Sete livros infantis que falam da morte

No noticiário da TV, nos desenhos animados, nos jogos eletrônicos… O tema da morte está muito próximo das crianças. Apesar disso, muitas vezes, os adultos criam um silêncio quando se trata de conversar sobre esse tema com os pequenos. Sem dúvidas, esse não é um assunto fácil, pois envolve um sentimento de vulnerabilidade e também a nossa ignorância diante do desconhecido. No entanto, a morte é parte inevitável da vida e refletir sobre a morte pode até nos oferecer um sentido para a nossa existência [1]. Essa reflexão não precisa ocorrer apenas quando uma criança passa por uma perda: uma conversa sobre o assunto pode partir da leitura de um livro

Neste texto, apresento sete livros infantis que abordam o tema da morte, cada um de um jeito diferente. Há livros que tratam do assunto de um modo mais filosófico e outros que recorrem até ao humor.

Se você quiser saber mais sobre como e por que falar sobre a morte com crianças, recomendo que ouça o episódio “Precisamos falar sobre a morte (com as crianças)”, do podcast Oxigênio. Nesse episódio, as psicólogas Lucélia Elizabeth Paiva e Maria Júlia Kovács dão orientações sobre como essa conversa pode acontecer. A biblioterapia – o uso de textos literários com a finalidade de ajudar uma pessoa a enfrentar uma dificuldade – foi apontada como um dos caminhos para estabelecer essa conversa. Também nesse episódio, a Márcia Abreu, que é pesquisadora e professora de literatura, falou sobre um livro para crianças que ela acabou de lançar e que aborda o tema da morte. Inclusive, esse livro está indicado na lista abaixo.

Ouça o episódio e inspire-se na lista para iniciar uma conversa sobre esse tema com uma criança. Também compartilhe esse conteúdo com quem tem contato com crianças: familiares, professores, profissionais da saúde… Ou, simplesmente, aproveite para conhecer sete livros que proporcionam reflexões fundamentais para crianças e adultos.

1. A árvore das lembranças
Capa do livro “A árvore das lembranças”

 

A alemã Britta Teckentrup é a escritora e a ilustradora desse livro delicado tanto nas palavras quanto nos traços. Um dia, uma raposa, que teve uma vida longa e feliz, foi até o seu cantinho preferido da floresta, deitou-se e dormiu para sempre. Os amigos dela se reuniram em volta de seu corpo e começaram a contar histórias vividas com ela no passado.  A coruja, o rato, o urso, o coelho e o esquilo… Cada um tinha uma lembrança da ternura e da generosidade da raposa; eram lembranças que faziam todos sorrirem. E cada história contada dava forças para uma plantinha laranja, que brotou bem no lugar onde a raposa tinha se deitado. Essa plantinha ia crescendo e ficando mais bonita, até se transformar em uma árvore. Quem essa árvore das lembranças pode abrigar e o que ela pode representar? Essas são questões que aparecem no livro.

“A árvore das lembranças” nos mostra o valor das memórias: mesmo que não convivamos mais, no nosso cotidiano, com um ser que morreu, podemos manter um vínculo afetivo com ele, por meio das lembranças e do compartilhamento delas.

A cada lembrança compartilhada, a plantinha laranjada ia crescendo…

 

Espiada nas primeiras páginas:

“Era uma vez uma raposa que vivia na floresta com os outros animais.
Ela levara uma vida longa e feliz, mas estava ficando cansada. 
Bem devagar, ela foi até seu cantinho favorito na clareira.
Olhou para sua adorada floresta pela última vez e se deitou. 
Fechou os olhos,
respirou fundo
e caiu no sono
para sempre.”

Título: A árvore das lembranças
Texto e ilustração: Britta Teckentrup
Tradução: Marília Garcia
Editora: Editora Rovelle
Ano: 2014 (edição original de 2013)

2. O jabuti e a siriruia: o ciclo da vida
Capa do livro “O jabuti e a siriruia: o ciclo da vida”

 

Escrito pela Márcia Abreu e ilustrado pelo Bira Dantas, esse livro conta a história da amizade entre um jabuti – um animal que pode viver cerca de cem anos – e uma siriruia (também conhecida como aleluia), um inseto que vive apenas um dia. Esses dois se encontram e, apesar das várias diferenças entre eles, acabam se tornando grandes amigos e vivendo uma aventura que dura o breve tempo de vida da siriruia, mas que consegue mudar a forma como o jabuti se enxerga e enxerga o mundo. O livro aborda temas sensíveis – como velhice, solidão, abandono, deficiência e morte – de uma forma honesta, sem dar uma resposta pronta sobre esses assuntos, mas também sem deixar a criança desamparada ao final da história. Publicado pelo Estralabadão, o selo de divulgação científica para crianças da Editora UFMG, o livro ainda traz informações científicas sobre os animais protagonistas da história.

A siriruia toda animada e o jabuti recuperando o fôlego para acompanhar a nova amiga

 

Espiada nas primeiras páginas:

“ – Melhor eu ir até a mangueira – disse o jabuti, piscando muito para segurar uma lágrima e andando num passo mais rápido do que o normal. 
Em geral, ele não tinha pressa para nada. Nem para falar, nem para pensar. Muito menos para tomar uma decisão. Mas agora estava resolvido: iria até a mangueira e não sairia mais de lá.
Ele vivia naquele sítio há pouco mais de cem anos e seu lugar preferido era debaixo da mangueira, na curva do riacho. Em passo de gente, o caminho até lá levaria uns trinta minutos, em passo de criança contente, uns vinte. Mas para o jabuti aquela caminhada poderia levar o dia todo. Ele andava len – ta – men – te e tinha tempo de observar tudo ao seu redor…”

Título: O jabuti e a siriruia: o ciclo da vida
Texto: Márcia Abreu
Ilustração: Bira Dantas
Editora: Editora UFMG (Estraladabão, selo de divulgação científica para crianças)
Ano: 2021

3. O pato, a morte e a tulipa
Capa do livro “O pato, a morte e a tulipa” (edição em inglês)

 

O livro foi escrito e ilustrado pelo prestigiado artista alemão Wolf Erlbruch, ganhador de diversos prêmios, como o Hans Christian Andersen e o Bologna Ragazzi. “O pato, a morte e a tulipa” conta a história de um pato que se dá conta de que está sendo acompanhado pela morte – um ser gracioso, ainda que com uma cabeça de caveira, que usa uma bata xadrez e que carrega (em vez de uma foice) uma tulipa. Os dois personagens acabam desenvolvendo uma relação de companheirismo e conversam, inclusive, sobre o que aconteceria após a morte, sem, contudo, chegar a uma conclusão definitiva.

O pato e a morte se tornam amigos

 

Espiada nas primeiras páginas:

“Fazia um tempo que o Pato tinha um pressentimento.
‘Quem é você? O que você está fazendo, rastejando atrás de mim?’
‘Bom, você finalmente me notou. Eu me chamo Morte’
O Pato congelou de medo, e quem poderia culpá-lo?
‘Você veio me buscar?’
‘Oh, estive por perto toda a sua vida – para o caso de acontecer alguma coisa.’
‘Que coisa?’ perguntou o Pato.
‘Um resfriado forte, um acidente – nunca se sabe.’” [2]

Título: O pato, a morte e a tulipa
Texto e ilustração: Wolf Erlbruch
Ano: 2007 (edição original)
Há uma edição brasileira, da Cosac Naify, publicada em 2009. Porém, ela está esgotada.

