Choro e ranger de dentes: a formação do pesquisador brasileiro precisa mesmo disso?
Esse post é parte da Blogagem Coletiva de comemoração aos 10 anos do ScienceBlogs Brasil. Essa semana é Tema Livre. Hoje quem escreve é Mariella De Oliveira-Costa é doutora em saúde coletiva.
Ansiedade, angústia, desânimo, depressão e dificuldades de concentração são alguns dos problemas de saúde física e mental que acometem parte dos estudantes de pós-graduação, assim como quem está na época de realizar sua monografia.
Todos vibram muito com a conquista daquela sonhada vaga na universidade mas nem sempre (ou quase nunca) a vida acadêmica se mostra tranquila e interessante. A família que apoiou a escolha daquele aluno, o encontra por vezes isolado de tudo e de todos, sem tempo para atividades coletivas e até mal humorado.
Boa parte dos estudantes se frustra com as dificuldades inerentes dessa etapa da vida acadêmica, com o orientador, com o programa de pós, com os colegas, com os conteúdos de pesquisa, enfim, com o ambiente dentro de uma universidade ou instituição de pesquisa.
Mas esta etapa da vida não precisa ser assim.
Existem inúmeras dificuldades, mas também muitas estratégias para que esta fase de formação de um pesquisador, da iniciação científica, passando pelo TCC, mestrado e doutorado sejam momento de crescimento e aprendizado.
Nas redes sociais, tem sido comum observar um discurso de tristeza, abatimento e desilusão para com a pós-graduação e seus desafios e dificuldades.
Me incomoda bastante o discurso de que uma pós-graduação é apenas para alguns poucos iluminados e que a maioria deve sim viver num mar de choro e ranger de dentes. A vida acadêmica, bem administrada, pode ser leve e um momento bem feliz (e é importante compartilhar essa ideia)!
Sou recém-doutora e ao longo de minha formação sempre busquei espaços na agenda para atividades completamente fora do meu tema de pesquisa, e me cerquei de pessoas que tinham outras carreiras, falassem de outras coisas e ventilassem minha conversas e minha mente.
Pensando nisso, comecei um canal no youtube para falar sobre a vida acadêmica de uma forma mais realista e bem humorada.
Meu intuito é apresentar que existe vida além da pós-graduação, com temas do cotidiano acadêmico de maneira leve e breve, para auxiliar os pós-graduandos (e os candidatos a uma pós) a encararem esta etapa da vida tal como ela realmente é: apenas uma parte, uma etapa, um degrau na sua caminhada (e não a caminhada toda).
Existe vida além da pós-graduação e nenhuma vida precisa ser resumida a uma rotina casa-universidade. Um problema no laboratório, um resultado inesperado, uma pesquisa com uma série de limitações não pode definir a personalidade de ninguém, pois não somos máquinas e é preciso saber lidar com as dificuldades sem se tornar refém delas.
Afinal, se formarmos pesquisadores desanimados, frustrados na sua formação básica e com a saúde mental comprometida, qual será o futuro da ciência brasileira?
Mariella De Oliveira-Costa é doutora em saúde coletiva, jornalista, escritora e tem como um de seus hobbies seu canal no Youtube. Atualmente trabalha na Fiocruz Brasília.
Do Papai Noel à Metástase
Esse post é parte da Blogagem Coletiva de comemoração aos 10 anos do ScienceBlogs Brasil. Essa semana é Tema Livre. Hoje quem escreve é Bruno Ricardo Barreto Pires, Biólogo e Pós-doutorando do Instituto Nacional de Câncer.
Eu nasci e fui criado no interior de Goiás, em uma cidade de 25.000 habitantes chamada Posse. Tive uma infância sem shoppings ou cinemas, mas com muito contato com a natureza e com os meus 20 primos. No natal de 1994, nos reunimos na casa dos meus avós maternos para a ceia. Na época, eu tinha 5 anos e carregava uma enorme vontade de falar tudo o que pensava. O clímax daquela noite foi a aparição do Papai Noel durante o jantar. Eu estava empolgadíssimo com aquela presença, assim como os meus primos que tinham mais ou menos a mesma idade, até que percebi que a minha avó não estava mais no recinto. Comecei a observar bem aquele Papai Noel, sua barba branca, seu cabelo branco, gorro e roupas vermelhas… então, gritei “O Papai Noel é a vovó!”
Todos os adultos se espantaram. Meus pais desconversaram e depois de alguns minutos, o bom velhinho partiu. Eu insistia que era, mas parecia que eu havia falado um palavrão, pois todos me olhavam com um certo desprezo. No dia seguinte, a primeira coisa que fiz foi questionar a minha mãe. Ela confirmou, “ele não é real”. Apesar de ela ter me explicado todo o motivo pelo qual ele foi criado, eu senti aquilo como uma facada nas minhas vísceras. Embora aquela verdade tenha sido difícil de administrar no auge dos meus 5 anos, eu quis mais: “então, o coelhinho da Páscoa também não existe?” Também não, respondeu a minha mãe com um olhar de velório. Naquele dia, eu dormi muito mal, mas decidi contar a verdade para as outras pessoas (que tinham a mesma idade). No final de semana subsequente, estávamos todos os primos reunidos na casa dos meus avós e aproveitei a ocasião para libertá-los daquela mentira. No entanto, para a minha maior decepção, eles disseram que era eu quem estava mentido e um deles completou: “meus pais falaram que existe e eles não mentem”. Eu fiquei arrasado. Percebi que meus pares preferiam viver em uma ilusão do que aceitar a “verdade nua e crua”.
Aquela história envolvendo o papai noel me deu uma enorme coragem para questionar qualquer coisa. Além disso, ela quebrou o paradigma de que eu deveria acreditar em tudo que “os mais experientes” afirmam. Só que eu me empolguei. Aos 6 anos, eu estava desenvolvendo uma noção sobre parentesco/hereditariedade, e cheguei a conclusão de que os meus pais não pareciam fisionomicamente comigo. Sem saber o que a genética mendeliana conta sobre os alelos raros, acusei os meus pais de terem me adotado. No começo, os meus pais riram, mas eu insisti tanto com o assunto que no mesmo dia, a minha mãe me levou ao hospital em que nasci para que todos dessem o depoimento que testemunhava a favor dela. “Eles estão todos comprados”, repeti a frase que ouvia ocasionalmente no Programa Livre – um clássico da década de 90.
Nesse dia, eu tinha passado da conta. Mesmo para uma criança de 6 anos, era perceptível a tristeza de uma mãe que se sentia rejeitada pelo próprio filho. “Você é sangue do meu sangue, meu filho. Por que está fazendo isso comigo?” Esse diálogo nunca mas saiu da minha cabeça…
Alguns anos depois, a minha avó materna falece com câncer de mama. Lembro de uma conversa entre os meus pais que contava, segundo o oncologista do Hospital de Base, que o câncer havia se espalhado e que não havia tratamento para isso. No dia após o velório, eu contei no ouvido da minha mãe, que eu iria estudar porque “aquilo” matou a minha avó. Naquele momento, eu descobri como utilizar a minha vontade de investigar/pesquisar sem machucar as pessoas. Muito pelo contrário, ajudando-as. Então, naquele dia eu aceitei a missão de ser um cientista.
Desde então, eu persigo a metástase do câncer de mama como aquele que busca vingança, mas ao mesmo tempo, como aquele que quer dar esperança a todas as famílias que sofrem com esta doença.
