Literatura, Política e Resistência! A quem interessa queimar livros?, por Danielle Chagas de Lima

A quem interessa queimar livros?

O ano é 2018, século 21. Apesar da imensa distância espaço-temporal e também das diferenças entre as sociedades, vira e mexe eu me pego pensando em uma obra datada do século 2. São declarações como “Os livros que não trazem a verdade sobre o regime de 1964 têm que ser eliminados[1] e notícias como “Livros de direitos humanos são rasgados na biblioteca da UnB”[2] que me transportam à introdução da obra Agrícola, de P. Cornélio Tácito, escrita por volta do ano 98 d.C.[3]

Queima de livros. 30 ilustrações para “A História de Dom Quixote” (Fonte: The British Museum)

Tácito nasceu por volta do ano 56 e faleceu no ano 118 d. C. Ele foi um importante historiador de sua época e sua obra, que retrata o período do Império romano, nos chegou em grande parte conservada[4]. A obra da qual sempre me lembro intitula-se A vida de Júlio Agrícola (De uita Iulli Agricolae) e narra, conforme o título sugere, a biografia de seu sogro, Júlio Agrícola. Bem, tentando não me afastar demais do porquê tal livro me vem à mente, faço um breve resumo de seu contexto de produção.

Trata-se do início do principado de Trajano, em Roma, quando Tácito finalmente sente-se livre e seguro para escrever sem correr perigo por causa do conteúdo da obra que pretende produzir. No texto, antes de apresentar a personagem principal, o autor faz uma reflexão sobre a escrita da história, mais especificamente, de textos biográficos e autobiográficos. Segundo ele, desde tempos muito remotos, homenagear a vida daqueles considerados ilustres na sociedade era um costume bastante comum. Mas Tácito nos conta que, em seu ofício de historiador, durante muito tempo encontrou dificuldades para compor uma homenagem a Agrícola, um homem que julgava exemplar naquele contexto. Essa personagem central da obra viveu durante os principados de Nero e de Domiciano: dois imperadores que comumente são vistos como os mais cruéis da história do Império romano[5]. Ainda na abertura da obra, Tácito explica também sobre a impossibilidade de compor sua obra à época de Domiciano e relembra o que houve com aqueles que se atreveram a escrever:

Fyodor Bronnikov lendo a sentença de morte de Trásea Peto (Fonte: http://www.art-catalog.ru/picture.php?id_picture=11335)

Nós lemos que quando Trásea Peto e Helvídio Prisco foram louvados por Aruleno Rústico e Herênio Senecião, respectivamente, isso se tornou motivo de pena capital. E não se enfureceram só contra os próprios autores, mas também contra seus livros. Delegou-se aos triúnviros a tarefa de queimar as memórias dos mais ilustres espíritos, no comício do fórum. Certamente, pensavam ter também coibido com aquele fogo a voz do povo romano, a liberdade do senado e a consciência do ser humano. Sem contar os filósofos que foram expulsos e toda a nobre arte levada para o exílio, para que nada se encontrasse de honesto em parte alguma. Fornecemos, sem dúvida, uma grande prova de paciência, e tal como a geração antiga viu o extremo da liberdade, do mesmo modo nós vimos o extremo da escravidão e até o acordo entre o falar e o ouvir foi suprimido por meio de inquéritos. Também teríamos perdido com a voz a própria memória, se em nosso poder estivesse tanto o esquecer quanto o calar[6].

Aruleno Rústico e Herênio Senecião, seguindo a tradição literária, escreveram obras em homenagem a duas personalidades conhecidas na história romana por sua oposição à autoridade do imperador e à falta de liberdade de expressão do senado[7]. Ambos foram punidos com a morte. Seus livros, e talvez outros mais, foram queimados em público. Tudo isso porque representavam condutas de personagens que em certa medida questionavam a autoridade única do imperador e denunciavam a corrupção de seus pares. O fogo, como Tácito nos diz, também deveria silenciar a voz do povo, suas ideias, sua consciência. A liberdade de pensamento também foi censurada, expulsando-se dali os filósofos. Ou seja, havia uma grande preocupação em limitar os discursos circulantes. Pode-se dizer que a Literatura (e, consequentemente, o pensamento em circulação) só poderia representar aquilo que passasse pelo crivo do imperador[8].

Por um lado, quando eu vejo notícias como as que mencionei no início deste texto, não consigo deixar de pensar que, infelizmente, há mais de 2000 anos obras são lançadas ao fogo, a fim de apagar a pluralidade de visões em determinados momentos históricos. Nem era preciso ter ido tão longe para encontrar testemunhos desse tipo, tantas outras vezes isso já aconteceu na história da humanidade[9]. Por outro lado, eu fico feliz e me fortaleço ao pensar em como a Literatura dispõe de força, valor político e atua como resistência. Não é à toa que os livros tornam-se vítimas concretas e simbólicas daqueles que pretendem contar uma história única. Tácito passou quinze anos em silêncio para preservar sua vida. Ao primeiro sinal de abertura, não deixou de relatar o autoritarismo existente outrora e as consequências daqueles que escreviam obras livres de uma adulação ao imperador. Fez de sua obra, portanto, memória daqueles que perderam suas vidas e também resistência, ao incluir na história os nomes daqueles que mereciam ser lembrados[10].

