como parte da parceria com as escolas, em que foram escolhidos 20 alunos do Ensino Médio os quais atuaram como mediadores na exposição entre os meses de maio e julho de 2012. Estes alunos realizaram um curso de formação (duração de 24 horas), em que se discutiram conceitos relacionados à Paleontologia, museus e patrimônio geopaleontológico. E, (iv) Curso de Extensão Universitária, abordando aspectos gerais da Paleontologia e ratificando a importância científica das descobertas regionais. Participaram do curso 16 estudantes, em agosto de 2012.
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Exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”, em sua primeira montagem itinerante, em Coração de Jesus (MG), maio de 2012. Na foto, um grupo de estudantes da cidade é atendido na exposição por dois monitores (também estudantes da cidade que participaram do projeto educativo). Foto: Mariana Galera Soler

 
Durante todo este projeto, que durou cerca de 6 meses, os “osseiros” acabaram sendo pessoas conhecidas na cidade. Quando saíamos nas ruas (e aqui me incluo, pois fui coordenadora deste projeto e também uma das “osseiras” que estava na coleta dos fósseis) éramos convidados para entrar nas casas, conversar com as pessoas sobre o tal dinossauro. De elementos estranhos, passamos a fazer parte da história daquele local, materializado na forma do “tal dinossauro” entrar nas propostas de letra para um novo hino da cidade ou da “explicação” de uma lenda local***.
De porteiras fechadas nas regiões dos afloramentos, fomos recebidos com café e biscoito de toalha e conhecemos uma Coração de Jesus absolutamente nova para nós. Os resultados não foram “apenas” a divulgação dos resultados da pesquisa paleontológica, as pessoas de Coração de Jesus sabiam nossos nomes e se interessavam pelo nosso trabalho, já não éramos mais os “osseiros”. E de muitas histórias que podem ser contadas, uma frase de um professor no último dia do curso registrou fundamentalmente esta parceria: “Obrigado por ter nos ajudado a descobrir que a nossa cidade é mais importante do que parece”.
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Nas visitas as escolas realizávamos diferentes oficinas, entre elas a construção de dinossauros de origamis. Na imagem, um dos alunos das escolas rurais de Coração de Jesus (MG) com seus dinossauros. Foto: Mariana Galera Soler

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Exposição de trabalhos dos alunos em escola rural do município de Coração de Jesus. A atividade de “criar fósseis” com a impressão de folhas em argila foi uma das oficinas propostas para os professores durante o curso. Ao fundo, algumas reconstituições dos animais extintos encontrados na região, também feitas em argila por alunos. Foto: Mariana Galera Soler

Este é apenas um caso, mas existem outros. Embora escassos, projetos focados em populações locais e tratando os fósseis como um patrimônio e em parceria com as pessoas são um caminho possível para além da divulgação da ciência mais óbvia, cheia de fórmulas prontas e high tech de comunicar uma ciência neutra e fechada em si, tratando os fósseis como todos sendo um dinossauro sem penas que corre como um guepardo. Projetos locais e contextualizados são um caminho para a preservação do património fossilífero in situ e para que a ciência não seja apenas um conjunto de resultados empilhados, assépticos e descontextualizados, e produzida por homens brancos, de meia idade e jaleco branco (eventualmente, com a língua de fora).
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Não basta ser monitor tem que participar! Alunos do Ensino Médio foram indicados por seus professores para atuar como monitores na exposição. Para tanto participaram de um curso sobre Paleontologia e também de diversas atividades práticas, entre elas ajudar na montagem da própria exposição. Foto: Marcia Fernades Lourenço

 
*** Coração de Jesus teve nos anos 1960 – 70 certa notoriedade na região e grandes investimentos públicos que geraram, por exemplo, a construção de um espaço esportivo e complexo de piscinas bem estruturados. Contudo, esse projeto foi abandonado e o município voltou a ser apenas mais um dos pequenos lugares na borda do Vale do Jequitinhonha. Para explicar esta “perda de status”, os mais velhos costumavam dizer que no passado alguém havia enterrado a cabeça de um burro na cidade e por isso ela não “ia para frente”. Com a descoberta do crânio (“cabeça”) de um dinossauro (bicho antigo que viveu há muito tempo), diversas pessoas relacionaram o fóssil a “cabeça do burro” e viram nesta descoberta a chance da cidade voltar a progredir.