Bruno Ricardo Barreto Pires, Biólogo e Pós-doutorando do Instituto Nacional de Câncer. Escreve no blog “Novais da Silveira” e é entusiasta da divulgação científica nas redes sociais.
Estudos Literários: existimos, a que será que se destina?
Esse post é parte da Blogagem Coletiva de comemoração aos 10 anos do ScienceBlogs Brasil. Essa semana é Tema Livre. Hoje quem escreve é Claudia Alves, escreve no Blogs Marca Páginas dos Blogs de Ciência da Unicamp.
Sempre imagino começar uma aula de Literatura perguntando aos alunos o que se estuda nas outras aulas. Matemática? Números, equações, formas geométricas. Biologia? Reino animal, reino vegetal, corpo humano. História? Grécia, Império Romano, Independência do Brasil, Segunda Guerra Mundial. E então perguntar para a classe: e Literatura? Esperaria respostas como livros, escritores, histórias. Mas acho que poderíamos complementar e dizer ainda tudo o mais que se aprende nas outras aulas, afinal números, corpos e guerras, por exemplo, são temas bastante recorrentes também na Literatura.
Esse exercício de imaginação sempre me fez acreditar que ali naquele contexto escolar seria possível mostrar aos alunos que, em uma aula de Literatura, podemos passar, em maior ou menor medida, pelos conteúdos de todas as outras disciplinas. Nesse grande guarda-chuva, não haveria limites para imaginar quais temas existem e podem ser trabalhados na escola. Tudo que é humano é passível de ser literário.
De alguma maneira, quando explico o que são os Estudos Literários, tento percorrer esse mesmo trajeto. Se a Literatura nos permite criar em cima de tudo o que é humano, os Estudos Literários se abrem como uma área capaz de propor os mais variados tipos de exercícios de reflexão a partir da Literatura e de seus desdobramentos.
Existimos como uma área científica, então, nessa perspectiva: produzindo os mais diferentes conhecimentos possíveis de serem pensados a partir de obras literárias e de tudo o que pode existir ao seu redor. Na prática, isso significa pensar e questionar desde o contexto histórico em que um livro foi escrito até a biografia de quem o escreveu, passando pelas mais diversas características de forma e estilo do próprio texto, ou ainda pelas teorias literárias que se constituem a partir de um conjunto de textos.
Pensemos em um grande clássico da literatura brasileira como Dom Casmurro, por exemplo, escrito no século XIX por Machado de Assis. Esse livro é certamente uma das obras mais analisadas até hoje pelos Estudos Literários no Brasil e também no exterior. E como pode tanta gente ainda ter tanta coisa a dizer sobre um texto de 200 e poucas páginas? A começar por sua construção literária, Dom Casmurro é um dos enredos mais instigantes da história da Literatura. Em seu universo, é possível estudar desde as escolhas linguísticas operadas por Machado até as maneiras como os sentimentos humanos e as subjetividades das personagens são construídas literariamente. Por outro lado, é também uma representação muito interessante de um certo Rio de Janeiro dos anos de 1800 e em certa medida do próprio contexto brasileiro da época. Além disso, há a oportunidade de investigar a biografia de Machado de Assis e suas trajetórias de leitura e reflexão, que ganharam novos contornos em suas próprias criações. Finalmente, as infinitas possibilidades que surgem das relações com outros livros, outros escritores, outros tempos e também com outras línguas, graças à área de traduções literárias. Sem esquecer, é claro, dos diálogos com outras Artes, como Cinema e Teatro, algo que também tem ganhado espaço nos Estudos Literários.
Com tais ideias em mente, muito se pode discutir ainda sobre os Estudos Literários em si serem ou não considerados um ramo das Ciências Humanas e, consequentemente, fazerem parte dos interesses da Divulgação Científica. Ora, mais do que responder a essa pergunta de forma pragmática, parece ser mais interessante instigar a reflexão crítica: por que Literatura seria ou não uma Ciência? Que tipo de produção de conhecimento está atrelada a essa questão ou por que essa dúvida é feita de maneira mais atenuada, com menos desconfiança, quando se trata de pesquisas das áreas de exatas e biológicas? Ou ainda, a quem interessa um certo tipo de sociedade em que fazer Ciência e produzir conhecimento é algo diretamente relacionado à utilidade prática que tais pesquisas terão, o que excluiria a princípio o tipo de pesquisa feita nos Estudos Literários?
Deixo essas dúvidas sem respostas porque nem eu mesma as tenho, mas fato é que nós, pesquisadoras e pesquisadores de Estudos Literários, existimos. Somos uma área de pesquisa presente nas universidades, nas bibliotecas, nos institutos de pesquisa, ou seja, em instâncias institucionais de renome, onde são produzidos conhecimentos. Estamos compartilhando esses espaços com muita resistência, já que socialmente os conhecimentos produzidos pelas Ciências Humanas ainda são muito desvalorizados; principalmente quando se espera das Ciências uma aplicabilidade instantânea, o que não condiz com o que é feito nos Estudos Literários. Nossa tentativa, portanto, é não sermos sufocados pela grande pergunta “mas pra que serve o que você está fazendo?”.
Porém, quando confrontada com ela, gosto de responder e, mais do que isso, de acreditar que estamos pensando e repensando as formas que o ser humano encontrou para estar no mundo, sobretudo por meio de suas mais diversas manifestações literárias e linguísticas – e isso não é pouca coisa. Para mim, parece que é um bom destino para uma área de conhecimento e, em certa medida, para todas as ciências existentes. E você, concorda?
Claudia Alves, escreve no Marca Páginas, dos Blogs de Ciência da Unicamp.
A “legalização” da ciência
Esse post é parte da Blogagem Coletiva de comemoração aos 10 anos do ScienceBlogs Brasil. Essa semana é Tema Livre. Hoje quem escreve é Natália Coelho Ferreira, bióloga e co-fundadora da iniciativa de ONG chamada Draw Earth.
Antes de começarmos a dissertar sobre o tema proposto, vamos refletir? Afinal, o que é ciência? Quando pesquisamos no site google, aparece uma lista de significados e aplicações que podem ser resumidos em uma palavra: Conhecimento. Desta forma, podemos dizer que a ciência é o conhecimento, saber, estar ciente, ter perícia e etc. Com isso, chamo a atenção para o tema com uma nova pergunta, o que seria a “legalização” da ciência? Quando falamos sobre “legalização” de algo nos referimos a liberação de alguma coisa com a aprovação da justiça, correto? Correto. Mas a ciência não é ilegal… ou é? Uma nova pergunta, a ciência abrange toda a população? Sim ou não, eis a questão.
Na visão popular o cientista é um ser ranzinza, arrogante e excêntrico que fica brincando de “Deus” dentro de um laboratório. Mas entenda, não é todo mundo que pensa assim, viu? Vemos a sabotagem de pesquisa por mau uso da ética profissional ou por simples ignorância, e quando digo ignorância quero dizer falta de conhecimento, falta de saber, falta da ciência. Essa falta de conhecimento por parte de uma população que se vê fadada ao “achismo”, sensacionalismo da mídia e o estereótipo formulado do ser cientista. Esse estereótipo muitas vezes são consolidados profissionais que retém o saber ao seu âmbito profissional e compartilham apenas com pessoas que possam entender do assunto. Estou mentindo? Com quantas pessoas você conversou por iniciativa própria uma conversa científica?