Há também uma adaptação desse livro em um curta-metragem de animação, dirigido por Matthias Bruhn, com cerca de dez minutos. Os desenhos do filme são bem parecidos com as ilustrações do livro. Uma versão desse curta, legendada em português, pode ser assistida no YouTube.

4. Sete histórias para sacudir o esqueleto
Capa do livro “Sete histórias para sacudir o esqueleto”

 

A mineira Angela-Lago, escritora e ilustradora consagrada no Brasil e fora daqui, recontou nesse livro sete histórias – ou causos – que seu pai havia lhe contado, mas que também poderiam ter sido contatadas por muitos de nossos avós, bisavós ou tataravós. As histórias falam sobre assombrações, cemitérios, mortos (verdadeiros ou fingidos), mas tudo com uma dose de graça. Os traços das ilustrações são “tremidos”: como se desenhados com medo? E os números das páginas estão escondidos no meio das ilustrações… Repare no rabinho de um dos bodes desenhados no livro. No fim, a autora presenteia os leitores com essas histórias: “Agora elas são suas. Aumente um ponto. Ou dois. Ou três. Espere uma noite de trovoada ou, pelo menos, apague a luz… E conte!”. Apagar a luz é realmente uma boa sugestão, além de ajudar a criar um clima para as histórias, torna as ilustrações, desenhadas em tons metálicos, mais brilhantes e vívidas.

Enquanto dançava, o esqueleto se despedaçava

 

Espiada nas primeiras páginas:

“A viúva estava na cozinha com o filho, contando feliz o dinheiro que tinha encontrado debaixo do colchão, quando o marido, falecido fazia meses, apareceu e veio sentar-se à mesa com eles. A mulher não se intimidou: 
– O que é que você está fazendo aqui, seu miserável?! Me dá paz! Você está morto! Trate de voltar para debaixo da terra.
– Nem pensar – disse o morto. – Estou me sentindo vivinho.” (Começo da história 7: “Dançando com o morto”)

Título: Sete histórias para sacudir o esqueleto
Texto e ilustração: Angela-Lago
Editora: Companhia das Letrinhas
Ano: 2002

5. Menina Nina: duas razões para não chorar
Capa do livro “Menina Nina: duas razões para não chorar”

 

O consagrado ilustrador e escritor Ziraldo começa essa história no dia do nascimento de Nina, “a menina que fez Vivi virar avó”. A primeira parte do livro é recheada de aliterações, com a presença marcante do som da letra “V” (como já dá para perceber no trechinho acima). Nessa parte, conhecemos um pouco da história de vovó Vivi e de sua relação com a neta. Essa parte dura até quando, um dia, a vovó Vivi dorme e não acorda mais. Depois disso, ficamos conhecendo algumas dúvidas e angústias da garotinha: “Vovó, você nunca disse que ia embora assim, sem dizer adeus. […] Vovó, e os meus segredos? Pra onde você levou? […] Vovó, eu não posso mais abraçar as suas pernas, não posso beijar o seu rosto, não posso pegar sua mão…”. A segunda parte do livro é como uma conversa com Nina, momento em que são apresentadas as “duas razões para não chorar”, presentes no subtítulo do livro: SE, depois da morte, não existir mais nada, se tudo “acabar de vez”, a vovó estará em paz; ela não sabe nem vai saber que está dormindo para sempre. Ela não estará sofrendo. SE ela despertar em outro mundo, “feito de luz e estrelas, veja, Nina, que barato!! Que lindo virar um anjo. Que lindo voar no espaço”. Apresentando essas possibilidades, sem escolher alguma delas, o narrador conclui que “dos dois jeitos desse adeus é que a gente inventa a vida”. 

A vovó Vivi do livro foi baseada em Vilma Gontijo, que foi esposa de Ziraldo. Dois anos depois da morte de Vilma, Ziraldo escreveu esse livro, como forma de confortar seus netos, seus filhos e a si próprio, além de fazer uma homenagem à companheira [3]. Além disso, no livro, Ziraldo incorpora desenhos que sua neta Nina fez aos nove anos, como é o caso da galinha de biquíni que aparece na imagem abaixo.

A galinha de biquíni desenhada por Nina incorporada às ilustrações de Ziraldo

 

Espiada nas primeiras páginas:

“Menina Nina amava Vó Vivi, que amava sua menina. A vovó, ao ver a Nina pelo vidro do berçário, pulava feito menina em festa de aniversário (vovó era mais menina do que a neta que nascia).
Se Nina visse a vovó lá do fundo do seu berço e já pudesse entender a vida que aqui se vive (do lado de cá do vidro), a Nina iria aprender o que é felicidade.
Vovó estava feliz com a chegada da Nina – a menina que fez Vivi virar vovó.”

Título: Menina Nina: duas razões para não chorar
Texto e ilustração: Ziraldo Alvez Pinto
Editora: Melhoramentos Ltda.
Ano: 2002

6. O guarda-chuva do vovô
Capa do livro “O guarda-chuva do vovô”

 

O livro foi escrito por Carolina Moreyra e ilustrado por seu marido, Odilon Moraes,  vencedor do prêmio Jabuti de Ilustração. Narrado por uma garotinha, o livro conta a história de um avô que “morava na casa da vovó”. Ele vivia no seu quarto, não gostava de bolo de chocolate nem de barulho. Em um dia, a menina achou que ele, deitado em sua cama, estava encolhendo. Em outro dia, ele já não estava mais na “casa da vovó”… O guarda-chuva do vovô, por acaso “herdado” pela garotinha, ganha um significado nessa relação antes distante e também muda o significado que menina dá para os dias chuvosos.

O vovô estava encolhendo?

 

Espiada nas primeiras páginas:

“O vovô morava na casa da vovó. A casa da vovó ficava longe. Às vezes eu ia até lá fazer uma visita e matar a saudade. A vovó fazia bolo de chocolate para o lanche e então chamávamos o vovô. Mas ele nunca vinha. O vovô não gostava de bolo de chocolate e nunca abria a janela do quarto.”

Título: O guarda-chuva do vovô
Texto: Carolina Moreyra
Ilustração: Odilon Moraes 
Editora: DCL
Ano: 2008

7. Pode chorar, coração, mas fique inteiro
Capa do livro “Pode chorar, coração, mas fique inteiro”

 

Dois dinamarqueses, Glenn Ringtved e Charlote Pardi são o escritor e a ilustradora desse livro. Quatro crianças servem cafezinho atrás de cafezinho para a Morte: elas querem ganhar tempo, para que essa figura não leve embora sua avó, já bem doente. Mas não teve jeito, chegou a hora de a morte cumprir sua missão. Antes que pudesse se levantar, porém, ela foi interrogada por uma das crianças “Dona Morte, por que a nossa vovó tem que morrer, se ela é a pessoa que a gente mais ama no mundo?”. Também triste com a situação, a morte – que não tem um coração seco como um pedaço de carvão, mas sim um bem vermelho que bate por ter “um amor imenso pela vida” – resolveu contar uma história para as crianças… A história do encontro dos irmãos Sofrimento e Desconsolo com as irmãs Alegria e Risada. O Sofrimento e a Alegria se apaixonaram, assim como o Desconsolo e a Risada; os casais descobriram que não podiam mais viver um sem o outro. A Morte contou essa história para as crianças e disse que assim também acontecia com a  vida e com a morte: “Que valor a gente daria à vida se não existisse a morte? Quem ficaria feliz com o sol, se nunca chovesse?”. Depois disso, as crianças viram que não deviam tentar impedir a morte. Elas ficaram, sim, muito tristes com a morte da avó, mas não se esqueceram da história que ouviram, muito menos dos momentos com a avó.