Mariana Galera Soler

Formação: Bió18109741_1315265438526683_809310084_nloga pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP/RP) e Mestre em Museologia pela USP/SP. Estudante de doutorado em História e Filosofia da Ciência, com especialização em Museologia pela Universidade de Évora / Portugal.
Área de estudo: comunicação e divulgação científica; museus de história natural; exposições e coleções científicas.
 Mas onde entra Paleontologia em tudo isso? Desde a graduação trabalhei o Laboratório de Paleontologia da USP Ribeirão Preto. Depois fui ao Museu de Zoologia da USP / São Paulo, onde trabalhei na curadoria da coleção paleontológica, além de participar de outras atividades do Laboratório de Paleontologia.
Bem tudo isso já faz algum tempo! Também já fui professora de biologia e ciências e, nos últimos seis anos, atuei na coordenação do setor educativo do Museu Biológico do Instituto Butantan. O que não quer dizer que eu deixei a Paleontologia de lado. Continuo trabalhando no gerenciamento da base de dados paleontológicos brasileira LUND (www.lund.fc.unesp.br/lund) e atuei em alguns trabalhos de divulgação e exposições paleontológicas, em que uma das histórias conto aqui nesse texto.
 

Ilustrando Ciência: a história da Ilustração Científica

Artigo de Pedro H. Morais

Não é de hoje que os desenhos e ilustrações estão no cotidiano do Homo sapiens. Desde o início da história biológica dessa espécie, a ilustração tem sido usada para contar uma história, retratar um fato, expressar uma ideia, mostrar algo que, de outra forma, não seria tão simples de se transmitir. A necessidade (ou admiração) fez com que nossos ancestrais utilizassem da ilustração para demonstrar o que viam no seu cotidiano, usando como tela as paredes de cavernas e como tinta o que dispunham na natureza. Nesse momento, a tentativa de se retratar com detalhes a fauna local, ou fatos do cotidiano, ou até mesmo contar uma história, fez (por assim dizer) nascer a ilustração, que no futuro teria diversas vertentes, sendo uma delas a ilustração científica. As primeiras ilustrações datam de 30.000 anos a.C. (Paleolítico Superior), e ficam nas Cavernas de Chauvet, na França. Essas, chamadas de pinturas rupestres, foram estrelas de um documentário (A Caverna dos Sonhos Esquecidos de 2010 – disponível no Netflix!). Não só restrito a França, mas pelo mundo se encontram outras dessas ilustrações, como na Gruta de Rodésia, na região central da África, na caverna de El Castillo, no norte da Espanha, no Brasil, como as encontradas na Serra da Capivara em no parque nacional que leva o mesmo nome, no Piauí (entre outros pelo mundo a fora).

Caverna de Chauvet, na França
Caverna de Chauvet, na França

Pinturas rupestres na Serra da Capivara, Piauí, Brasil
Pinturas rupestres na Serra da Capivara, Piauí, Brasil

Apesar desse contexto histórico, podemos chamar a ilustração rupestre de “ilustração científica”? Bom, segundo Araujo, 2009, “A Ilustração Científica é um trabalho que consiste na representação fiel de um material biológico determinado, respeitando-se todas as medidas, proporções e contraste de cores, mesmo que em preto e branco.” De certa forma, se considerarmos que as pinturas rupestres visam demonstrar, com certa fidelidade (para a época) a fauna e seu comportamento, consideramos estas como “as primeiras ilustrações científicas”. A necessidade de se conhecer a fauna e a flora era uma questão de sobrevivência e, transmitir esse conhecimento, era crucial para a sobrevivência da população. Passando da história muito antiga, para uma época um pouco mais nova, chegamos as ilustrações medievais, que tinha um cunho de admiração e religioso (talvez filosófico) pela natureza, tratando-a em muitas culturas como divindades. As primeiras ilustrações com cunho realmente científico filosófico viriam a surgir a partir de pensadores que ilustravam animais baseados em descrições feita por filósofos e não no contato com os exemplares, não sendo tão realista, uma vez que tem um toque da imaginação do autor. Por volta do século 2 ou 3 o manuscrito Physiologus que, juntamente com outros manuscritos, em principal Etymologiae, deram origem aos primeiros Bestiários, livros que carregavam não somente textos religiosos, mas também ilustrações e descrições das faunas, carregadas de conceitos fantasiosos e moral religiosas (por exemplo: o mau agouro das corujas, relacionadas a bruxaria e magia negra).