Não é muito fácil iniciar uma conversa de conteúdo científico com pessoas leigas, e talvez seja esse o ponto de desestímulo. Falar em uma linguagem acessível para a população, promover ações de integração. Porém, liberar a ciência para um público comum destoando do meio científico, evita especulações sobre a ciência e seus métodos. Afinal, que cientista não é posto em tabu sobre as experiências com animais? Já fui questionada sobre o assunto mesmo sem trabalhar com fauna, imagina quem trabalha? Além disso, a popularização da ciência evitaria pesquisas tendenciosas, embora sejam feitas em termos legais. Contudo, as consequência dessas pesquisas prejudicam tanto a conservação que se torna um crime contra a natureza, na qual ela cobra e quem responde não é só o “réu” da questão. O preço de um crime ambiental é tão incomensurável que não há dinheiro que o pague, “jeitinho” que se dê e fuga das consequências.
Então, pontuando o título: Liberte a ciência. O conhecimento não é objeto de posse de cientista e nem o cientista é o ser estereotipado que afirmam ser. Cientistas são todos que sabem sobre algo, ao mesmo tempo que não nutrem perícia de nada e tem curiosidade pelo todo. A ciência é do povo e os profissionais de cada ramo são os porta-vozes da área. Sendo então esses porta-vozes, temos que disseminar, não apenas para preencher currículo ou inflar o ego de profissionais. Devemos propagar a ciência para que ela seja acessível por todos, para manutenção do saber, para que ela possa ser aplicada e que principalmente, para que a ciência não seja perdida e nem os fatos corrompidos.
Assim, finalizo meu texto, meu discurso e argumento. A ciência é bem e pode ser maldição, depende de quem usa e para o que usa. Entretanto, ela é irrestringível e por isso, não pode ser limitada a segmentos. Cada cientista em sua área contribui para algo além dele. O saber promove a evolução, previne tragédias e expande o universo. Desta forma, temos que começar a pensar na ciência como um assunto mais holístico em que todos se inserem e tem sua função. Nós temos que libertar, legalizar e consolidar a ciência no seu significado mais profundo, o aprofundamento do conhecimento.
Natália Coelho Ferreira, bióloga, mestranda em Ecologia de Sistemas na Universidade de Vila Velha.
Que a ciência esteja com você
Esse post é parte da Blogagem Coletiva de comemoração aos 10 anos do ScienceBlogs Brasil. Essa semana é Tema Livre. Hoje quem escreve é Arthur Filipe, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Diversidade Biológica e Conservação nos Trópicos da UFAL.
Quando eu fiquei sabendo da blogagem coletiva de divulgação científica para comemorar os 10 anos do ScienceBlogs Brasil, logo pensei: “O que é que eu tô fazendo aqui fora da festa?”. Acontece que neste exato momento em que estou escrevendo este texto também estou desenvolvendo a minha dissertação do mestrado, e justamente por isso as coisas andam tão corridas que às vezes fica meio difícil dedicar o tempo que eu gostaria para a divulgação científica. Mas, de repente, um pensamento me veio: “Ei, e por que não fazer as duas coisas ao mesmo tempo?”; assim sendo, resolvi pôr as mãos na massa e escrever um texto para falar um pouco para vocês sobre o que eu ando aprontando na minha dissertação.
Recentemente, numa galáxia bem conhecida, um cientista chamado Lei Wang, da Universidade Nacional da Austrália, teve uma ideia genial: criar hologramas. Se você for um admirador de obras de ficção científica como eu, entenderá logo do que estou falando. Resumindo, hologramas são imagens tridimensionais formadas a partir de diferentes intensidades de luz, e esta inovação pode revolucionar desde mensagens que enviamos no celular até tecnologias utilizadas por astronautas no espaço. Se você está pensando que esta ideia parece ter nascido de um filme de ficção científica não está enganado: Lei Wang é fã de Star Wars desde criança.
Quando o cineasta George Lucas criou Star Wars, o seu objetivo principal era contar uma história que tivesse conceitos de mitologia antiga; além disso, Star Wars também apresenta conceitos influenciados pela ciência, como as tão conhecidas viagens mais rápidas do que a luz da nave Millenium Falcon. As viagens mais rápidas do que a luz se parecem com o conceito da velocidade de dobra no espaço-tempo, que ainda é uma especulação dos físicos e dos fãs de Star Trek (olá, leitor do futuro, aí já existem naves que viajam na velocidade de dobra no espaço-tempo?); contudo, George Lucas considerou viagens mais rápidas do que a luz como uma realidade bem plausível em seu universo. Quanto a viagens mais rápidas do que a luz ainda permanecemos no campo da especulação, mas já podemos ter bons pressentimentos sobre os hologramas, apesar das pesquisas nesta área ainda estarem em fase inicial.
Bom, mas afinal de contas, o que isso tudo tem a ver com a minha pesquisa do mestrado? Na verdade, tem tudo a ver! Se um cientista Jedi, como o que mencionamos acima, decide trabalhar com hologramas devido ao fato de se interessar muito por ficção científica, podemos nos perguntar: o que mais faz um cientista querer trabalhar com determinado ramo da ciência? Existem algumas pesquisas, por exemplo, que demonstram que muitas pessoas escolhem ser astronautas ou físicas teóricas por gostarem de filmes e séries sobre exploração espacial; mas existem muitos outros motivos que também podem explicar os interesses de pesquisa. E são esses motivos que eu quero descobrir na minha dissertação!
Trazendo essa discussão para dentro da Biologia (que é a minha área de atuação), a minha pergunta é sobre quais as razões que levam um pesquisador estudar uma determinada espécie, e não outra. Seria o seu status de ameaça na IUCN? Ou talvez seria o fato da espécie ser conhecida há mais tempo pelos pesquisadores? Será que variáveis biológicas, como os hábitos de vida ou os tipos de ambientes das espécies influenciam o esforço da pesquisa? Para responder a essas perguntas, os organismos-modelo do meu estudo são as espécies da Classe Amphibia, importantes indicadoras ambientais e de grande relevância comercial. Para encontrar as respostas, a minha pesquisa necessita simplesmente de um computador e ideias bem definidas em mente; e, no final das contas, será possível entender um pouco as motivações dos pesquisadores, e como isso afeta as espécies biológicas. Legal, né?
Eu ainda não sei o que influencia (ou deixa de influenciar) a pesquisa para os anfíbios, mas pelo que tudo indica, o Heavy Metal tem tudo para ser uma variável preditora: que o diga a espécie Dendropsophus ozzyi, batizada assim em homenagem ao cantor Ozzy Osbourne!
Arthur Filipe da Silva, biólogo formado na Universidade Federal de Alagoas, atualmente é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Diversidade Biológica e Conservação nos Trópicos dessa mesma universidade. É integrante do Laboratório de Ecologia Quantitativa e do Laboratório de Biologia Integrativa. Edita o blog Hipótese Nula, e adora coisas como ecologia, evolução, ciência livre, R, e, claro, café.
Perguntas que não acabam
Esse post é parte da Blogagem Coletiva de comemoração aos 10 anos do ScienceBlogs Brasil. O tema dessa semana é Fazer Ciência, minha vida de cientista. Hoje quem escreve é Gracielle Higino, doutoranda em Ecologia e Evolução na UFG.