Lucio Massari (1569-1633)

As manchetes que citei me fazem pensar nesse texto porque ali algumas palavras me chamam a atenção. Propõe-se eliminar livros que não contêm a verdade sobre um momento histórico há muito estudado e documentado. Mas qual verdade, afinal? Livros sobre direitos humanos são rasgados… a quem isso interessa nesse momento? A que tipo de políticas interessa suprimir obras, e mesmo seus autores, ao longo da História?

O nosso mundo e a nossa história são feitos de narrativas. De pontos de vistas. São sempre tempos lamentáveis aqueles em que vozes são silenciadas, concreta e simbolicamente. Mas a literatura resiste e, por meio dela, podemos também nós sempre resistir e buscar a liberdade de pensamento e de expressão. Afinal, a “arte conversa com a liberdade que resiste dentro de nós”[11].

Em tempo: este texto é sobre livros, mas não pode deixar de lembrar e lamentar a perda de tantos registros culturais, de obras de artes e de documentos que se perderam com o incêndio de museus importantes em nosso país. Museus que, negligenciados e abandonados pelo investimento público, foram consumidos pelo fogo junto com memórias do passado. Nos últimos três anos, o Memorial da América Latina, o Museu da Língua Portuguesa e o Museu Nacional tornaram-se vítimas desse fogo institucionalizado.

[1] Fonte: https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/09/28/general-ligado-a-bolsonaro-fala-em-banir-livros-sem-a-verdade-sobre-1964.htm?cmpid=copiaecola&cmpid=copiaecola. Acesso em 09/10/18.

[2] Fonte: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2018/10/04/livros-de-direitos-humanos-sao-rasgados-na-biblioteca-da-unb.ghtml. Acesso em 09/10/18.

[3] Antes de continuarmos, é importante ressaltar que a leitura de obras antigas requer atenção a diversos conceitos e ao funcionamento próprio daquela sociedade para que não sejamos anacrônicos. Além disso, mesmo a ideia de História, como disciplina, é muito diferente daquela que temos hoje, bem como os procedimentos de sua escrita, questões que escapam ao espaço deste post. Para mais informações a esse respeito, indicamos a tradução completa e anotada dessa obra, disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/271127/1/Lima_DanielleChagasde_M.pdf.

[4] Mais sobre o autor e outros historiadores romanos em FUNARI, P. P.; GARRAFONNI, R. S. Historiografia: Salústio, Tito Lívio e Tácito. Coleção Bibliotheca Latina. Campinas: Editora Unicamp, 2016.

[5] Tácito escreveu sobre o principado de Nero na obra Anais (Annales), nos livros 13 a 16.

[6] Tácito, A vida de Júlio Agrícola, 2. Tradução do latim de minha autoria. Temos outro testemunho antigo sobre este fato: Suetônio, que escreveu a obra A Vida dos doze césares, também menciona esse ocorrido na biografia de Domiciano.

[7] Trásea Peto foi um senador romano cujo comportamento é lembrado como símbolo da oposição a Nero. Lutou por seus ideais até a morte. Helvídio Prisco foi exilado pelo imperador na mesma época. Para saber mais, indicamos os Anais e as Histórias, de Tácito.

[8] Domiciano não foi o único imperador a agir desta forma. O imperador Tibério também condenara o historiador Cremúcio Cordo, cujos escritos não lhe agradaram; sua obra foi queimada, conforme relatam Tácito (Anais, 4.34-5) e Suetônio (Vida de Tibério, 61.3).

[9] Em diversos momentos e sociedades, livros com discursos diferentes daquele dos regimes vigentes foram incinerados. O caso da biblioteca de Alexandria é bastante conhecido. Durante a Inquisição isso também ocorreu. Em 1933, livros foram queimados durante o Nazismo, na Alemanha. Mais recentemente, em 1973, Pinochet também ordenara queimar livros. Para mais eventos do tipo: https://pt.wikipedia.org/wiki/Queima_de_livros.

[10] Assim Tácito nos conta: Pois, se por quinze anos, um grande espaço de tempo da vida humana, muitos foram mortos por circunstâncias fortuitas e os mais diligentes pela crueldade do príncipe, poucos, por assim dizer, somos não só sobreviventes a outros, mas também a nós mesmos. Fomos arrebatados do meio da vida tantos anos, durante os quais viemos em silêncio, jovens até a velhice, velhos até quase o próprio fim de sua geração. Mas eu não lamentarei ter composto, mesmo com tom grosseiro e rude, a memória da servidão passada e o testemunho dos êxitos do presente (Tácito, A vida de Júlio Agrícola, 3.2).

[11] De Eliane Brum, Como resistir em tempos brutos, aqui: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/08/opinion/1539019640_653931.html.

Literatura, Política e Resistência! Árvore da memória, de Rosmarie Waldrop (introdução e tradução de Marcelo Lotufo)

Rosmarie Waldrop é uma importante poeta norte americana. Nascida na Alemanha pouco antes da Segunda Guerra Mundial, passou sua primeira infância em meio a bombas e doutrinação ideológica nazista. Pequena demais para concordar ou discordar, viu tudo com um certo distanciamento. Adulta, retornou ao tema buscando entender, assim como toda a sua geração, o que se passara na Alemanha de seus pais; como a naturalização do horror nazista fez com que o Holocausto se escondesse atrás da rotina e da burocracia.  Waldrop mudou-se para os Estados Unidos durante o pós-guerra, onde se casou com o também poeta Keith Waldrop. Na América, ela abandonou a língua alemã e passou a escrever em inglês, reforçando o distanciamento que precisava para revisitar o seu passado de forma crítica e consciente.