Os dois casais: Sofrimento e Alegria; Desconsolo e Risada

 

Espiada nas primeiras páginas:

“Quatro crianças estavam sentadas em volta de uma mesa, em uma cozinha pequena. Dois meninos e suas irmãs mais novas. Na ponta da mesa estava uma figura assustadora, com uma capa preta. O rosto dela estava escondido pelo capuz, só aparecia um nariz pontudo. 
Lá fora, ao lado da porta, estava a foice.
Era a morte.”

Título: Pode chorar, coração, mas fique inteiro
Texto: Glenn Ringtved
Ilustração: Charlotte Pardi
Tradução: Caetano W. Galindo
Editora: Companhia das Letrinhas
Ano: 2020 (edição original de 2001)

Notas

[1] Informações baseadas no livro A arte de falar da morte para crianças: a literatura infantil como recurso para abordar a morte com crianças e educadores (2011), da psicóloa Lucélia Elizabeth Paiva, e no artigo Educação para a morte (2005), da também psicóloga Maria Júlia Kovács, que é uma das pessoas responsáveis pela criação do Laboratório de Estudos sobre a Morte, do Instituto de Psicologia da USP. No site desse instituto, há vários materiais, inclusive dicas de livros e de filmes relacionados ao tema da morte. As duas autoras participaram do episódio “Precisamos falar sobre a morte (com as crianças)”, recomendado nesta publicação.

[2] Tradução minha, realizada a partir da tradução para o inglês de Catherine Chidgey, publicada pela editora Gecko Press, da Nova Zelândia.

[3] Informações baseadas na reportagem “Como falar de morte com as crianças”, da Revista Crescer, que contou com entrevistas de Ziraldo e de sua neta Nina.

O corpo (pré-)pós-humano de Buster Keaton

 
 
Quem é Buster Keaton?

 

Atualmente, cerca de um centenário após as suas maiores realizações, boa parte do público talvez não o conheça. Alguns talvez o reconheçam de algum pôster. Mas ele é um dos grandes nomes da história do cinema, valorizado – se não por multidões – por estudiosos e pesquisadores dos filmes.

A passagem do tempo é cruel, e contribui para essa crueldade o fato de Buster ter feito a parte mais importante de sua obra em um período anterior do cinema: o do cinema mudo ou silencioso. Porém, trata-se de um artista fundamental, um dos grandes nomes da comédia cinematográfica, que constitui, ao lado de Charles Chaplin e de Harold Lloyd, o que poderíamos chamar o triunvirato da comédia muda.

Joseph Frank Keaton nasceu no ano de 1895 e faleceu em 1966. Ainda criança, começou sua carreira nas artes, mais exatamente em 1899, como ator de vaudeville, trabalhando junto dos pais. O apelido “Buster” foi dado pelo ilusionista e mestre dos escapes Harry Houdini. [1] Sua carreira no cinema durou quase 50 anos. Começou em 1917, quando Buster foi parceiro de Roscoe “Fatty” Arbuckle, um dos astros da comédia da época. O auge criativo de Keaton ocorreu durante os anos 1920, nos curtas e longas-metragens silenciosos dirigidos ou codirigidos por ele. O pesquisador francês Jean-Philippe Tessé afirma ousadamente que a carreira de Buster teria durado somente de 1920 a 1929, justamente esse período mencionado, quando Keaton – que trabalhava em um estúdio próprio – possuía uma independência e um controle considerável sobre a sua obra. O que ocorreu depois? Em 1928, Buster assina um contrato com a grande companhia MGM, uma atitude da qual se arrependeria amargamente mais tarde. Após essa mudança, o cineasta perde o controle das suas obras: a produtora impõe atores, criadores de piadas, técnicos; impede-o de improvisar nas filmagens. Com isso, apesar de certo sucesso de público, Keaton entra em decadência, da qual nunca se recuperaria totalmente. [2] Entre os grandes momentos posteriores do ator, podemos citar a sua participação em Luzes da Ribalta (Limelight, 1952), de Charles Chaplin, único filme na história do cinema a trazer esses grandes nomes da comédia muda atuando juntos.

Buster Keaton, ao contrário de Chaplin – com seu sorriso e seu rosto mega expressivos –, atuava sempre com um rosto com uma expressão relativamente neutra, o que lhe valeu alguns apelidos, como “Stoneface” (“cara de pedra”) ou “O homem que nunca ri”. Essa acabou sendo uma de suas marcas, o que não quer dizer que a sua atuação não envolva ou não produza emoção. Essa emoção, porém, passa por outros caminhos, principalmente por seus gestos e por seu comportamento corporal:

Keaton, ex-acrobata e ator mirim de vaudeville, diferia de Chaplin no sentido de que sua graça costumava vir do contraste entre seu rosto eternamente inexpressivo e as incríveis façanhas atléticas que seus personagens precisavam fazer para escapar do perigo. Com sua execução cuidadosa e desenvolta de sequências cada vez mais complexas, tão perigosas quanto espetaculares, Keaton aproximava a comédia física da poesia. [3]

 

Buster “Stoneface” (“Cara de pedra”)

 

Falando no corpo de Buster, ele possui algumas outras características muito importantes. A meu ver (e de um jeito surpreendente), essas características se aproximariam de alguns elementos de um termo que representa, ao mesmo tempo, uma situação contemporânea e uma teoria que a explica: o pós-humano ou pós-humanismo. Foi o que procurei discutir em um artigo de 2018, “Buster Keaton: um corpo pós-humano?”.

 

Mas o que seria pós-humano?

 

Como dito acima, o termo pós-humano se refere a dois elementos relacionados, mas distintos. Primeiramente, haveria uma condição pós-humana; ela seria resultado de um processo histórico pelo qual a humanidade está passando, que não está concluído, e cujas consequências ainda não conhecemos completamente. Entre as mudanças que já ocorreram, temos o desenvolvimento em áreas como a genética – o que permitiria uma manipulação praticamente artificial dos organismos vivos – e a cibernética, com o surgimento de redes informáticas cada vez mais complexas. Nesse contexto, inteligências artificiais aproximam-se das humanas e estabelecem contatos cada vez mais complexos com as pessoas. Além disso, há uma diluição das fronteiras entre o homem e a máquina, com o desenvolvimento de próteses e conexões as mais diversas, que muitas vezes se tornam parte do próprio corpo dos indivíduos. A pesquisadora brasileira Lucia Santaella comenta essa questão:

O potencial para as combinações entre vida artificial, robótica, redes neurais e manipulação genética é tamanho que nos leva a pensar que estamos nos aproximando de um tempo em que a distinção entre vida natural e artificial não terá mais onde se balizar. De fato, tudo parece indicar que muitas funções vitais serão replicáveis maquinicamente assim como muitas máquinas adquirirão qualidades vitais. O efeito conjunto de todos esses desenvolvimentos tem recebido o nome de pós-humanismo. Sob essa denominação, as distinções entre o artificial e o natural, o real e o simulado, o orgânico e o mecânico têm sido levadas ao questionamento. [4]

Essa condição já foi retratada em diferentes tipos de artes, como na literatura e no cinema. É notável a figura do ciborgue, ser formado parcialmente por matéria orgânica e parcialmente por componentes maquínicos – como O Exterminador do Futuro, do filme homônimo de James Cameron (The Terminator, 1984). Em alguns casos, seres-máquinas substituem quase que inteiramente os seres humanos, e essa semelhança pode gerar sérios questionamentos éticos e morais, como no filme Blade Runner, de 1982, dirigido por Ridley Scott.