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Imagine como se sente uma criança que adora ciência ao ver na TV como os cientistas conseguiram fazer crescer algo com o formato de uma orelha humana nas costas de um rato. Talvez você tenha sido uma destas crianças, certo? Pois é, este foi o momento exato em que eu decidi que seria cientista. O engraçado é que eu não me interesso tanto assim por orelhas humanas, ou mesmo por ratos; eu sempre adorei Ecologia (lembro nitidamente da aula na primeira série em que aprendi sobre o ciclo da água e entendi por que chove). Só que esse episódio do rato não tinha a ver com minhas perguntas preferidas: foi ali que eu vi como a ciência pode alcançar feitos incríveis, e eu queria que todo mundo percebesse isso. Talvez isso as fizesse acreditar que qualquer pessoa pode conquistar coisas incríveis, com o método certo.
Foi assim que me tornei ecóloga teórica com uma grande paixão por divulgação científica. Hoje estou fazendo doutorado em Ecologia e Evolução e sempre me metendo em projetos paralelos de comunicação científica e ciência aberta. Eu me dedico bastante a estes projetos porque eu acredito que a ciência pode empoderar todos nós, e estou sempre tentando convencer meus colegas a embarcarem comigo nessas aventuras. Então eu vou contar aqui como é essa minha vida de cientista um pouco menos tradicional. Vamos lá?
Bom, pra começar, desde 2014 sou pós-graduanda (com um intervalo aí no meio de pesquisa independente). Isso quer dizer que eu faço parte de uma categoria de trabalhadores que quase ninguém entende muito bem como funciona. Nossos direitos, deveres e verbas passeiam entre o Ministério da Educação e o da Ciência e Tecnologia. A gente assiste a aulas, apresenta trabalhos, faz matrícula, paga meia entrada no cinema. A gente também dá aulas, tem contrato de dedicação exclusiva, produz a maior parte do conhecimento e desenvolvimento tecnológico do país. Porém, não temos férias, aposentadoria, adicional de insalubridade, e só recentemente conseguimos licença maternidade.
Isso também significa que eu estou naquela janela da vida em que eu tenho que explorar todo o meu potencial, tentar botar pra funcionar todos os meus planos A, B e C pra ter como me sustentar depois do doutorado sem depender de concurso ou bolsas de pós-doc (cada vez mais raras). E também é nesta fase que eu tenho que desenvolver a cientista que eu quero ser nos próximos anos, e isso, definitivamente, não inclui somente a minha tese.
Por isso a minha rotina inclui, por exemplo, um clube de revisão de preprints, porque quero exercitar a capacidade de analisar criticamente os artigos, sabendo identificar o que eles têm de bom e no que podem melhorar. Sem contar o benefício ENORME pra ciência que é a revisão de preprints, né, mores? Os preprints são artigos científicos completos que seus autores consideram prontos, mas que precisam de discussão e maturação antes da submissão à publicação em uma revista. Às vezes a revisão pela qual esse artigo passa enquanto é um preprint já adianta bastante o processo de publicação, fazendo toda a pesquisa andar mais rápido.
Minha rotina também tem uma parte significativa dedicada à divulgação científica de alguma forma. Ano passado, toda sexta-feira à tarde eu escrevia algum texto, lia artigos sobre o assunto, atualizava a página do LEQ ou do TheMetaLand (meus labs ❤) no Facebook, ou ajudava algum colega com suas tarefas relacionadas à DC. Este ano eu mudei esse dia da DC para as quartas, que eram os dias em que me reunia com o pessoal do Mozilla Open Leaders e trabalho no meu projeto aberto, o IGNITE. O Mozilla Open Leaders é um programa de treinamento de líderes de projetos abertos, aqueles em que tudo é transparente e a liderança é descentralizada, do jeitinho que eu gostaria que funcionasse o meu futuro laboratório. O MOL me ajudou a pensar de um jeito diferente na divulgação científica, na minha carreira e na minha pesquisa. Também foi durante o MOL que eu aprendi ferramentas de gerenciamento de projetos que eu estou aplicando na minha tese com um plano de auto-mentoria.
No meio disso tudo eu estudo como as espécies se organizam no espaço, do ponto de vista continental, e por quê. Quero entender o que tem nos locais em que as espécies estão que fazem elas estarem lá, ou o que tem nos locais onde elas não estão que fazem elas não estarem lá. Outro dia eu encontrei um texto (que infelizmente eu não sei quem escreveu) que descreve exatamente o que eu faço no meu dia-a-dia:
“[…] eu faço mundos que não são reais em computadores. Nestes mundos não-reais, eu faço muitos, muitos animais não-reais e faço eles brigarem muitas, e muitas, e muitas vezes. Então eu vejo quais animais brigaram mais. É muito legal.”
Esta é parte da minha pesquisa. Só que nos meus mundos não-reais, estas brigas geram agrupamentos de espécies ou buracos sem espécies. Uma espécie empurra a outra mais pro cantinho, ou uma faz a outra sumir, todo esse tipo de coisa.
Quando eu era criança, lá naquela época em que eu vi o ratinho com a orelha nas costas, eu queria crescer e ter um emprego em que eu pudesse responder perguntas, e sabia que este seria um trabalho infinito, porque as respostas de vez em quando acabam, mas as perguntas não. E esta é a minha vida de cientista hoje: respondendo perguntas que nunca acabam.
Gracielle Higino, doutoranda em Ecologia e Evolução na UFG, escreve no blog Hipótese Nula e toca o projeto IGNITE de treinamento em divulgação científica.
Minha vida de matemático e lógico
Esse post é parte da Blogagem Coletiva de comemoração aos 10 anos do ScienceBlogs Brasil. O tema dessa semana é Fazer Ciência, minha vida de cientista. Hoje quem escreve é Walter Carnielli, professor Titular do Departamento de Filosofia da Unicamp.
Se você quiser participar saiba mais em: http://bit.ly/SBBr10anos
Em novembro de 1023. Zach Weber, professor de Filosofia da Universidade de Otago, Nova Zelândia, entrevistou-me para a publicação “The Reasoner” (Volume 7, Número 11, November 2013, ISSN 1757-0522 www.thereasoner.org, “Features: Interview with Walter Carnielli”)
Penso que as perguntas do Zach Weber foram muito bem colocadas (talvez as respostas nem tanto). Mas acredito que valha a pena rever algumas respostas, com novos detalhes, para a iniciativa “Fazer ciência, minha vida de cientista”.
Esta não é a entrevista na íntegra, apenas uma revisitação elaborada de algumas partes menos técnicas.
The Reasoner, ZW: Como começou sua carreira em matemática e lógica?
WAC: No início do ensino médio, eu tive um jovem professor que estava fazendo seu doutorado em lógica. Um dia chovia pesadamente e apenas algumas crianças vieram para a aula. Eu pedi que ele nos explicasse em duas frases o que era uma “tese de doutorado”. Ele explicou seu trabalho em indução matemática, com alguns exemplos. Eu não acho que o outros estudantes estavam prestando atenção, mas eu achei surpreendente como alguém poderia dominar o infinito, provando coisas que eu pensava que levaria uma eternidade, apenas com alguns passos! Eu pedi mais, e ele e o professor de física me deram alguns problemas combinatórios para resolver. Nós já havíamos tido aulas sobre lógica, envolvendo tabelas de verdade elementares- tabelas de verdade, argumentos simples e afins – e eu achei muito impressionante como combinatória e lógica tinham métodos semelhantes. Isso influenciou bastante minha carreira, e o que investigo ainda hoje.