Ilustração por Pierre Mornet

Parte dos seus poemas versa sobre a necessidade de investigarmos as camadas históricas da nossa sociedade, enfrentando memórias e acontecimentos que preferiríamos ignorar. Em um momento no qual discursos de ódio parecem se normalizar no Brasil, além de um apoiador confesso da tortura e da ditadura militar (algo impensável há alguns anos) liderar as pesquisas para presidência da república, revisitar o passado parece um exercício mais do que necessário; parece um dos únicos caminhos para salvarmos a nossa democracia e repensarmos o pacto democrático que a sustentou desde o fim da ditadura.

Árvore da memória

Rosmarie Waldrop, no livro Split Infinites

Tradução Marcelo Lotufo

 

E EM SEGUNDO LUGAR, na Alemanha

Meu primeiro dia na escola , setembro de 1941, dia show de bola. O tempo não passava, mas era conduzido ao cérebro. Me ensinaram. A saudação nazista, brincar de flautista. Quão firmemente entrincheiradas, as velhas teorias. Já usando papel, caneta e tinta. Sim, eu disse, estou aqui.

Eu tinha seis ou sete anões, a branca era de neve, o príncipe estava em guerra. Hitler no rádio, seguido por Léhar. Sentidos impingiam-se. Apagões, sirenes, colchões no chão, visitantes ou fantasmas furtivos.

E mamãe furiosa. Sirenes. Silvos. O gato. Minha irmã gritou como nunca. Sua amiga. Com medo de olhar. O que eu sabia sobre trabalho forçado ou trabalho de parto? Dos interiores profundos do corpo? Eu tinha aprendido a  andar de bicicleta.

O gato preto. A neve branca, a flor azul. Uma ameaça de uma cor diferente. Movimento uniforme em velocidade inultrapassável. Nada fastidioso. Nada necessário o preenchimento de substâncias no âmago profundo.

Mãe, eu gritei, extremamente. E o lobo. Passando pela neve eu estava dentro de casa em, lã puxada sobre os meus olhos. O lobo. O menino que não gritou ‘olha o lobo’ também morreu. Aberturas crepusculares.

Testa honesta. Cabelos negros. Mãos parcimoniosamente sobre os joelhos. Uma menina polonesa. Na Alemanha? Na guerra? Movendo-se velozmente pelo ar entre nós, uma imagem contínua. Chega de medo de gato preto, sinos (assassinos, ferinos), de sirenes, silvos de bombas.

*

Uma longa vida aprendendo sobre o capítulo anterior. Que minha alma está de calça jeans, minha mãe dando à luz, meu banco de esperanças na Alemanha, leste de expectativas, oeste de ainda esperando. Na cama com um antídoto.

Comendo da árvore. Folhas caindo antes da queda. Por um buraco na memória. A fruta enruga novos problemas, mas não extingue. O pomar há muito abandonado.

(Publicado em https://traducaoliteraria.wordpress.com/2018/10/15/arvore-da-memoria-de-rosmarie-waldrop-introducao-e-traducao-de-marcelo-lotufo/)

O compromisso político de fazer ciência no Brasil hoje

Hoje o dia amanheceu chuvoso em muitas cidades, e aqui em Roma também. Andando pelas ruas, reparei em quantas pessoas carregavam seus guarda-chuvas. Não pude evitar o pensamento: nenhuma delas estava com medo de levar um tiro e morrer por causa do que carregavam. Esse post é em memória de Rodrigo Serrano, brutalmente assassinado no dia 17 de setembro de 2018 pela polícia militar do Rio de Janeiro.

O compromisso político de fazer ciência no Brasil hoje

Quem escolhe ser pesquisador em nosso país (e no mundo todo) acaba se acostumando com o questionamento recorrente sobre a utilidade prática do que faz, do seu trabalho. Nas ciências humanas, esse questionamento é talvez ainda mais frequente porque nossas pesquisas não produzem, na maioria das vezes, resultados imediatos, pragmáticos, mensuráveis pelos parâmetros da sociedade de consumo. Estudar as diversas perspectivas da representação literária ao longo dos anos na literatura brasileira não parece ter o mesmo prestígio que compreender a reprodução de uma bactéria a fim de criar um novo remédio, por exemplo. E por que será que isso acontece? Arrisco um palpite: porque, nessa sociedade, pesquisas que não geram patentes, sobretudo porque não geram lucros, não despertam muito interesse.

Sempre que posso, faço questão de começar meus textos por aí, porque acredito que precisamos lembrar – e relembrar quantas vezes pudermos – que estamos vivendo em uma época em que a formação e a reflexão de tipo humanística correm o risco de cair em desuso. Atualmente, a ideia de trabalho e produção de conhecimento está ligada a valores capitalizados, tecnocráticos, pouco ideológicos ou apolíticos, e, nesse espaço, a maturação de reflexões humanas não tem tempo suficiente para acontecer. Tudo precisa ser rápido e funcional. Já deu para perceber que a conversa é tensa, né? Mas todo esse preâmbulo é para pensarmos juntos como a ideia de produção científica se encaixa nesse contexto – e como fazer ciência, em todas as áreas, principalmente dentro de uma universidade pública, só pode ser entendido como um gesto político.

Nos estudos literários (e talvez posso afirmar que no âmbito das pesquisas sobre linguagem em geral), existe um esforço em se pensar os poderes que estão em disputa. Nosso trabalho muitas vezes se volta à desnaturalização de ideias consolidadas e de pensamentos enraizados em nossa cultura. Nesse sentido, fica difícil imaginar como uma pesquisa desse tipo pode ser considerada apolítica: estamos constantemente exercitando nossa reflexão crítica ao olhar para o mundo e estudar suas diversas manifestações ao longo do tempo.