 

“Hasta la vista, baby”: uma máquina com elementos orgânicos

 

Além de indicar essa situação, o pós-humano representa um campo de pesquisas, que reúne estudiosos de áreas diversas em torno da reflexão sobre as novas articulações e existências das pessoas. Essas discussões podem levar muitas vezes a uma problematização da posição central do ser humano nas pesquisas, que leva a uma localização mais dinâmica desse ser, em comunicação com outros elementos e seres, como animais, objetos, máquinas e redes de informação.

 

E o que Buster tem a ver com isso?

 

Deve ficar claro que a relação de Buster com esse conceito é muito diferente da que pode ser observada nos filmes citados acima. O cinema de Buster passa longe da ficção científica; ele não é ciborgue nem androide. A sua relação com o pós-humano pode ser reconhecida principalmente devido às manifestações e articulações diferenciadas do seu corpo, devido a um estatuto incomum desse corpo, que muitas vezes ultrapassa os limites do humano e se identifica com os seres não humanos, principalmente, com as máquinas. Em meu artigo, um tanto presunçosamente, divido essas manifestações em três grupos: corpo-com, corpo-entre e corpo-além.

 

Corpo-com

 

Na primeira articulação, corpo-com, enfatizo as junções ou os acoplamentos do corpo de Keaton com objetos ou máquinas, principalmente com as últimas. O melhor exemplo se encontra naquele que é talvez o seu filme mais conhecido: A general (The general), de 1926. Nessa obra – que se passa no período da Guerra civil entre norte e sul dos Estados Unidos – Buster representa um condutor de uma locomotiva (chamada “A General”) e passa por várias aventuras em seu meio de transporte, nas quais atua no conflito e salva o seu par romântico, Annabelle. Nesta discussão, mais importante que o enredo, é justamente a relação de Buster com o seu trem, uma relação muito particular. Pode-se dizer, inclusive, que haveria um amor nessa relação entre o personagem e a locomotiva. Smith [5] afirma que haveria um triângulo amoroso, entre Keaton, A General e Annabelle. E essa afirmação não é exagerada: o relacionamento entre Keaton e a General é de proximidade, de diálogo, de harmonia. Para o pesquisador britânico Alex Clayton, Keaton demonstra nesse filme como uma harmonia positiva entre homem e máquina pode conduzir à comédia. Na visão do autor, “o herói de Keaton deve atuar em uníssono com a locomotiva a vapor […] A força do trem é aliada à sua engenhosidade, a velocidade do trem à sua destreza”. [6] Aqui, trata-se de uma união bastante produtiva entre os corpos, que aproveita o melhor do que cada um tem a oferecer. Nessa simbiose, cada um dos componentes ganha algo: a locomotiva consegue sua energia e consegue ultrapassar obstáculos pelo caminho graças aos esforços de Keaton, e ele ganha uma velocidade impossível para seu corpo sozinho. Em alguns momentos, podemos até considerar que não há dois elementos, mas uma junção, um homem-máquina, e o filme aponta para essa questão em uma sequência: Buster, sobre o teto da locomotiva, adota uma postura rígida, firme, estática, um pouco inclinada para a frente, postura na qual observa o horizonte adiante. Esse corpo, devido à sua gestualidade, e graças ao enquadramento lateral da filmagem, torna-se quase que uma extensão da locomotiva, ou um prolongamento de sua estrutura – Keaton-locomotiva. Deve-se enfatizar, porém, que não há uma negação total de Buster. Como apontado acima, temos uma relação de harmonia, em que ambas as partes trazem as suas particularidades positivas para a obtenção de um resultado (que as favorece). Nesse sentido, e concordando com Clayton, [7] o corpo de Keaton não constituiria um anexo robótico estúpido, sem mente.

 

Buster e a locomotiva: dois corpos em um?

 

Corpo-entre

 

Na segunda articulação, corpo-entre, destaco determinadas manifestações de Keaton que diluem as fronteiras, principalmente as relacionadas à sua identidade. Determinadas manifestações de seu corpo mostram que ele não afirma uma verdade ou uma essência imutável; os sentidos que esse corpo produz dependem das suas próprias articulações, que podem ser inúmeras. Como aponta Clayton [8], parece haver certa indeterminação na relação de Buster com o mundo social: o seu personagem parece muitas vezes alheio às divisões que constituem o mundo; como as suas ações se orientam frequentemente em função de um olhar mais físico, espacial, com relação ao mundo, outras formas de hierarquia não parecem fazer tanto sentido para Buster. Os possíveis rótulos e “essências” ligados ao personagem são muitas vezes frutos de uma disposição particular do seu corpo no tempo e no espaço, o que implica, obviamente, que esses rótulos podem mudar facilmente.

Como exemplo dessa articulação do corpo, temos o filme The Paleface, de 1922, que retrata a relação de Buster com indígenas que defendiam suas terras das investidas de empresários do petróleo. Em determinada cena, Buster, vestido com uma indumentária indígena, é rendido por um “homem branco”. Keaton é obrigado a trocar de roupas com ele, a fim de que o homem passe despercebido pelos índios. Buster, agora vestido como homem “da cidade”, é observado à distância pelos índios. Eles não o reconhecem e acabam o atacando. Conforme argumenta Clayton, “à distância, o corpo é despojado da personalidade que ele encarna”. [9] E o corpo de Keaton é, de fato, muitas vezes enquadrado à distância em seus filmes, em planos gerais e planos de conjunto, os mais distantes na classificação dos enquadramentos de câmera. Pode-se considerar que, nos seus filmes, com o uso dessa composição, é a “externalidade” do seu corpo que confere a identidade a ele; “externalidade” essa que pode ser moldada, modificada ou mesmo distorcida. Essa questão da distância do corpo leva à criação de uma presença forte de construções geométricas e mesmo abstratas nos planos de Keaton: de algum modo, a sua relação mais espacial com o mundo o liberta das contingências da vida cotidiana, da vida em sociedade. Não há muitas fronteiras, quando as principais divisões são as que delimitam o espaço.

 

Imagem do filme “The Paleface”, de 1922.

 

Corpo-além   

 

O último tipo de manifestação corporal é o corpo-além. Ele se refere, principalmente, aos momentos em que Keaton ultrapassa as suas limitações mais humanas e chega a outro patamar. A tendência à abstração, acima comentada, parece já apontar para esse aspecto, pois indica uma superação das limitações e das contingências pelo corpo de Keaton. Vejamos dois momentos, bem distintos, dessa manifestação corporal.