Página do Physiologus, baseado em descrições anteriores ao ilustrador.
Página do Physiologus, baseado em descrições anteriores ao ilustrador.

Passando dessa época, chegamos ao Renascimento (século XV), onde a natureza é retratada com fidelidade pelos cientistas da época, uma vez que a Razão se torna alvo destes, e a arte toma seu lugar na sociedade. Nessa época temos o famoso Leonardo da Vinci e suas obras de cunho anatômico (muitas delas disponíveis na internet). Avançando mais um pouco na história (século XVII) chegamos a invenção do microscópio composto, por Robert Hooke, que revolucionou a ciência, podendo descrever e estudar materiais inacessíveis aos olhos nus. Este teve sua contribuição as ilustrações científicas. Avançando mais na História chegamos aos avanços biológicos proporcionados por Charles Darwin e a teoria da Seleção Natural. Com suas viagens rendendo alguns manuscritos e, claro, ilustrações científicas, algumas delas bem conhecidas aos leitores de “A Origem das Espécies”.

Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci descrevendo as proporções do corpo humano.
Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci descrevendo as proporções do corpo humano.

Pulga desenhada a partir das observações de Robert Hooke, no primeiro microscópio também criado por ele.
Pulga desenhada a partir das observações de Robert Hooke, no primeiro microscópio também criado por ele.

Tentilhões de Galápagos ilustrados por Darwin.
Tentilhões de Galápagos ilustrados por Darwin.

Já em tempos mais próximos, temos grandes ilustradoras, como Maria Sibylla Merian (1647 – 1717), naturalista e ilustradora alemã que ilustrava principalmente insetos e plantas e Margaret Mee (1909 – 1988), ilustradora botânica que tinha foco na flora e era apaixonada pelo Brasil, em principal a Amazônia. Em tempos atuais, temos ilustradores como Pedro Salgado, ilustrador português com enfoque em peixes; os brasileiros Rogerio Lupo, biólogo e ilustrador; Leandro Lopes, professor e ilustrador; Diana Carneiro, artista plástica e ilustradora botânica (aluna da Margaret Mee); Bem como muitos outros (Ines Castineira, Vanessa Seiko, Paulo Presti, Fatima Zagonel, Iriam Starling, Marcos Silva), que também merecem estar aqui citados nesse texto.

Pitcairnia flammea, ilustração de Margaret Mee.
Pitcairnia flammea, ilustração de Margaret Mee.

Ilustração de Leandro Lopes.
Ilustração de Leandro Lopes.

A ilustração é coisa do Passado?

Com o surgimento de novas técnicas de se registrar imagens, é fácil imaginar que a ilustração científica seria rapidamente descartada. Porém, isso não aconteceu. A fotografia só se tornou possível em 1827. Nessa época, cada foto levava até 8 horas para ser concluída, o que não era muito eficiente, uma vez que um animal, por exemplo, não ficaria parado para isso tanto tempo. Mesmo com a fotografia, o uso de ilustrações nunca foi deixado de lado pela ciência. As ilustrações em artigos científicos permitem um maior detalhamento, que, em muitas das vezes, somente a fotografia não seria capaz. Por mais que nos tempos atuais a fotografia e qualidade de imagem vem sendo cada vez mais avançada, a necessidade de determinados planos e detalhes só são alcançados por meio de uma ilustração complementar.