É por esse caminho que muitos estudiosos pensam na capacidade transformadora que a própria literatura exerce. Escrever seria um gesto de colocar no papel aquilo que precisa ser revisto em nosso mundo e, a partir daí, gerar no leitor um pensamento com potencial para se tornar atitude. Estamos então em um terreno em que a literatura pode ser vista como um espaço público de politização e também de disputa de histórias. Por meio dos livros, seria possível contar uma história que sistematicamente determinadas esferas de poder quiseram (e querem) calar, assim como poderia despertar nos leitores uma reflexão. Ou seja: quanto mais a gente lê, mais a gente se depara com versões diferentes para uma mesma história e dificilmente sairemos dessas leituras da mesma forma que entramos.

Jean Paul Sartre, importante filósofo e escritor francês do século XX, publicou em 1948 o livro Que é a literatura? (Editora Ática, 2004, tradução Carlos Felipe Moisés), no qual discute, após o final da Segunda Guerra Mundial, o que, por que e para quem escrever literatura. Depois das atrocidades cometidas pelos governos fascistas e nazistas nos anos anteriores, Sartre e tantos outros intelectuais voltaram seus pensamentos em direção às ainda possíveis perspectivas de existência humana – e como o ato de pensar e escrever sobre essa existência ainda poderia ter alguma função.

Foto por Daniel Frank.

Sartre defende a ideia de que “através da literatura (…) a coletividade passa à reflexão e à mediação, adquire uma consciência infeliz, uma imagem não equilibrada de si mesma, que ela busca incessantemente modificar e aperfeiçoar” (2004, p. 217). Sua posição parece estar entre dois caminhos já bastante trilhados quando se pensa no fazer literário: a ideia de que a literatura vai salvar a humanidade, despertando-lhe a consciência necessária para isso, mas também a ideia de que essa consciência é infeliz, desequilibrada, mediada, o que significa que não necessariamente ela atingirá seu potencial de conscientização nos indivíduos.

Muito complicado? É mais ou menos pensar que ler não é sinônimo de caráter – há muitos exemplos por aí de gente que já leu muito, mas continua tendo comportamentos questionáveis. E também que nem toda literatura é questionadora e progressista, afinal é também no âmbito literário que versões opressoras da história se consolidam. O ponto principal é que, repito, parece que estamos diante do potencial de reflexão e de crítica que pode emanar da literatura. A ideia de que, com esse esforço de leitura, a coletividade pode tomar conhecimento de si mesma, reconhecer onde estão suas falhas e, a partir daí, buscar modificá-las e aperfeiçoá-las. Em outras palavras, escrever e pensar a literatura como pequenos movimentos de transformação.

O lugar que ocupamos como pesquisadoras e pesquisadores, me parece, passa também por essas mesmas questões. A ideia de produzir ciência, ou seja, de produzir conhecimento, em um país com tantas desigualdades (sociais, econômicas, culturais) como o nosso não deve estar isenta de sua potencialidade de reflexão e de transformação social. Porque são ausências políticas em momentos conturbados como os que estamos vivendo ultimamente que podem criar monstruosidades históricas com as quais certamente não queremos conviver.

E assim chegamos ao Brasil do ano de 2018, onde ainda é preciso debater machismo, racismo, homofobia e tantos outros preconceitos enraizados na nossa história. Esse debate, que perpassa todas as esferas públicas de produção de conhecimento (e por isso também todas as universidades, programas de pós-graduação e institutos de pesquisa), não pode ser diminuído ou silenciado, pois estamos disputando a história que se fará daqui por diante. A reflexão humanística, que deveria ser uma guia aos estudos literários e também às demais ciências, reafirma sua importância nesse processo como aquela que não nos deixa esquecer os momentos em que a humanidade se viu ameaçada por seu próprio desenvolvimento e capacidades destrutivas. Posicionar-se politicamente em todas as esferas que nos cabem é então reconhecer a função pública que cada indivíduo carrega em si e estimular a reflexão crítica em todas as frentes imagináveis. Resistir em todos os espaços que ocupamos: esse é o compromisso científico e político do qual não podemos nos isentar.

 

A universidade para além de seus muros: estudos de poesia italiana fora da Academia, por Helena Bressan

O blog Marca Páginas recebe hoje a contribuição de Helena Bressan Carminati (helenabcarminati@gmail.com), estudante de Letras-Italiano da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Por conta da minha própria pesquisa de doutorado, entrei em contato com um grupo de estudos chamado NECLIT (Núcleo de Estudos Contemporâneos de Literatura Italiana), da UFSC. Sempre admirei o trabalho deles e fiquei ainda mais feliz quando soube que lá também tem gente pensando em formas de transpor as barreiras acadêmicas que, muitas vezes, nos seguram dentro das universidades. Então, quando conversei com a Helena, foi natural convidá-la para dividir aqui no blog seu depoimento sobre o projeto de extensão Geografia e Cultura Italiana por meio da Poesia, que busca discutir poesia com quem não está necessariamente ligado à universidade (um assunto sempre considerado muito difícil por quase todo mundo, mas que é ao mesmo tempo uma das formas mais maravilhosas que o ser humano encontrou para se expressar). Os resultados são incríveis e agradeço muito a oportunidade de compartilhá-los aqui. Esse projeto merece ser conhecido e nos inspira a continuarmos nossos trabalhos de divulgação dos estudos literários. Agradeço a Helena e a equipe NECLIT. E que nunca nos falte poesia!