Jean-Philippe Tessé discute um exemplo significativo, da fase em que Keaton ainda trabalhava com Roscoe “Fatty” Arbuckle e chegava a estampar alguns poucos sorrisos diante das câmeras: The Garage, de 1920:

Prisioneiro de uma placa giratória [para veículos, que estava em funcionamento abaixo dele], Keaton parece, para escapar dela, correr mais rápido do que pode. Ele está além da circunstância (a placa giratória), já no absoluto: para sair da armadilha, ele não deve ir mais rápido que a armadilha, mas mais rápido que a rapidez, exceder seu próprio corpo. [10]

 

Buster Keaton em cima da placa giratória

 

O corpo de Keaton parece ir além, além das circunstâncias imediatas, além do instante. Poderíamos dizer: parece ir além do seu próprio corpo. Até chegar ao ponto de se multiplicar em vários corpos, vários Keatons? Sim, isso ocorreu de fato, no filme The Playhouse¸ de 1921. Nessa obra, Keaton se transforma em várias pessoas, e ao mesmo tempo. Acompanhamos, em uma cena, um dia de apresentações em um teatro de variedades, mas há um detalhe importante: todas as pessoas que aparecem na cena são Buster Keaton. Todas. Maestro, músicos, dançarinos, contrarregra, criança, senhora, senhor, todos são representados por Buster, que muitas vezes aparece como mais de uma pessoa no mesmo instante, graças a trucagens, efeitos especiais. O corpo de Keaton é o corpo de todos; mesmo que a cena, narrativamente, seja motivada por um sonho do personagem, seu efeito não deixa de impactar.

 

Busters Keatons 1

 

Busters Keatons 2

 

Busters Keatons 3

 

Pré-pós

 

Após a observação desses exemplos, alguns dos discutidos em meu artigo – que convido você à leitura, com outros exemplos e outras discussões – vemos que o corpo de Keaton se manifesta e age no mundo em uma abertura contínua às possibilidades, às construções no espaço, em diálogo constante com outros corpos, muitas vezes corpos não humanos.

O corpo de Keaton, cronologicamente, é anterior ao pós-humano enquanto condição histórica. Ele seria, nesse sentido, algo como um corpo “pré-pós-humano”. Ainda que ele seja anterior, essa aproximação entre os dois elementos, o corpo de Keaton e o pós-humano, é, a meu ver, bastante frutífera e produtiva para discussões e questionamentos. Por um lado, o campo do pós-humano pode colaborar com algumas novas chaves de leitura para a obra de Keaton. Por outro lado, a obra desse ator-diretor – marcada pela presença de um corpo que dialoga frequentemente com elementos não humanos – aponta para possíveis raízes, manifestações e caminhos dos corpos pós-humanos, em um tempo em que eles já não parecem mais restritos ao gênero da ficção científica.

Talvez essa passagem por um gênero mais risonho, por meio do rosto daquele que nunca ri, ofereça novos olhares para todos esses corpos.

 

Referências

 

[1] Para mais informações sobre a carreira de Buster, confira a página 75 de História do cinema: dos clássicos mudos ao cinema moderno, de Mark Cousins. O livro foi traduzido para o português por Cecília Camargo Bartalotti e publicado pela editora Martins Fontes, em 2013. Veja também o capítulo “A General”, de I. H. Smith, de Tudo sobre cinema. O livro foi organizado por P. Kemp, e a tradução para o português foi publicada pela editora Sextante, em 2011.

[2] Trecho do livro Le burlesque, de Jean-Philippe Tessé, publicado em Paris, no ano de 2007, pela Cahiers du cinema. O trecho citado está nas páginas 25 e 26.

[3] Trecho da página 69 do capítulo “A comédia muda”, escrito por R. Hunter. Esse capítulo faz parte do livro Tudo sobre cinema, mencionado na nota 1.

[4] Trecho da página 199 do livro Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibernética, de Lucia Santaella. A primeira edição do livro é de 2003, e o trecho citado é da segunda edição, publicada em 2004.

[5] Trecho da página 66 do capítulo “A General”, mencionado na nota 1.

[6] Trecho da página 96 do livro The body in Hollywood Slapstick, escrito por Alex Clayton e publicado em 2007 pela editora McFarland & Company, da Carolina do Norte.

[7] Trecho da página 98 do livro mencionado na nota anterior.

[8] Trecho da página 56 do livro mencionado na nota anterior.

[9] Trecho da página 60 do livro mencionado na nota anterior.

[10] Trecho da página 19 do livro de Jean-Philippe Tessé, mencionado na nota 2.

Sobre Benjamin, Carlitos e brincadeiras

Carlitos é funcionário de uma loja de penhores. Em determinado momento, chega um cliente, levando um relógio para ser avaliado. Carlitos é o avaliador. Inicialmente, ele pega um estetoscópio e examina o objeto, como se esse fosse um paciente e o personagem, o doutor. A seguir, com uma broca, abre o relógio, como faria um carpinteiro. Tal como faria com uma lata de atum, ele abre o relógio, e o cheira para conferir se não está estragado. Retira o bocal de um telefone, objeto que é usado como os óculos de um joalheiro, e, como se fosse esse profissional, Carlitos examina o objeto. Depois, joga óleo sobre o conteúdo do relógio, como faria com algum motor de carro, e extrai as suas partes com um alicate, como um dentista extraindo os dentes de alguém. Tal como um alfaiate ou um decorador, que mede e corta pedaços de pano, Carlitos estica as bobinas do interior do relógio. Dispostas no balcão, as peças extraídas ainda começam a se mexer sozinhas, como se sob o efeito de algum feitiço. Ao fim, o avaliador deposita o relógio e o seu “conteúdo” dentro do chapéu do cliente, que o recebe de volta um tanto quanto surpreso, após ter a proposta negada por Carlitos.

Essa é a descrição de uma cena do filme Casa de Penhores (The Pawnshop), de Charles Chaplin, lançado em 1916. Chaplin, ator, diretor, produtor, montador, compositor… é um dos principais nomes da história do cinema, e a imagem do seu Carlitos é, ainda hoje, uma das mais associadas a esse meio. Ao longo de Casa de Penhores, mas principalmente dessa cena da avaliação do relógio, vemos um elemento fundamental do cinema de Chaplin, responsável por uma parcela substancial de seu humor: a relação do personagem Carlitos com os objetos. Essa relação envolve uma espécie de transformação dos objetos – eles ganham outros usos e outras funções, diferentes daquelas do cotidiano. 

 

Carlitos examina um relógio…

 

Essa é uma relação bastante documentada e comentada ao longo da história. Talvez o primeiro autor a abordar teoricamente o assunto tenha sido o francês André Bazin (1918-1958), um dos grandes teóricos e críticos do cinema e um dos mentores intelectuais da Nouvelle Vague, movimento do cinema francês. André Bazin abordou esse assunto no seu texto “Introdução a uma simbologia de Carlitos”. [1]

 

O teórico e crítico André Bazin tratou da relação do famoso personagem Carlitos com os objetos ao seu redor.

 

Se alguns autores, como Bazin, trataram dessa questão diretamente, outras reflexões, não necessariamente vinculadas a Carlitos, podem ser trazidas para a discussão, auxiliando a observar de novas maneiras essa relação entre Carlitos e os objetos. Foi justamente isso que busquei fazer no meu artigo “O caráter lúdico da relação entre Carlitos e os objetos” [2]. 