Na verdade, essa espanto positivo já era reflexo de algo muito interessante que havia na casa dos meus pais, quando eu era menino: havia dois lindos guarda-roupas antigos num quarto, um em frente ao outro, cada um com um grande espelho de cristal. Quando alguém se colocava no meio, via-se. uma imagem refletida na outra, indefinidamente, até o “infinito”… Nunca vi uma melhor imagem do infinito do que essa. A ciência não sabe se o universo é finito ou não. Não há representações óbvias do infinito. Mas dois bons espelhos paralelos dão uma ótima ideia. Qualquer um pode tentar!
De repente, na aula chuvosa de matemática, tudo fez sentido. O jogo dos espelhos encontrava uma formulação matemática na indução aritmética. Decidi estudar isso e as coisas ligadas a isso para sempre!
Também tínhamos nos bons tempos do Colégio Culto à Ciência em Campinas, muita geometria e desenho geométrico resolvendo problemas com linhas, planos, triângulos, etc. A principal dica – isso levou anos para eu entender – era sempre “suponha o problema resolvido, e a partir daí resolva-o”. Funcionava em muitos casos, não sempre, mas eu estava sempre intrigado: como você pode supor um problema resolvido e, em seguida, resolvê-lo? E se fosse em princípio não solucionável? O professor não sabia porquê isso funcionava, Mais tarde, muito mais tarde, eu conheci o método analítico de Pappus de Alexandria (290 – 350), que inspirou Newton e Descartes entre outros. Parece misterioso, ligado de alguma forma à auto-referência a ao infinito, que apenas mentes mais elevadas poderiam realmente entender. Eu decidi, muito imodestamente como costuma ser a juventude (felizmente), estar mais perto das mentes mais elevadas estudando matemática.
The Reasoner, ZW: Grande parte da sua pesquisa tem sido em lógica paraconsistente. Como você vê a relação entre a lógica clássica e a lógica não-clássica?
WAC: Eu acho que a expressão “lógica clássica” não é mais do que uma “façon de parler“. A lógica formal ou simbólica como um todo é apenas um modelo matemático da linguagem natural e do raciocínio, quer incorpore ou não quaisquer ferramentas ou teorias que carregam o rótulo “não clássico”. Não há rivalidade entre “lógica clássica” e “lógicas não clássicas”. O que é – impropriamente – chamado por muitas pessoas “lógica clássica ” é simplesmente uma coleção de princípios e leis herdados de Aristóteles. Mas a lógica aristotélica e lógica moderna, na tradição de Frege, Russell, Whitehead, Wittgenstein, etc., não coincidem. Uma diferença substancial, entre outras, é que a lógica aristotélica e a lógica moderna diferem fortemente na questão da importação existencial. Acho que nós podemos nos referir à lógica tradicional como uma contrapartida da lógica moderna, e a lógica contemporânea é melhor vista como lógica universal.
The Reasoner, ZW : Então tudo é apenas “lógica”, se visto de uma perspectiva suficientemente alta?
WAC: Se há alguma coisa que mereça o nome “lógica clássica”, é a lógica considerada adequada para as necessidades da maioria da matemática. A matemática, pelo menos em sua prática, não envolve o passado ou tempos futuros, nem hermenêutica, nem raciocínio contra factual, advérbios, modalidades, adjetivos, graus, etc. Outras áreas não tão imunes a perspectivas e interpretações filosóficas, podem exigir distinções mais sutis – e esse é o ponto onde surgem as chamadas “lógicas não clássicas”.
Mas depois de tudo, as lógicas “não-clássicas” acabam se revelando aplicáveis à matemática. É um ponto de vista filosófico que justifica a matemática intuicionista e construtiva, a chamada matemática inconsistente, as teorias de conjunto paraconsistentes, as teorias de conjuntos difusos, etc.
No limite, novos objetos matemáticos beneficiam-se quando a distinção clássica/ não clássica é deixada para trás: é bem conhecido que existem “topoi” (na teoria. dos topos) que não verificam a lei do terceiro excluído, e o matemático que entende essa visão contemporânea não se sente desconcertado.
The Reasoner, ZW : Eu posso ver esse ponto de vista refletido em alguns de seus trabalhos. Você pode nos falar sobre as Lógicas da Inconsistência Formal (LFIs)?
WAC: Eu trabalhei, com colegas como Marcelo Coniglio e estudantes de doutorado à época como o agora professor João Marcos na formalização da distinção entre consistência e não-contradição, o que levou às LFIs. Em termos sintáticos, isso é feito simplesmente adicionando as noções meta-teóricas de consistência e inconsistência no nível da linguagem objeto, adicionando à linguagem novos conectivos com o significado pretendido de “é consistente” e “é inconsistente”, e alguns axiomas relacionando as noções de consistência e inconsistência com a negação e a contradição.
Um conceito mais amplo de paraconsistência surge daí, o qual incorpora vários outros: apenas uma contradição sobre um assunto consistente leva à explosão. Uma contradição sobre algo que não temos certeza se se comporta de forma consistente, não causa qualquer explosão dedutiva. Isso torna a lógica paraconsistente completamente livre de quaisquer suposições metafísicas como objetos contraditórios reais existentes no mundo, ou de qualquer influência de Hegel. Não é contrário a Aristóteles, quando levamos a sério seu famoso comentário sobre acreditar em contradições no Livro Γ da Metafísica: nós podemos dizer as palavras, mas não podemos realmente acreditar no que estamos dizendo.
Walter Carnielli é Professor Titular do Departamento de Filosofia da Unicamp. Membro e ex-diretor do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Unicamp. Sua pesquisa atual envolve as relações entre lógica, probabilidade e racionalidade. Ganhador da Medalha Telesio-Galilei e Prêmio Jabuti.
Ascensão e queda da ciência brasileira
Esse post é parte da Blogagem Coletiva de comemoração aos 10 anos do ScienceBlogs Brasil. O tema dessa semana é Ciência e Política. Hoje quem escreve é Luciano Queiroz, cientista, biólogo, divulgar de ciência no Dragões de Garagem e pré-candidato a deputado estadual pelo PT/SP.
Se você quiser participar saiba mais em: http://bit.ly/SBBr10anos
“O número de mestres e doutores formados no Brasil aumentou mais de cinco vezes (401%) desde 1996”, é assim que começa a matéria do jornalista Herton Escobar do dia 05 de julho de 2016. Esse número nos diz muito e devemos analisar com calma.
Quero demonstrar que o aumento no número de cientistas indica a ascensão da ciência brasileira em um primeiro momento e, como isso está se tornando um fardo, contribuindo para queda.
A maior parte da ciência brasileira é feita dentro das universidades públicas. Bolsas de mestrado e doutorado, projetos de pesquisa e investimento em infraestrutura são responsabilidades de dois ministérios Educação (MEC) e Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).
Os orçamentos de ambos os ministérios cresceram nesse mesmo período e podemos dizer que o aumento no número de mestres e doutores formados é um reflexo desse aumento. Outro indicativo da ascensão da ciência brasileira foi o aumento no número de publicações em revistas científicas. Aumento esse muito discutido nos últimos anos por ser apenas em quantidade e não em qualidade (dados mais detalhados aqui e aqui).