A universidade para além de seus muros: estudos de poesia italiana fora da academia, por Helena Bressan Carminati

Quando conheci a Cláudia, pelas redes sociais, começamos a conversar e ela me convidou, muito gentilmente, para escrever a respeito do projeto Geografia e Cultura Italiana por meio da Poesia. De imediato, fiquei empolgadíssima e comecei a pensar sobre isso. O que teve início como um projeto de extensão, em 2016, deu origem a um minicurso na XII Semana Acadêmica de Letras da UFSC, em 2018, e gostaria então de compartilhar com vocês um pouco dessa minha experiência.

Em 2016, com o apoio do Edital PROBOLSA/UFSC e a coordenação da Professora Patricia Peterle, do departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da UFSC, o objetivo principal do projeto era oferecer um panorama da geografia e da cultura italiana para a comunidade não acadêmica, buscando ampliar o conhecimento de aspectos relativos à cultura e à língua italiana e disseminar a poesia italiana contemporânea. Tivemos a ideia então de trabalhar esses conteúdos a partir de poemas selecionados para que pudéssemos apresentar, ao mesmo tempo, alguns poetas, as características de suas poesias e também algumas cidades italianas que os inspiraram a escrever. Assim, o público alvo era composto principalmente por pessoas que tinham interesse pela literatura, língua ou cultura italianas, mas que não necessariamente estavam vinculadas a universidades ou ao meio universitário. Naquele momento, tínhamos justamente a intenção de divulgar a poesia italiana para pessoas de fora desses contextos, por isso propusemos um projeto de extensão que, por definição, tenta transpor os muros da universidade e compartilhar os conhecimentos que são produzidos dentro da academia.

Os módulos do projeto aconteceram a cada 15 dias, nos meses de junho, agosto, setembro e outubro daquele ano, e foram organizados e ministrados por duas ou três pessoas, no Círculo Ítalo Brasileiro (CIB), no centro de Florianópolis. Cada módulo teve duração de 4 horas e foi estruturado da seguinte forma: introdução sobre um autor e sua poesia, suas principais características, a cidade escolhida como tema dos poemas, de forma a situarmos o público em relação ao que estávamos tratando, além da leitura da versão italiana e da tradução dos poemas selecionados (geralmente, dois poemas por módulo) para, em seguida, propor uma discussão em conjunto (ministrantes e participantes), acompanhada finalmente da análise dos poemas. A análise era enfim um dos momentos mais interessantes e importantes do módulo, pois quem o estava ministrando procurava deixar a participação do público bastante livre, enfatizando sempre que a análise e a interpretação de poesia estão sujeitas a novos olhares e a diferentes possibilidades de leitura, principalmente se mantivermos em mente que não há apenas uma resposta correta para as perguntas que surgem durante esse processo.

Acredito que esse foi um dos fatores essenciais que contribuíram para que tivéssemos um feedback positivo por parte dos participantes, pois eles percebiam que, mesmo não estando na universidade e/ou não estudando aquele determinado assunto, tinham capacidade de fazer suposições, dar suas opiniões, analisar os poemas e se expressar para um grupo maior sobre um tema geralmente temido pela maioria das pessoas, como é a poesia. Era um momento de troca, em que falávamos e escutávamos o que todos tinham para compartilhar.

Estabelecer relações entre a geografia e a cultura italiana, partindo da leitura de textos poéticos, foi e continua sendo desafiador por alguns motivos. Um deles talvez seja o de tirar o texto literário da sala de aula e ver como ele pode falar e ser recebido por leitores menos especialistas, mas com sensibilidades diferentes, visto que pensar a geografia e a poesia de uma cidade implica também pensar a sua própria cultura, os habitantes que nela vivem e seus comportamentos. Também por isso os participantes se mostravam tão interessados, pois, ao mesmo tempo em que mostrávamos a eles realidades diferentes, a todo momento relacionávamos aquilo ao nosso contexto aqui no Brasil. Por exemplo, no primeiro minicurso sobre a Roma da poeta Patrizia Cavalli, discutimos sobre as diferentes concepções de praça para um italiano e para um brasileiro, o que gerou pensamentos e argumentos bastante interessantes e diversificados. Um deles foi que aqui no Brasil temos a praça como um espaço público utilizado para lazer, geralmente bastante arborizado, com bancos, parques para crianças, enquanto que na Itália a praça constitui-se historicamente como um lugar de fala, um espaço de lutas em que são feitas as manifestações políticas, e, em sua maioria, possuem fontes ou monumentos em seu centro, também como uma forma de criar aquele ambiente que faz parte da vida social dos cidadãos. Assim, pudemos dialogar a respeito dessas diferenças que fazem de cada país um lugar particular.

Para que esse tipo de diálogo com o público fosse possível, escolhemos algumas cidades já conhecidas, e também outras um pouco menos, como foi o caso da Milão periférica do escritor Milo de Angelis, que escreveu poemas a partir de sua experiência como professor no Presídio de Segurança Máxima de Milão, chamado Opera. Para escolher tais autores, fizemos um mapeamento de poetas que no século XX e XXI trataram e tratam em seus textos da cultura local, do espaço urbano, das periferias, e acabamos escolhendo Patrizia Cavalli, Giorgio Caproni, Franco Fortini, Milo de Angelis e Umberto Saba e as respectivas cidades de Roma, Gênova, Florença, Milão e Trieste.