Nesse artigo, abordei essa questão em diálogo principalmente com algumas discussões de Walter Benjamin (1892-1940). Benjamin é um importante intelectual alemão, que discutiu questões relacionadas à literatura, à história, à filosofia e às artes. No caso do artigo, busquei algumas reflexões específicas do autor, ideias um pouco diferentes, mais brincalhonas. Tais reflexões, relacionadas às crianças, às brincadeiras e aos brinquedos, aparecem em alguns de seus textos que podemos até considerar menos conhecidos pelo “grande (pequeno) público” acadêmico. Nesses textos, o autor comenta, justamente, o caráter imaginativo, transformador, das brincadeiras infantis. Com elas, as crianças criam novos objetos, criam um novo mundo e transformam o seu próprio mundo, o mundo “real”.

Chaplin, de fato, é um artista muito importante para Walter Benjamin: ele é talvez o artista que recebe mais destaque no seu célebre ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” [3], por exemplo. No entanto, nesses textos sobre as crianças e os brinquedos, Chaplin não aparece. Mesmo assim, as contribuições de Benjamin, a meu ver, parecem dizer muito respeito à atividade de Carlitos nos filmes. 

 

Walter Benjamin, à direita, jogando xadrez (brincando?) com outro importante intelectual alemão, Bertolt Brecht (1898-1956).

 

Benjamin, porém, não foi o primeiro a comentar esse caráter transformador das brincadeiras das crianças. Sigmund Freud, o conhecido psicanalista austríaco, por exemplo, já havia abordado o assunto, e de maneira razoavelmente semelhante à de Benjamin:

Não deveríamos procurar os primeiros indícios da atividade poética já nas crianças? A atividade que mais agrada e a mais intensa das crianças é o brincar. Talvez devêssemos dizer: toda criança brincando se comporta como um poeta, na medida em que ela cria seu próprio mundo, melhor dizendo, transpõe as coisas do seu mundo para uma nova ordem, que lhe agrada. Seria então injusto pensar que a criança não leva a sério esse mundo, ao contrário, ela leva muito a sério suas brincadeiras, mobilizando para isso grande quantidade de afeto. O oposto da brincadeira não é a seriedade, mas a realidade [Wirklichkeit]. A criança diferencia enfaticamente seu mundo de brincadeira da realidade, apesar de toda a distribuição de afeto, e empresta, com prazer, seus objetos imaginários e relacionamentos às coisas concretas e visíveis do mundo real. Não é outra coisa do que este empréstimo que ainda diferencia o “brincar” da criança do “fantasiar”. [4]

Como vemos, a atividade do brincar envolve uma transformação. No entanto, curiosamente, essa transformação envolveria uma grande dose de seriedade. Benjamin, por outro lado, aborda essa questão não em um, mas em alguns textos. O autor comenta o modo curioso com o qual as crianças se relacionariam com os objetos. A relação das crianças com alguns resíduos, com “restos”, é a da transformação, da criação:

A Terra está repleta dos mais puros e infalsificáveis objetos da atenção infantil. E objetos dos mais específicos. É que crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou na marcenaria, da atividade do alfaiate ou onde quer que seja. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. Neles, estão menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer uma relação nova e incoerente entre esses restos e materiais residuais. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo das coisas, um pequeno mundo inserido no grande. [5]

Haveria uma comunicação bem específica entre os objetos e as crianças. Através desse contato, as crianças criariam um mundo próprio, que se inseriria no universo mais amplo compartilhado por crianças e adultos. Quando nos aproximamos do tema dos brinquedos, essa relação mágica da criança com os objetos torna-se mais clara. O autor comenta a relação complexa das crianças com seus brinquedos, marcada, ao mesmo tempo, pelo respeito e pela inovação:

Se […] fizermos uma reflexão sobre a criança que brinca, poderemos falar então de uma relação antinômica. De um lado, o fato apresenta-se da seguinte forma: nada é mais adequado à criança do que irmanar em suas construções os materiais mais heterogêneos – pedras, plastilina, madeira, papel. Por outro lado, ninguém é mais casto em relação aos materiais do que crianças: um simples pedacinho de madeira, uma pinha ou uma pedrinha reúnem na solidez, no monolitismo de sua matéria, uma exuberância das mais diferentes figuras. [6]

Na visão do autor, qualquer objeto pode se tornar brinquedo para as crianças. Além disso, a relação das crianças com os brinquedos é ativa: é a criança que dá vida e de algum modo transforma o brinquedo. Podemos considerar que a criança, com a sua imaginação, praticamente cria o brinquedo, que também não será estagnado na criação infantil: pelo contrário, esse brinquedo sempre ficará disponível a novos olhares e a novas criações. Essa abertura às ressignificações se relaciona com uma ideia de liberdade presente no brincar das crianças. Essa liberdade pode inclusive provocar efeitos nos adultos, como o de um encantamento:

Conhecemos aquela cena da família reunida sob a árvore de Natal, o pai inteiramente absorto com o trenzinho de brinquedo que ele acabou de dar ao filho, enquanto este chora ao seu lado. Não se trata de uma regressão maciça à vida infantil quando o adulto se vê tomado por um tal ímpeto de brincar. Não há dúvida que brincar significa sempre libertação. Rodeadas por um mundo de gigantes, as crianças criam para si, brincando, o pequeno mundo próprio; mas o adulto, que se vê acossado por uma realidade ameaçadora, sem perspectivas de solução, liberta-se dos horrores do real mediante a sua reprodução miniaturizada. [7]

Por fim, gostaria de destacar um último aspecto apontado por Benjamin: a repetição, “grande lei que, acima de todas as regras e ritmos particulares, rege a totalidade do mundo dos jogos” [8]. No entanto, não se trata aqui de uma repetição do idêntico, do mesmo, na atividade da criança; trata-se, na verdade, de uma repetição criadora, em que a experiência é sempre nova, não perde em originalidade:

Para ela [a criança], porém, não bastam duas vezes, mas sim sempre de novo, centenas e milhares de vezes. Não se trata apenas de um caminho para assenhorear-se de terríveis experiências primordiais mediantes o embotamento, conjuro malicioso ou paródia, mas também de saborear, sempre de novo e da maneira mais intensa, os triunfos e as vitórias. O adulto, ao narrar uma experiência, alivia o seu coração dos horrores, goza duplamente uma felicidade. A criança volta a criar para si todo o fato vivido, começa mais uma vez do início. […] A essência do brincar não é um “fazer como se”, mas um “fazer sempre de novo”, transformação da experiência mais comovente em hábito. [9]

 

A criança à direita é Walter Benjamin, em 1896. Ele está junto de seus pais e de seu irmão Georg.

 

Benjamin traz, portanto, algumas leituras bastante produtivas sobre as crianças, sobre as suas brincadeiras, sobre os seus brinquedos. Essa relação envolve também, assim como a relação de Chaplin com os objetos, uma intensa transformação: muitas vezes, objetos quaisquer viram brinquedos, e a brincadeira parece se relacionar de forma muito efetiva com essa quase “mudança de objetos”. 

