Quem matou a ciência brasileira?

Esse post é parte da Blogagem Coletiva de comemoração aos 10 anos do ScienceBlogs Brasil. O tema dessa semana é Ciência e Política. Hoje quem escreve é Claudio Angelo, dispensa maiores apresentações uma vez que ele escreve no Curupira, blog do Science Blogs Brasil.

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Rodrigo trabalhou de garçom e faz bicos depois do pós-doc na Inglaterra. Jefferson perdeu dez alunos e quatro pós-doutorandos porque não tinha como pagá-los. Sidarta racha com outros professores a conta de internet de seu laboratório numa universidade federal. Sergio viu alunos irem embora do Brasil porque não consegue manter a colônia de camundongos transgênicos da qual dependiam as teses deles. José Antonio não tem para comprar reagentes. Ronald precisou escolher entre demitir pessoas e cancelar contratos de manutenção de equipamentos sofisticados – optou pela segunda.

Essas são histórias reais, de cientistas brasileiros reais. Algumas delas me foram narradas pelos próprios. Qualquer pesquisador ou aluno de pós do Brasil hoje tem um conto de terror para relatar, como testemunha ou como vítima. Quem não chegou ontem de Júpiter sabe que a ciência brasileira enfrenta o que talvez seja sua maior crise, que não há solução à vista e que os efeitos do tombo no desenvolvimento científico, tecnológico e econômico do país serão sentidos por muitos anos no futuro.

Não é o caso de entrar nos detalhes numéricos aqui, mas o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia em seu auge, em 2010, era de cerca de R$ 9 bilhões. Em 2017 ele caiu para metade disso – uma das propostas orçamentárias feitas naquele ano correspondia a um terço desse valor. Em 2018, num requinte de crueldade, 10% dos R$ 4 bilhões orçados ainda foram congelados. Considere, ainda, que essa farinha pouca ainda precisa ser dividida com o pirão das Comunicações – e que a PEC do Teto inviabiliza recuperação orçamentária significativa pelos próximos 19 anos.

Como tudo no Brasil, esse orçamento vai sendo emendado por meio de cambalachos sucessivos: descongela um tico aqui, faz um decreto de suplementação ali. É uma espécie de waterboarding financeiro: antes de a vítima morrer você tira a cabeça dela da água, para ela respirar um pouco e agradecer por estar viva antes de mergulhar de novo. Esses remendos têm mantido as universidades e institutos de pesquisa (Uerjs da vida fora) mais ou menos funcionais, ao mesmo tempo em que dão a nossos distintos doutores e doutoras a ilusão de que ainda não é hora de fechar estradas, se imolar em praça pública ou invadir Brasília e quebrar a porra toda. Má notícia, amigues: essa hora já passou faz tempo.

Como o nosso empresariado – que cresceu mamando no Estado e cujos líderes hoje aplaudem Jair Bolsonaro e insinuam que canudo plástico em estômago de baleia é armação de ambientalista – é notoriamente avesso a investir em pesquisa e desenvolvimento, a ciência está à mercê dos recursos federais e dos Estados que ainda têm agências de fomento fortes (N=1). Quando a União sai de cena, a ciência desmonta.

Excluindo os relatos anedóticos sobre fuga de cérebros e uns dados preliminares quase dois anos atrás do Rogério Meneghini, da Scielo, sobre queda na produção científica, ainda não vi nenhuma avaliação sistemática do prejuízo estrutural da crise sobre a pesquisa no Brasil. Mas essa conta virá, por questão de simples aritmética. O sistema cresceu muito durante a bonança da era Lula. Portanto, o tombo, causado principalmente (mas não só) pela Grande Recessão Brasileira (ela merece a grafia em caixa alta), é maior do que as pindaíbas anteriores. No que isso dá todo mundo sabe: menos pesquisadores igual a menos papers igual a menos questões relevantes para o país sendo abordadas igual a menos desenvolvimento, menos inovação, menos dinheiro, menos bem-estar social, num círculo difícil de quebrar. O Brasil não conseguirá assegurar uma recuperação econômica duradoura sem um sistema de C&T restaurado.

Mas que fazer, além de assaltar uns bancos? Esta é a pergunta de 9 bilhões de reais. Talvez um bom começo seja escapar da armadilha do punitivismo.

Nossa polarização política atual não resiste a procurar culpados. Enquanto esquerda e direita brigam para saber quem bateu no iceberg, o convés vai alagando. Muita gente de bem insiste em que a culpa é do vampirão, o “golpista” que aprovou a PEC do teto e extinguiu o MCTI. Esse povo se esquece de que a crise foi gestada por Dilma, A Breve. Mas talvez, cavando bem, suas raízes sejam encontradas em seu apogeu, na era Lula.

Ou, o que é menos gostoso de ouvir, talvez quem matou a ciência brasileira de fato tenhamos sido eu e você. Por omissão. Ao eleger sucessivos governos sem uma plataforma consistente para a ciência. Ao permitir que o MCTI tenha sempre entrado na barganha política como um ministério de consolação para os partidos médios da base. Ao deixar de ir para a rua contra o verdadeiro golpe – o mais insidioso, pois mina nossa perspectiva de futuro, e o mais difícil de comunicar à população, porque, afinal, quem se importa com meia-dúzia de laboratórios – porque simpatizamos com tal partido ou odiamos o outro.

Na real, nada disso importa mais. Outubro vem aí, e o que fazer com o cadáver da ciência brasileira (entre os outros que se acumulam no morgue de ideias nacional) é essencialmente um não-assunto. Eu adoraria dizer os candidatos estão em silêncio porque estão dedicados à tarefa mais urgente de impedir uma escalada fascista no Brasil. Mas não: o sistema político e a imprensa estão presos ao loop de discutir quem vai levar o apoio do Centrão.

As urnas são o locus primário de resistência e retomada, mas há dois problemas: um, o sistema representativo está estragado; dois, o principal foco de crise, o Congresso, tende a ter uma renovação muito baixa devido à engenhosidade maligna da minirreforma política. Candidaturas de cientistas são uma excelente novidade e precisam ser fomentadas de toda forma, mas, mesmo na eventualidade de triunfarem, formarão mais uma bancada marginal numa Câmara convertida em balcão de negócios. Óbvio que isso é melhor que nada.

De prático e no curto prazo, restam dois caminhos. Um é a desobediência civil em massa, que me foi aventada em 2016 por um cientista sênior (o que se viu em vez disso foi meia-dúzia de protestos comportadinhos dentro dos campi). Deu certo com os caminhoneiros, mas, francamente, o sex appeal deles é muito maior. O outro é fazer o que Simon Bolívar recomendou no fim da vida que se fizesse na América: emigrar. Parece derrotismo, e é. Mas talvez a diáspora brasileira acumule massa crítica no exterior a ponto de facilitar o acesso de brasileiros a grupos de pesquisa globais em algum momento no futuro.

Não chega a ser um consolo, mas é o que temos para hoje.

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Claudio Angelo, é autor de A Espiral da Morte – como a humanidade alterou a máquina do clima, vencedor do Prêmio Jabuti 2017 na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática e tem o blog Curupira no ScienceBlogs Brasil.