Esse crescimento foi contínuo até 2013 quando começou a diminuir, vieram eleições, crise econômica e golpe parlamentar. Desde então, a maioria das notícias que lemos sobre ciência e tecnologia contêm palavras como “cortes”, “contingenciamento”, “perda de recursos”, “desmonte”, etc. E, acompanhando os gráficos do orçamento, inicia-se a queda da ciência brasileira.
Pretendo não me aprofundar muito nos sucessivos cortes – iniciados ainda no governo Dilma, aproveitando para fazer aqui minha autocrítica como petista – porque já dedicamos muito esforço para apontá-los à sociedade. Algo que já está ficando cansativo até para mim. Temos que avançar na discussão, temos que pensar soluções práticas e agir.
A primeira coisa que devemos fazer é entender as consequências da nossa queda. E vale uma observação, na ciência, assim como em outras áreas, os efeitos são sentidos à médio e longo prazo.
Mesmo com os cortes, grupos de pesquisa ainda tinham projetos aprovados, recursos disponíveis e a maioria dos alunos possuíam suas bolsas de pesquisa. Vamos dizer que essa era a gordura que tínhamos para queimar, só que ela está acabando.
As universidades públicas brasileiras estão em uma situação gravíssima, depois de termos experimentado a maior expansão do ensino superior público com o REUNI, construção de centenas de universidade e institutos federais em todo o Brasil e aumento no número de vagas de professores (entende-se: cientista, pesquisador, docente, administrador, adicione mais uma função a sua escolha) e alunos. O efeito dos cortes, somado a emenda constitucional do teto de gastos (PEC do Fim do Mundo), está começando a ser sentido com maior intensidade.
Diversas universidades estão tendo que cortar despesas com serviços de manutenção. A Universidade Federal do ABC (UFABC), como aponta matéria do G1, reduziu os contratos realizados com empresas terceirizadas para segurança e zeladoria, além de desligar os elevadores. Mas não só as universidades federais estão passando por isso, a UERJ está em situação muito mais complicada há mais tempo. Só para ficarmos em alguns exemplos.
Talvez você não saiba, mas os alunos de pós-graduação são a principal mão de obra da ciência no mundo. Estamos passando pelo processo de formação científica, realizamos nossos estudos que normalmente compõem um projeto maior do orientador. As publicações com pequenas ou grandes descobertas, patentes e ideias são frutos dos trabalhos realizados pelos alunos sob supervisão do orientador (mentor científico).
Com os cortes, o interesse dos alunos pela carreira científica tende a diminuir, mesmo porque os incentivos (bolsa de estudos, colocação no mercado) também diminuíram. Resumindo, o número de alunos saindo da pós-graduação está maior do que os que entram. E para onde eles estão indo? Alguns conseguem ocupando vagas em universidades públicas e privadas, apesar da diminuição da oferta dessas vagas, outros vão para docência no Ensino Básico ou, na pior das hipóteses, mudam de profissão. Mas quero focar em um destino que tem me preocupado um pouco mais.
Esse destino já foi apontado pelo Cláudio Ângelo no texto “Quem matou a ciência brasileira?” como a Opção Bolívar (eu inventei esse nome). Citando o Cláudio Ângelo, “é fazer o que Simon Bolívar recomendou no fim da vida que se fizesse na América: emigrar”. Outros têm dito que o melhor caminho para o cientista brasileiro é o aeroporto. E é aqui que o aumento no número de mestres e doutores se tornou um fardo.
Isso me preocupa porque fizemos um investimento grande (recursos) e longo (tempo), foram mais de 10 anos formando cientistas, enviando vários deles para o exterior a fim de se especializar e retornarem para o Brasil. Deixar que essa massa crítica vá embora é lamentável, não podemos forçá-los a ficar, mas mostra como a política influencia diretamente na vida do cientistas e, consequentemente, na sociedade como um todo que não terá o conhecimento daquele cientista a sua disposição. Além de perdemos o investimento financeiro, perdemos a pessoa.
E de onde vem a solução? Seria muito bom se tivesse uma resposta simples e direta para isso, mas não tenho. A única solução a médio e longo prazo que vejo é o nosso envolvimento do política. Todos esses eventos de cortes e contingenciamentos acontecerem e nós cientistas não conseguimos responder a altura, ficamos esperando por um “logo melhora” e acreditamos em promessas furadas. No fundo, espero que tudo isso sirva, e estou trabalhando nesse sentido, para que comecemos a criar uma identidade coletiva a partir dessa massa disforme de pessoas.
A política faz parte das nossas vidas e por mais que o tempo seja curto, que tenhamos reuniões longas e burocráticas, que o prazo para entrega do relatório esteja chegando, que os experimentos não estão dando certo… nós devemos participar da política. Nossa ausência está cobrando caro.
Talvez a queda da ciência brasileira seja apenas um declínio momentâneo e logo voltamos a crescer, mas temos muito trabalho pela frente. Li uma frase ontem que resumiu bem meu sentimento, “Nenhum país terá futuro melhor se não construí-lo no presente”. A ciência faz parte desse país, desse futuro e presente.
Luciano Queiroz é cientista, biólogo, divulgar de ciência no Dragões de Garagem e pré-candidato a deputado estadual pelo PT/SP.
Quem matou a ciência brasileira?
Esse post é parte da Blogagem Coletiva de comemoração aos 10 anos do ScienceBlogs Brasil. O tema dessa semana é Ciência e Política. Hoje quem escreve é Claudio Angelo, dispensa maiores apresentações uma vez que ele escreve no Curupira, blog do Science Blogs Brasil.
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Rodrigo trabalhou de garçom e faz bicos depois do pós-doc na Inglaterra. Jefferson perdeu dez alunos e quatro pós-doutorandos porque não tinha como pagá-los. Sidarta racha com outros professores a conta de internet de seu laboratório numa universidade federal. Sergio viu alunos irem embora do Brasil porque não consegue manter a colônia de camundongos transgênicos da qual dependiam as teses deles. José Antonio não tem para comprar reagentes. Ronald precisou escolher entre demitir pessoas e cancelar contratos de manutenção de equipamentos sofisticados – optou pela segunda.
Essas são histórias reais, de cientistas brasileiros reais. Algumas delas me foram narradas pelos próprios. Qualquer pesquisador ou aluno de pós do Brasil hoje tem um conto de terror para relatar, como testemunha ou como vítima. Quem não chegou ontem de Júpiter sabe que a ciência brasileira enfrenta o que talvez seja sua maior crise, que não há solução à vista e que os efeitos do tombo no desenvolvimento científico, tecnológico e econômico do país serão sentidos por muitos anos no futuro.
Não é o caso de entrar nos detalhes numéricos aqui, mas o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia em seu auge, em 2010, era de cerca de R$ 9 bilhões. Em 2017 ele caiu para metade disso – uma das propostas orçamentárias feitas naquele ano correspondia a um terço desse valor. Em 2018, num requinte de crueldade, 10% dos R$ 4 bilhões orçados ainda foram congelados. Considere, ainda, que essa farinha pouca ainda precisa ser dividida com o pirão das Comunicações – e que a PEC do Teto inviabiliza recuperação orçamentária significativa pelos próximos 19 anos.