As ministrantes dos módulos eram alunas de graduação e pós-graduação da UFSC que aceitaram fazer parte desse projeto, o qual tinha ainda uma bolsista principal responsável pela organização geral dos módulos. Além disso, destaco a importância de um projeto de extensão como esse e tantos outros que acontecem nas universidades e que permitem para a comunidade fora das universidades o acesso a diferentes conteúdos ditos “acadêmicos”, a divulgação das pesquisas científicas feitas pelos alunos e o contato com pessoas diferentes, possibilitando criar diálogos fora da Academia, o que é tão relevante no momento que vivemos hoje.

Fazer parte desse projeto me fez enxergar possibilidades de uma vida acadêmica fora da “Academia” e, mais, me fez perceber que todo o conhecimento produzido por nós estudantes se torna muito mais interessante quando compartilhado. Apresentar a poesia italiana para um público não universitário foi desafiador e gratificante, pois ao mesmo tempo em que eu estava ali para transmitir conhecimento, nossos encontros eram uma grande troca. O público percebeu que poderia estudar poesia e compreendê-la, pois a palavra poética toca a alma humana, e foi exatamente isso que tentamos fazer ao propor esse projeto. Nesse sentido, acredito que o movimento de ir além dos muros da universidade é essencial para ultrapassarmos limites e partilharmos os conhecimentos.

 

Vai ter Racionais na universidade sim! Entrevista com Alan Osmo

Quem tem acompanhado a imprensa e as redes sociais nas últimas semanas certamente viu uma novidade que movimentou as discussões na área dos estudos literários: o álbum Sobrevivendo no inferno (1997), do grupo de rap Racionais MC’s, passou a fazer parte do vestibular da Unicamp. A inclusão desse álbum na lista de leituras obrigatórias mexe com muitos pressupostos, teóricos e sociais, e traz tanto para as escolas, quanto para as universidades, questões que são importantíssimas de serem debatidas.

É interessante pensar que o rap também vem sendo estudado na academia e, para falar sobre isso, convidei Alan Osmo para uma entrevista. Ele gentilmente aceitou o convite e se dispôs a partilhar conosco aqui no blog seu ponto de vista sobre o assunto. Alan é graduado em Psicologia e em Letras pela USP e é mestre em Psicologia, também pela USP. Atualmente, faz doutorado no programa de Teoria e História Literária do IEL-Unicamp, com a pesquisa “A literatura tomada de assalto: testemunho e resistência em produções periféricas de São Paulo”, sob orientação do Prof. Márcio Seligmann-Silva.

Marca Páginas: A Comvest, comissão que organiza o vestibular da Unicamp, anunciou recentemente a inclusão do álbum Sobrevivendo no inferno na lista de leituras obrigatórias do vestibular 2020. Essa atitude abre precedentes para uma série de mudanças, como a ruptura de certas barreiras sociais que isolariam o rap nas periferias, o qual passa a ser acolhido em ambientes escolares e acadêmicos historicamente ocupados pelas classes média e alta. Que tipo de impacto você acredita que uma ação como essa pode ter na nossa sociedade?

Alan Osmo: Acho importante destacar que o rap, assim como o funk, é bastante ouvido em diversas classes sociais, não ficando, portanto, restrito apenas às periferias. No caso especificamente do Racionais MC’s, é bastante curioso que, mesmo entre os “playboys” (que são tematizados em diversas canções), há também muitos fãs do grupo. Acredito que o rap e o Racionais não estejam isolados na periferia, pois já possuem uma grande circulação social. Mas é claro que, pelo fato de se tratar de produções que vêm das periferias e, mais importante, de vozes que afirmam uma identidade negra e periférica, elas são vistas por parcela da sociedade, principalmente das elites, com uma série de preconceitos. Nesse sentido, cabe destacar que os ambientes escolares e acadêmicos no Brasil historicamente foram bastante fechados a produções de cultura popular, principalmente àquelas de matrizes afro-brasileira e indígena. Ao levarmos em conta que o Brasil era até poucas décadas atrás um país predominantemente analfabeto, aquilo que era considerado literatura nos ambientes escolares e acadêmicos, com raras exceções, se restringia ao que era produzido por pessoas que tinham certa circulação dentro de uma elite branca das grandes cidades, que tinham contato com o que estava sendo produzido na Europa no campo das artes e da literatura. Desse modo, a visão da literatura também passou de alguma forma a ser marcada e valorizada pelos padrões que eram definidos na Europa. Enquanto isso, no Brasil, toda uma tradição riquíssima de cultura popular, que se manifestava sobretudo na música e na dança, era desvalorizada como não sendo um objeto digno de ser estudado nas escolas e universidades. Acredito que essa escolha do disco do Racionais é uma iniciativa (ainda tímida, é verdade) no sentido de tornar aquilo que é estudado nas escolas e universidades um pouco mais representativo da diversidade brasileira e da complexidade de nossa realidade social.

Mano Brown, compositor e cantor do Racionais MC’s. Fonte: Instagram.

Marca Páginas: Ainda sobre a decisão da Comvest, vimos que muita gente questionou a credibilidade dessa inclusão, seja pela temática, que desagrada um público mais conservador, seja pela forma, já que música pode não ser vista como literatura de acordo com certa crítica tradicional. Na sua opinião, a presença desse álbum na lista de leituras obrigatórias abala as discussões dentro da academia? De que maneira o rap tem sido recebido e pesquisado nas universidades brasileiras?