Antes de finalizar este texto, trago dois exemplos de uma obra de Chaplin; exemplos famosos, talvez um pouco gastos, mas quem sabe até por isso mais claros. Trata-se de duas cenas do filme Em Busca do Ouro (The Gold Rush), lançado originalmente em 1925. 

Em dado momento, Carlitos, em uma situação de grande penúria e fome, cozinha uma das botas do par que estava usando e a serve em uma refeição. Nessa refeição exótica, as próprias partes da bota se transformam: a base do calçado é como uma carne; as pregas são como espinhos; os cadarços são como espaguetes. Essa cena, inclusive, é comentada por um autor mais ligado à literatura, o escritor brasileiro Carlos Heitor Cony. Ele relaciona a transformação dos objetos operada por Chaplin com aquela realizada por um grande personagem literário: Dom Quixote. Cony afirma que, apesar de, em ambos os heróis, haver uma espécie de transformação, Carlitos mantém sempre um conhecimento da natureza “real” dos objetos, ao contrário de Quixote. O autor comenta a cena: “seus olhos nunca duvidam do que realmente está vendo: vê uma bota […], sabe que é uma bota. […] aceita a realidade e a bota: palita os dentes, satisfeito, depois desaperta o colete para fazer a digestão, não a digestão do bife, mas a digestão da bota” [10]. Ao contrário de Quixote, Carlitos não foge da realidade, não a nega, não cria ilusões: “ele enfrenta o mundo real sem se evadir de sua aspereza, sem transferir culpas. Não se justifica por ter comido a bota”.

 

Carlitos se alimenta da bota.

 

Essa postura complexa de Carlitos indica uma consciência por parte do personagem de seu processo imaginativo: Carlitos sabe que está inventando. E Carlitos também possui a ciência do que faz na segunda sequência que comento, sequência um pouco menos trágica. Nela, em um momento de festa, Carlitos se utiliza de dois pãezinhos para realizar uma dança. Com dois garfos, prende os pães e começa a realizar o seu número, em que os alimentos se comportam como dois pezinhos. É interessante observar que, nessa sequência, a transformação não possui um objetivo claro, pragmático. Carlitos não quer nada com a sua dança, que possui um valor e uma expressão em si. Essa dança não quer nada além de encantar, de nos encantar.

 

Carlitos, em sua dança com os pãezinhos.

 

Por fim, gostaria de trazer uma breve citação de Benjamin. Em um texto de crítica do filme de 1928 O Circo (The Circus), de Chaplin, Benjamin traz uma frase bastante interessante, um tanto metafórica, e quase profética. Essa citação, mesmo que não tenha sido escrita com esse objetivo, pode dizer muito sobre Carlitos: “Chaplin acena com seu chapéu coco, e é como se a tampa de uma chaleira transbordante se levantasse” [11]. Benjamin já não estaria, ao menos metaforicamente, antevendo a importância da transformação dos objetos na obra de Chaplin? 

 

Chaplin levanta o seu chapéu e cumprimenta uma estátua em Luzes da Cidade (City Lights)

 

A própria indumentária do personagem, que o constitui, parece passar por processos de transformação, de mudança. O personagem, em suas brincadeiras, nos traz um turbilhão de imaginações e de ressignificações. E nós, um pouco crianças (ainda), brincamos com ele. 

 

(Essa discussão, em que enfatizei as ideias de Walter Benjamin, é apenas uma parte de meu artigo. Caso tenha se interessado, aconselho-o ludicamente e seriamente a ler a versão integral de meus questionamentos. Nela, trago algumas discussões adicionais, que não caberiam neste espaço, mas que são também bastante importantes, como a ideia do jogo e do lúdico. Além disso, desenvolvo mais a discussão sobre Chaplin, com o comentário de outras obras. Sinta-se à vontade para fazer parte dessa brincadeira!).

 

Referências:

 

[1] “Introdução a uma simbologia de Carlitos”, de André Bazin. Texto do livro Charlie Chaplin, publicado pela editora Jorge Zahar, em 2006. 

[2] “O caráter lúdico da relação entre Carlitos e os objetos”, de Diogo Rossi Ambiel Facini. Artigo publicado no volume 19 da revista Cadernos Walter Benjamin, em 2018.

[3] “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, de Walter Benjamin. Texto disponível em várias edições brasileiras. No meu artigo, utilizei a publicação da editora Zouk, de 2012.

[4] “O poeta e o fantasiar”, de Sigmund Freud. O trecho citado está na página 54 do livro Arte, Literatura e os artistas,  publicado pela Autêntica Editora, em 2015.

[5] “Livros infantis velhos e esquecidos”, de Walter Benjamin. O trecho citado está nas páginas 57 e 58 da segunda edição do livro Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação, publicado em conjunto pela editora Duas Cidades e Editora 34, em 2009.

[6] “História cultural do brinquedo”, de Walter Benjamin. O trecho citado está na página 92 do mesmo livro mencionado na nota 5.

[7] “Velhos brinquedos: sobre a exposição de brinquedos no Märkisches Museum”, de Walter Benjamin. O trecho citado está na página 85 do mesmo livro mencionado na nota 5.

[8] “Brinquedos e jogos: observações marginais sobre uma obra monumental”, de Walter Benjamin. O trecho citado está na página 101 do mesmo livro mencionado na nota 5.

[9] O trecho citado está nas páginas 101 e 102 do mesmo texto mencionado na nota 8.

[10] “Chaplin”, de Carlos Heitor Cony. Os trechos citados estão na página 29 do livro Chaplin e outros ensaios, publicado pela editora Top Books, em 2012. 

[11] “Chaplin”, de Walter Benjamin. O trecho citado está na página 170 do livro Chaplin, retrospectiva integral: catálogo. Obra organizada por Rafael Ciccarini e Mateus Araújo, publicada pela Fundação Clóvis Salgado, em 2012.

Descobrindo o encoberto: conversas sobre tradução com Flora Thomson-DeVeaux

Nas últimas semanas, a pesquisadora e tradutora Flora Thomson-DeVeaux tem estado presente em diversas páginas da imprensa nacional e internacional. A sua tradução do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, publicada recentemente pela editora Penguin, entrou na quarta tiragem logo no primeiro mês de publicação. Assim, desde seu lançamento, The Posthumous Memoirs of Brás Cubas (Penguin Classics, 2020) tem chamado a atenção do público e rendido boas reflexões sobre a recepção da obra de Machado de Assis no exterior.

Flora estudou Línguas e Culturas Espanholas e Portuguesas na Universidade de Princeton. Em 2019, concluiu o doutorado em Estudos Brasileiros e Portugueses na Universidade Brown. Atualmente, vive no Rio de Janeiro e, entre outras atividades, é diretora de pesquisa da Rádio Novelo, produtora de podcasts como Maria vai com as outras, Foro de Teresina e 451 MHz. O blog Marca Páginas convidou Flora para uma conversa sobre tradução, literatura, pesquisa acadêmica, projetos futuros, e o resultado da nossa entrevista vocês conferem aqui. Boa leitura!

Marca Páginas: Flora, você começou a traduzir o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas como parte de seu projeto de doutorado, defendido na Universidade Brown em 2019. Você poderia nos contar mais sobre a sua tese? De que maneira essa pesquisa acadêmica foi importante para a tradução de uma obra literária?