Como tudo no Brasil, esse orçamento vai sendo emendado por meio de cambalachos sucessivos: descongela um tico aqui, faz um decreto de suplementação ali. É uma espécie de waterboarding financeiro: antes de a vítima morrer você tira a cabeça dela da água, para ela respirar um pouco e agradecer por estar viva antes de mergulhar de novo. Esses remendos têm mantido as universidades e institutos de pesquisa (Uerjs da vida fora) mais ou menos funcionais, ao mesmo tempo em que dão a nossos distintos doutores e doutoras a ilusão de que ainda não é hora de fechar estradas, se imolar em praça pública ou invadir Brasília e quebrar a porra toda. Má notícia, amigues: essa hora já passou faz tempo.
Como o nosso empresariado – que cresceu mamando no Estado e cujos líderes hoje aplaudem Jair Bolsonaro e insinuam que canudo plástico em estômago de baleia é armação de ambientalista – é notoriamente avesso a investir em pesquisa e desenvolvimento, a ciência está à mercê dos recursos federais e dos Estados que ainda têm agências de fomento fortes (N=1). Quando a União sai de cena, a ciência desmonta.
Excluindo os relatos anedóticos sobre fuga de cérebros e uns dados preliminares quase dois anos atrás do Rogério Meneghini, da Scielo, sobre queda na produção científica, ainda não vi nenhuma avaliação sistemática do prejuízo estrutural da crise sobre a pesquisa no Brasil. Mas essa conta virá, por questão de simples aritmética. O sistema cresceu muito durante a bonança da era Lula. Portanto, o tombo, causado principalmente (mas não só) pela Grande Recessão Brasileira (ela merece a grafia em caixa alta), é maior do que as pindaíbas anteriores. No que isso dá todo mundo sabe: menos pesquisadores igual a menos papers igual a menos questões relevantes para o país sendo abordadas igual a menos desenvolvimento, menos inovação, menos dinheiro, menos bem-estar social, num círculo difícil de quebrar. O Brasil não conseguirá assegurar uma recuperação econômica duradoura sem um sistema de C&T restaurado.
Mas que fazer, além de assaltar uns bancos? Esta é a pergunta de 9 bilhões de reais. Talvez um bom começo seja escapar da armadilha do punitivismo.
Nossa polarização política atual não resiste a procurar culpados. Enquanto esquerda e direita brigam para saber quem bateu no iceberg, o convés vai alagando. Muita gente de bem insiste em que a culpa é do vampirão, o “golpista” que aprovou a PEC do teto e extinguiu o MCTI. Esse povo se esquece de que a crise foi gestada por Dilma, A Breve. Mas talvez, cavando bem, suas raízes sejam encontradas em seu apogeu, na era Lula.
Ou, o que é menos gostoso de ouvir, talvez quem matou a ciência brasileira de fato tenhamos sido eu e você. Por omissão. Ao eleger sucessivos governos sem uma plataforma consistente para a ciência. Ao permitir que o MCTI tenha sempre entrado na barganha política como um ministério de consolação para os partidos médios da base. Ao deixar de ir para a rua contra o verdadeiro golpe – o mais insidioso, pois mina nossa perspectiva de futuro, e o mais difícil de comunicar à população, porque, afinal, quem se importa com meia-dúzia de laboratórios – porque simpatizamos com tal partido ou odiamos o outro.
Na real, nada disso importa mais. Outubro vem aí, e o que fazer com o cadáver da ciência brasileira (entre os outros que se acumulam no morgue de ideias nacional) é essencialmente um não-assunto. Eu adoraria dizer os candidatos estão em silêncio porque estão dedicados à tarefa mais urgente de impedir uma escalada fascista no Brasil. Mas não: o sistema político e a imprensa estão presos ao loop de discutir quem vai levar o apoio do Centrão.
As urnas são o locus primário de resistência e retomada, mas há dois problemas: um, o sistema representativo está estragado; dois, o principal foco de crise, o Congresso, tende a ter uma renovação muito baixa devido à engenhosidade maligna da minirreforma política. Candidaturas de cientistas são uma excelente novidade e precisam ser fomentadas de toda forma, mas, mesmo na eventualidade de triunfarem, formarão mais uma bancada marginal numa Câmara convertida em balcão de negócios. Óbvio que isso é melhor que nada.
De prático e no curto prazo, restam dois caminhos. Um é a desobediência civil em massa, que me foi aventada em 2016 por um cientista sênior (o que se viu em vez disso foi meia-dúzia de protestos comportadinhos dentro dos campi). Deu certo com os caminhoneiros, mas, francamente, o sex appeal deles é muito maior. O outro é fazer o que Simon Bolívar recomendou no fim da vida que se fizesse na América: emigrar. Parece derrotismo, e é. Mas talvez a diáspora brasileira acumule massa crítica no exterior a ponto de facilitar o acesso de brasileiros a grupos de pesquisa globais em algum momento no futuro.
Não chega a ser um consolo, mas é o que temos para hoje.
Claudio Angelo, é autor de A Espiral da Morte – como a humanidade alterou a máquina do clima, vencedor do Prêmio Jabuti 2017 na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática e tem o blog Curupira no ScienceBlogs Brasil.
Conflito e Governo
Esse post é parte da Blogagem Coletiva de comemoração aos 10 anos do ScienceBlogs Brasil. O tema dessa semana é Ciência e Política. Hoje quem escreve é Ricardo de João Braga, atualmente cursando mestrado em Democracia (Roads to Democracy) na Universidade de Siegen, na Alemanha.
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Conflitos são inerentes às sociedades humanas e, devido à sua presença permanente e principalmente aos seus efeitos muitas vezes danosos, foram objeto de reflexão permanente ao longo dos séculos. Conflitos ocorrem devido a disputas por recursos materiais escassos, por valores – definição do que é certo, bom, justo, etc. – ou pela liberdade – definição das esferas da vida submetidas ao coletivo ou independentes dele. Um conflito pode surgir porque ninguém é tão fraco e o outro tão forte que alguma forma de ação ou verbalização não possa ser manifestada. Conflitos relacionam-se à violência, ao poder e ao governo.
Opõem-se ao conflito a ordem ou a harmonia. Nos extremos das possibilidades situam-se o “estado de natureza” caótico de Hobbes (escritor inglês do séc. 17), onde o “homem é o lobo do homem”, isto é, cada indivíduo é ameaçado mortalmente por cada um dos seus próximos, e no outro oposto, da absoluta ordem, o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley (também inglês, mas do séc. 20), com sua ordem radical e fúnebre.
A reflexão sobre o conflito, e suas extensões a governo, poder, autoridade, etc., diminui nossa ingenuidade sobre as relações políticas e sociais, e em alguma medida aumenta nossos recursos de convivência e avaliação de alternativas políticas.
O mote da semana, Ciência e Política, aqui ganha uma qualificação importante. A história da reflexão sobre o conflito não apresenta propriamente uma avaliação científica no sentido moderno do termo, o qual pretende limitar-se à análise de fatos e objetos sem perspectivas de valor. De fato, a reflexão sobre conflito surgiu muito antes da concepção moderna de ciência. Contudo, isto não diminui o valor de tais reflexões. Em primeiro lugar tais reflexões basearam-se em boa medida na observação da realidade por homens de gênio e extrema habilidade discursiva (em geral são grandes escritores), mas mais importante, ideias, argumentos e modelos criados nestas reflexões influenciaram a prática dos homens públicos ao longo dos séculos e ainda hoje. Assim, aqui se apresentam alguns marcos desta reflexão. Vamos a eles.