Alan Osmo: É importante não deixarmos de ter um ponto de vista crítico em relação ao vestibular – à forma como ele determina aquilo que é estudado nas escolas, e ao fato de ele funcionar como um filtro social de quem vai estudar nas universidades públicas. Nesse sentido, a inclusão de uma obra que traz uma voz que representa uma parcela da população que não costuma ser abarcada sob aquilo que se legitima como “literatura” é ainda uma mudança tímida. É importante considerarmos também o novo contexto das universidades públicas, com as cotas sociais e raciais. Os alunos das universidades públicas agora representam um pouco mais a diversidade da população brasileira. Além disso, uma parcela de jovens que historicamente se viu privada de cursar o ensino superior passou a estudar em locais que antes eram quase que restritos a pessoas brancas de classe média e alta. Com uma mudança do perfil dos alunos das universidades públicas, acho compreensível o questionamento daquilo que é estudado e pesquisado nessas universidades. No caso de um curso de Letras ou Estudos Literários: por que se estudam tão poucos autores africanos, autores negros, autores indígenas? Na minha opinião, as críticas que são feitas sobre a inclusão da obra do Racionais na lista do vestibular, seja usando o argumento da temática das canções, seja usando o argumento de que se trata de música e não de literatura, partem de um ponto de vista conservador. Ora, a temática do disco do Racionais é sobretudo a violência da sociedade brasileira na década de 1990, o cotidiano vivido na periferia de uma grande cidade no Brasil, as terríveis desigualdades que geram verdadeiros abismos entre parcelas da população, o racismo e a violência policial voltados principalmente a jovens negros da periferia. Se essa temática choca, é porque nossa realidade social é chocante. Querer ignorar esses temas, estudando apenas autores que abordam outros assuntos, é também querer ignorar algo que marca profundamente a realidade social em que vivemos. E é importante destacar que a obra do Racionais aborda esses temas partindo do ponto de vista do negro morador da periferia, um ponto de vista que costuma ser bastante ignorado e silenciado por aquilo que tradicionalmente se considera “literatura”. Também considero conservador o ponto de vista que vê uma divisão nítida entre música e literatura, de modo que uma canção não possa ser vista como uma poesia. Se pegarmos a distinção de gêneros estabelecida na Grécia Antiga entre a poesia lírica, épica e dramática, a poesia lírica era aquela que era cantada e acompanhada de instrumentos musicais (o nome lírica vem do fato de ela ser acompanhada pela lira). Mesmo se pegarmos do ponto de vista de uma história da literatura mais tradicional, diversos poemas foram inicialmente feitos para ser musicados, ou então foram musicados em um período posterior. Pelo fato de um poema ser acompanhado de música, ele deixa de ser literatura? No Brasil, há toda uma tradição de canção popular que é riquíssima do ponto de vista poético e acredito ser uma grande perda para a área dos estudos literários ignorá-la. No caso do rap, é interessante destacar também que as letras que compõem o nome rap são frequentemente associadas a rhythm and poetry – ritmo e poesia. É característico desse gênero o destaque para aquilo que é falado, de modo a se enfatizar a parte poética da canção. Além disso, o rap já vem sendo objeto de diversas pesquisas acadêmicas no Brasil (principalmente em mestrados e doutorados) em distintas áreas do conhecimento: ciências sociais, geografia, educação, canção brasileira, estudos literários, linguística aplicada… Ainda assim, é bastante frequente uma certa resistência para se estudar o rap na área de estudos literários. Dificilmente é um assunto que vai ser abordado num curso de literatura brasileira, por exemplo. Torçamos para que essa inclusão da obra do Racionais na lista do vestibular da Unicamp contribua para mudar um pouco isso.

Marca Páginas: “Capítulo 4 Versículo 3” escancara a realidade das periferias da cidade de São Paulo: “60 por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais / Já sofreram violência policial”. Depois de mais de 20 anos do lançamento do álbum, de que maneira você acha possível falar sobre esse assunto? Em sua pesquisa de doutorado, como você aborda a questão da representação dessa realidade?