Não somente a fotografia, como novas técnicas de ilustração foram surgindo ao longo da história, entre elas a aquarela, o nanquim, o Scratch Board, o Estereomicroscópio com câmara clara (todas essas e mais informações no link) e, claro, na era do computador, não poderia faltar a ilustração digital. Para cada técnica tem-se um uso e uma finalidade dependendo do que se deseja ilustrar. Para isso é muito importante que a ilustração e o artigo sejam complementares.

Ilustração em aquarela de Dulce Nascimento.
Ilustração em aquarela de Dulce Nascimento.

Paleoarte é a mesma coisa que ilustração científica?

Certamente você deve ter se perguntado se esse texto não falaria sobre “Paleoarte”… mas é claro que sim!

Exemplo de paleoarte. Arte de Andrey Atuchin.
Exemplo de paleoarte. Arte de Andrey Atuchin.

Uma pergunta bastante polêmica é se “Paleoarte” poderia ser considerada “ilustração científica”. Bem, teoricamente não. A “paleoarte” tem o intuito de reconstruir ambientes, faunas e floras baseados no registro fossilífero, juntamente com o a comparação/ estudo de ambientes, faunas e floras atuais. A partir disso, podemos concluir que, pelo menos uma parte do trabalho do paleoartista depende de deduções interpretativas. “Ilustração científica”, por sua vez, em sua definição formal, visa a reprodução exata de um modelo em questão, sendo respeitadas as cores, escalas, texturas e o volume, não se acrescendo nenhum fator que não esteja representado no modelo. Considerando essa definição, os trabalhos de paleoarte sensu lato não poderiam ser consideradas ilustrações científicas.

Ainda assim, como a ilustração científica, a “paleoarte” tem o rigor científico e visa passar algo fidedigno para os interessados. E agora?! Bom, certamente existe um ponto de intersecção entre as duas. Dentro das várias formas de “paleoarte”, a que poderia ser seguramente classificada como ilustração científica seriam as ilustrações fidedignas dos fósseis em si. As reconstituições artísticas de organismos e ambientes pré-históricos, por mais bem-fundamentadas e embasadas que sejam, não poderiam ser classificadas como ilustrações científicas, por assim dizer.

Você pode ser um ilustrador

A arte ou ciência (ou os dois) da ilustração científica é uma profissão bem reconhecida nos Estados Unidos, bem como na Europa. Porém, infelizmente, esta realidade ainda não alcançou o Brasil. No nosso país, a profissão ainda não é regularizada e, diferente dos lugares citados anteriormente, o Brasil ainda não possui escolas de graduação e/ou pós-graduação bem-estabelecidas focadas exclusivamente nessa área de formação. Isso, todavia, não impede as pessoas de se tornarem ilustradores científicos. Apesar dos caminhos tortuosos, diversos pesquisadores e profissionais brasileiros atuam como ilustradores científicos e têm sua competência reconhecida internacionalmente. A grande maioria, todavia, ainda exerce a atividade como uma profissão secundária. Muitos cientistas (incluindo a criadora desse Blog, Aline Ghilardi) fazem as ilustrações de seus próprios artigos e trabalhos científicos, por exemplo.

A ausência da regulamentação implica em diversos problemas para o ilustrador. O mais sério deles fica evidente na hora de valorar o seu trabalho. Sem um piso ou uma tabela de referência, a profissão do ilustrador acaba por ser desvalorizada e sua atividade desprestigiada.

À parte disso, é muito importante dizer que a ilustração é algo que depende de esforço, estudo, paciência, treino e perseverança. Na humilde opinião desse que vos escreve, existe uma maior relação com esforço próprio do que “dom” em si. Então pegue seus lápis, cadernos e folhas e comecem a rabiscar.

Bibliografia citada:
ARAUJO, Andrea Mendez. Aplicações da ilustração científica em ciências biológicas. 2009. 48 f. Trabalho de conclusão de curso (bacharelado e licenciatura – Ciências biológicas) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências de Rio Claro, 2009. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/118088>.
P10500275_4567619606096_6721616458316674469_nedro é biólogo e atualmente desenvolve o seu mestrado em Geociências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pedro têm experiência em Zoologia de Vertebrados, com especialidade em mamíferos, e atualmente estuda biologia e evolução de cinodontes mammaliformes.