Platão, no séc. 4 a.C., propôs a criação de uma sociedade harmoniosa, baseada numa rígida divisão de tarefas. A sociedade seria governada por um pequeno grupo de “reis filósofos” que considerariam as necessidades da sociedade como um todo, atendendo somente a ela. Conflito para Platão equivaleria a uma doença da sociedade, a uma divisão de vontades, visões, valores.
Maquiavel, florentino do séc. 16, compreendia a sociedade como imersa no caos e sofrendo por isso toda sorte de mazelas. O criador da ordem seria o príncipe afortunado e virtuoso, fundador do estado e da ordem. Fortuna aqui equivaleria ao toque gracioso da sorte, e virtuoso entende-se no sentido político, não religioso. O bom príncipe deveria saber usar a força e a astúcia a fim de conquistar e manter o poder. Paradoxalmente, o afortunado e virtuoso príncipe funda a ordem e põe fim ao conflito, contudo, o caos cria-se pois todos os seres humanos, potencialmente, detêm esse germe da busca do poder, e muitos debatem-se por ele. Assim, os potenciais príncipes criam o conflito, e o vencedor entre eles instaura a ordem.
Rousseau, genebrino do séc. 18, proclamava que não deveria haver conflito entre os homens, se estes compreendem-se apropriadamente o mundo político. Todas as pessoas, para ele, deveriam se unir em torno da “vontade geral”. Esta ideia expressa o real interesse de todas as pessoas e detém uma superioridade metafísica. Difere da aglutinação das vontades individuais, pois caso alguém tenha opinião diferente da vontade geral, diante de sua presença esta pessoa converter-se-ia a ela, compreendendo que incorria em erro em sua posição individual. Assim, como em Platão, conflito aqui teria uma conotação patológica.
Montesquieu, francês também do séc. 18, temia sobretudo os abusos do poder. Para ele, conflitos são inerentes às sociedades humanas reais, e não haveria como suprimi-los. O que se deveria buscar, sim, era controlar os conflitos. Poder demais num conflito poderia destruir tudo que é valioso aos homens – vida, liberdade. Sua famosa solução é a divisão de poderes, a ideia de que o poder apenas detém-se diante de poder, e por isso sua divisão no estado entre Executivo, Legislativo e Judiciário ofereceria a saudável solução. Os poderes de um estado confrontar-se-iam frequentemente, mas ninguém seria absoluto e desta forma encontraria limites as suas ações. Esta preocupação com os limites do poder é o germe do liberalismo.
Quando da aprovação da Constituição dos EUA no final do séc. 18, três homens públicos envolvidos no processo constituinte lançaram 85 artigos na imprensa a fim de explicar e granjear apoio para sua ratificação. Eram James Madison, Alexander Hamilton e John Jay. Leitores de Montesquieu, compreendiam o conflito como inerente à sociedade, e o grande perigo a ser evitado era a concentração de poder, pois concentrado ele poderia trazer danos absolutos. A solução encontrada foi a divisão dos poderes no sentido horizontal, como já prescrevera Montesquieu, entre Executivo, Legislativo e Judiciário, e também no sentido vertical, prescrevendo a federação, com poderes nacional, estadual e local. Assim, por mais que as pessoas diferenciassem-se, detivessem interesses distintos e fossem propensas ao conflito, a ausência de um poder majoritário – pois haveria um sem número de facções – impediria a dominação de vários grupos por um mais forte.
Marx, alemão do séc. 19, via a sociedade humana desolada sob uma radical exploração, os capitalistas dominariam os proletários. Neste quadro, uma infinidade de conflitos surgiria, motivados pelas justas razões dos que não desejam ser oprimidos rebelarem-se contra os opressores. Contudo, no horizonte de Marx encontrava-se uma sociedade que haveria superado os conflitos, superado as classes, onde o proletariado venceria os conflitos e mudaria o mundo. Neste mundo ideal não existiria conflito pois a verdade do desenvolvimento histórico seria incontornável, todos seriam iguais. Estas ideias são a base do comunismo científico, segundo Marx, e do comunismo real, aplicado em grande número de países posteriormente a ele.
O século XX, experimentando a ascensão política das massas populares como nunca antes na história, viu crescer nos extremos ideológicos duas soluções idênticas para os conflitos. À direita o fascismo e o nazismo, à esquerda o comunismo. Tais regimes visavam suprimir o conflito ao controlar todas as esferas da vida de cada cidadão. Acima de tudo estava o partido, a classe dirigente, e abaixo as massas submetiam todas suas ações, manifestações e pensamentos a eles. Deu-se a isso o nome de regimes totalitários, pois controlavam totalmente os indivíduos.
Entre os extremos postou-se a democracia liberal representativa de nossos tempos. Para ela, o conflito é inerente à sociedade, mas deve ser controlado – uma retomada das posições de Montesquieu e outros liberais. Acreditava-se numa pluralidade de grupos, indivíduos, crenças e posicionamentos na sociedade, mas estes por um lado deveriam controlar-se na esfera política pela grande dispersão, e na esfera jurídica pela garantia de direitos básicos do indivíduo que não poderiam ser suprimidos, como liberdade de expressão, opinião, crença, etc. Na democracia liberal representativa, delimita-se uma esfera de conflitos possíveis e controlados e outra de direitos individuais resguardados pela Justiça.
Contemporaneamente, contudo, esta perspectiva de democracia liberal representativa foi questionada. Sua limitação às eleições como mecanismo único de participação política levaria ao recrudescimento de conflitos em casos de alto questionamento, como sociedades com clivagens sociais, culturais, étnicas importantes. Além disso, brotam inúmeros questionamentos ao estado pelos resultados que estas democracias entregam aos cidadãos, vistos como aquém ao desejado e que assim deslegitimam o sistema político.
Diante dos problemas da democracia liberal representativa, surgiram as chamadas democracias participativa e deliberativa. Ambas, com ênfases diferentes, enfatizam a criação e expansão de instâncias de diálogo, livres e igualitárias, que promovam a criação de ideias e aproximação de posições entre os participantes. Os conflitos, aqui, deveriam diluir-se diante da prática do reconhecimento dos argumentos racionais, do valor do outro, e da convivência, mas sem submeter o indivíduo, e sim produzindo-se nele a concordância livre, racional e autônoma.
Como se vê, o conflito, na história, permeou esta outra inescapável realidade humana, a constituição de governos. Alguns objetivaram suprimir o conflito nivelando a todos, outros criando categorias estanques de governantes e governados. O conflito, contudo, também foi aceito, e as soluções passaram por dividir os grupos para que fosse impossível surgirem vencedores e derrotados absolutos, e também se garantiram direitos que deveriam ser resguardados de todos os conflitos, os direitos individuais. Por fim, atualmente, com a primazia do indivíduo no mundo contemporâneo e uma noção mais radical de autodeterminação, além da presença dos mecanismos liberais clássicos de divisão de poderes e resguardo de direitos básicos, busca-se a construção de soluções de convívio que sejam livres e autônomas. Para isso, os cidadãos precisam compreender-se tanto como diferentes, postados em posições distintas com interesses e visões diversos, quanto interdependentes e associados no destino de todos e de cada um. Assim, nada mais útil para podermos cumprir bem nosso papel neste mundo cada vez mais complexo do que entender o que já se pensou sobre o conflito e o que se fez e faz para lidar com ele.
Ricardo de João Braga tem graduação em economia, mestrado e doutorado em Ciência Política. Atualmente cursa mestrado em Democracia (Roads to Democracy) na Universidade de Siegen, na Alemanha.