Alan Osmo: A forma como esses e os outros dados são apresentados no início da canção “Capítulo 4 Versículo 3” é muito interessante. São dados reais, objetivos, que poderiam estar sendo apresentados em um jornal ou na televisão. Além disso, são dados escandalosos que escancaram a violência e o racismo que caracterizam nossa sociedade. Mas o curioso é que esses dados não têm repercussão, ou não repercutem da forma como deveriam, isto é, na grande mídia e na elaboração de políticas públicas pelo governo. O racismo continua sendo negado por parcela da sociedade que acredita no mito da “democracia racial” e a violência segue sendo vista de forma simplista, como se fosse um problema de bandidos versus mocinhos. É impressionante também que esses dados apresentados na canção desse disco de 1998 seguem extremamente atuais, mesmo 20 anos depois: essas estatísticas mudaram muito pouco, ou inclusive pioraram. Seguimos com uma taxa elevadíssima de homicídios, principalmente de jovens negros. Seguimos com abordagens policiais violentas nas periferias, tendo como alvo sobretudo jovens negros, de modo que ao ouvirmos isso na canção, hoje, somos lembrados de que essa realidade pouco mudou. É como se o Racionais, na canção, jogasse na cara como nossa sociedade é hipócrita e segue ignorando esse problema, ou ao menos segue não sendo efetiva para mudar essa realidade de injustiça. Nesse sentido, cabe destacar que a canção do Racionais se insere em um contexto de luta política, sendo a música também vista como um instrumento de transformação social. Por meio do rap, são denunciadas injustiças e são reivindicadas mudanças. Por isso eu me interessei pelo Racionais, para pensar a violência no Brasil no período que se inicia na democratização pós-ditadura militar e segue até hoje. As décadas de 1980 e 1990, sobretudo, podem ser caracterizadas por um contexto de crescimento das desigualdades sociais; crescimento desordenado das grandes cidades, com condições de moradia precárias, falta de saneamento e uma quase ausência de serviços públicos; a consolidação de um mercado ilegal altamente lucrativo das drogas; e uma política sem sentido por parte do Estado de guerra às drogas. Nesse contexto, houve um grande crescimento dos índices de homicídio. É possível pensar também que, apesar de a ditadura militar oficialmente ter acabado em 1985, o aparato repressor continuou muito forte e presente, agindo sobretudo na população negra e periférica. Acredito que o Racionais, em suas canções, fala de forma eloquente sobre esse contexto. O primeiro disco do grupo, lançado em 1990, chama-se Holocausto urbano. Ou seja, logo de início eles se propuseram a falar sobre um verdadeiro extermínio que atinge parcela da população nas grandes cidades. É importante destacar que essa violência atinge de forma extremamente desigual a sociedade. Na cidade de São Paulo da década de 1990, por exemplo, enquanto havia bairros com índices de homicídio comparáveis aos dos países da Escandinávia, ou seja, baixíssimos, em outros bairros os índices eram comparáveis às regiões mais violentas do mundo. Acredito que as canções do Racionais testemunham sobre essa realidade de violência, fazendo isso a partir de um ponto de vista do jovem negro da periferia.

Marca Páginas: Por último, podemos dizer que a lista de leituras para vestibulares é uma grande influenciadora do que os jovens brasileiros leem. Em geral, o movimento é que uma obra seja cobrada pelos vestibulares e que, a partir disso, passe a integrar os materiais didáticos e a terem sua leitura cobrada em sala de aula. No caso do álbum do Racionais MC’s, porém, é possível que presenciemos, pela primeira vez, o caminho inverso; isto é, muitos jovens possivelmente já escutam e gostam da obra, independentemente da obrigatoriedade escolar. De que maneira você acredita que esse movimento inverso pode desempenhar um papel diferencial na formação desses jovens? Se pensarmos na representatividade que o rap carrega consigo, você acha que os jovens podem sentir sua realidade contemplada pelos conteúdos escolares e, consequentemente, pelo próprio vestibular?

Capa do álbum Sobrevivendo no Inferno

Alan Osmo: Eu concordo bastante com sua colocação. É muito frequente que a “literatura” ensinada nas escolas seja vista pelos jovens como algo distante e descolado de sua realidade. Desse modo, pode ser difícil se interessar por algo que diga pouco a respeito da realidade em que você vive, que fale de personagens com os quais você não se identifica, enfim, que fale de um contexto que se distancie muito, seja temporalmente, seja espacialmente daquele em que você se insere. Como consequência, a “literatura” pode acabar sendo vista como uma coisa chata e difícil. Pelo fato de muitos jovens já conhecerem e se interessarem pelo Racionais MC’s, é possível que seja um assunto mais fácil de ser abordado em sala de aula. Além disso, esses jovens podem se surpreender com o fato de que aquilo que é falado nas canções que eles gostam também pode ser considerado “literatura” e que, portanto, a “literatura” pode ser interessante e dizer respeito a algo próximo da realidade em que vivem. Além disso, há, nas canções, o ponto de vista do negro morador da periferia que dificilmente aparece em obras que se costumam estudar nas salas de aula. Isso pode propiciar que os jovens se identifiquem com os personagens de que falam as canções.

Marca Páginas: Antes de terminar, você gostaria de acrescentar mais alguma informação?

Alan Osmo: Eu gostaria apenas de destacar a importância da canção “Diário de um detento”, presente no disco Sobrevivendo no inferno, ainda mais em nosso contexto de hoje. De 1998 para cá, a população carcerária no Brasil aumentou de forma significativa, de modo que hoje o Brasil possui uma das maiores populações carcerárias do mundo. A canção “Diário de um detento” tem muita importância por falar da realidade de um presídio a partir do ponto de vista de um detento. Além disso, a canção é uma das mais importantes produções feitas sobre o Massacre do Carandiru, de 1992, em que pelo menos 111 presos foram brutalmente assassinados pela polícia militar. Já se passaram mais de 25 anos desse fato, mas ele segue sendo uma ferida aberta em nossa sociedade. No início de 2017, vimos novos massacres em diversos presídios no Brasil, em que pelo menos 133 pessoas foram mortas em 15 dias. Recentemente, no final de 2016, o julgamento que havia condenado os policiais militares envolvidos no Massacre do Carandiru foi anulado. Depois dessa decisão, o caso vai voltar para o tribunal do júri, para ser julgado novamente desde o início. Caso crimes como o do Massacre do Carandiru não sejam julgados, tendo seus fatos esclarecidos e punindo os responsáveis, podemos sempre recear que crimes parecidos voltem a acontecer. A pergunta feita no final da canção do Racionais – “Mas quem vai acreditar no meu depoimento?” – continua em aberto, lembrando que os sobreviventes e familiares das vítimas do Massacre do Carandiru ainda não tiveram o devido reconhecimento e reparação pelo crime que ocorreu.