Flora Thomson-DeVeaux: A tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas foi só um dos capítulos da minha tese, na verdade. Nos outros capítulos, tentei acompanhar a trajetória do romance em inglês – a primeira publicação foi no começo dos anos 1950 nos Estados Unidos e teve mais duas traduções posteriores. Fui atrás de descobrir quais circunstâncias levaram cada tradutor a embarcar no projeto, como foi o processo de edição e publicação, e como cada tradução foi lida no seu tempo. Também dediquei alguns capítulos a aspectos mais teóricos de crítica machadiana e tradutória, e falo sobre minha metodologia. Por fim, proponho que ler a obra machadiana através das suas traduções pode ser uma experiência reveladora.

Uma obra como Memórias póstumas de Brás Cubas é em grande parte uma colaboração entre o texto e o leitor. Em Dom Casmurro, o narrador nos diz que este é um livro “falho”, com lacunas, que cabe ao leitor preencher. Essa é uma operação silenciosa que acontece na cabeça de quem lê Machado de Assis; mas o tradutor acaba imortalizando um pouco do processo na página. Por isso, ler várias traduções da mesma obra machadiana pode jogar uma luz sobre as complexidades do texto original.

Antes de começar a traduzir o livro, mergulhei nos estudos machadianos e da tradução para me situar melhor nos campos respectivos. Queria estar a par não só da grande gama de interpretações que se tem feito do romance, mas também dos debates e estratégias propostos por tradutores nos projetos mais diversos. Na verdade, alguns dos textos que mais me ajudaram tinham pouco ou nada a ver com Machado e Brás Cubas – entre eles, um estudo sobre as traduções de poesias de John Donne para o francês e espanhol e outro que examina vários escritores de língua inglesa em tradução para o italiano. Acredito que essa contextualização tenha sido importante para minha abordagem ao texto – me deixou antenada para perceber alusões e dinâmicas comentadas por outros leitores, e também entrei no processo com algumas ideias de estratégias possíveis debaixo do braço.

Capa da edição The Posthumous Memoirs of Brás Cubas (Penguin Classics, 2020)

Marca Páginas: Apesar de Machado de Assis ser bastante conhecido no Brasil, sabemos que sua circulação é ainda restrita em outros países. Você já tinha ouvido falar sobre Machado de Assis antes de decidir estudar literatura brasileira? Como você conheceu a obra de Machado e o que te motivou a traduzi-la?

Flora Thomson-DeVeaux: Não tinha ouvido falar em Machado de Assis antes de entrar na faculdade. Conheci justamente como aluna de literatura brasileira – na verdade, como aluna de língua portuguesa. Foi naquela época que me apaixonei pela prática da tradução, mas não pensei imediatamente em trabalhar com Machado – até porque quase todos os romances dele já tinham sido traduzidos para o inglês (o último foi Ressurreição, que foi traduzido em 2013). Só comecei a pensar nessa possibilidade quando fui traduzir um livro de João Cezar de Castro Rocha, chamado Machado de Assis: por uma poética da emulação. Sempre que João Cezar citava obras de Machado que já tinham sido traduzidas, procurei citar as traduções existentes – mas em muitos casos, as traduções não encaixavam com a análise minuciosa que estava sendo feita no livro de crítica. Com isso, me vi obrigada a retraduzir alguns trechos daqueles romances. Foi uma experiência instigante, bem na véspera de eu entrar no programa de doutorado, e que me ajudou a definir meu projeto em torno de uma nova tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas.

Marca Páginas: Em ocasiões anteriores, quando foram publicadas outras traduções de Machado no exterior, havia uma grande expectativa de que o escritor seria reconhecido fora do Brasil. Sua tradução parece finalmente estar despertando essa atenção. A quais fatores você atribui esse reconhecimento? Por que agora e não antes?

Flora Thomson-DeVeaux: Infelizmente, suas perguntas provavelmente poderiam ter sido feitas no centenário da morte de Machado em 2008, ou na época das primeiras retraduções nos anos 1990, e elas ecoam questionamentos e esperanças da década de 1950. Quando estudei a recepção das traduções anteriores, vi sempre muita esperança em torno de cada lançamento, mas a repercussão acabava esvaindo sem que Machado de Assis se estabelecesse definitivamente nas prateleiras anglófonas. Torço muito para que desta vez seja diferente. Mas o primeiro tradutor de Memórias póstumas, William Grossman, chegou a dizer que Machado, com sua ironia delicada e fina, jamais seria um autor para as massas, e só seria descoberto e desfrutado por um público seleto.

Marca Páginas: Memórias Póstumas foi publicado no século XIX, em 1881, o que implica desafios tradutórios diferentes se compararmos a experiência à tradução de um texto contemporâneo. Quais foram os seus maiores desafios diante desse trabalho? E quais foram as estratégias e os instrumentos que você utilizou para lidar com esses desafios?

Flora Thomson-DeVeaux: A maior dificuldade não era só de tentar habitar o inglês do final do século XIX, mas sobretudo de medir o quanto que as escolhas linguísticas do autor se diferenciavam daquelas dos seus pares. Ou seja: quando Machado escrevia algo de um jeito que me parecia esquisito, tinha que descobrir se a esquisitice era temporal, cultural, ou machadiana mesmo – se era uma expressão muito usada naquela época que caiu em desuso, se era uma expressão brasileira de difícil interpretação no contexto anglófono, ou se era uma invenção dele, ou uma opção dele por uma palavra deliberadamente obscura. Nesses últimos casos, tentava chegar em alguma solução que fosse ao mesmo tempo compreensível e que também ficasse suficientemente esquisito aos olhos do leitor anglófono. Para identificar se Machado estava se diferenciando muito de seus pares, eu usei tanto bases de dados chamados corpus linguísticos, que medem a frequência de uso das palavras ao longo dos anos, quanto a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, onde usuários podem acessar milhares de publicações digitalizadas do século XIX e XX. Ah, e acabei acumulando uma coleção respeitável de dicionários antigos português-inglês (melhor: portuguez-inglez), que às vezes preservam definições e explicações de frases e termos que teriam sido correntes no século XIX, mas já não são tão compreensíveis.

Flora Thomson-DeVeaux (acervo pessoal)

Marca Páginas: Estudos sobre tradução já foram tema aqui no blog Marca Páginas[1], inclusive para falar sobre traduções de Machado de Assis para o espanhol[2]. Considerando as nuances que perpassam a experiência de tradução, seja como traição, seja como coautoria, de que maneira você definiria seu trabalho como tradutora?

Flora Thomson-DeVeaux: Jamais me definiria como traidora, mas também não me vejo muito como co-autora. Me identifico muito com uma descrição da última crônica do Machado: “eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto.” Vejo o trabalho de tradução como essa missão de uma leitura minuciosa, obsessiva, que pode muitas vezes “descobrir o encoberto”.

Marca Páginas: Para terminar, você poderia nos contar quais são seus próximos projetos? Você pretende continuar traduzindo a obra de Machado de Assis?

Flora Thomson-DeVeaux: Não descarto voltar a Machado, mas não penso em emendar em outra obra dele. Ainda estou pesando algumas opções de projeto – gostaria de fazer uma tradução de uma obra que ainda não tenha versão em inglês. Meu próximo projeto não tem nada a ver com tradução: é um podcast narrativo sobre o caso da Ângela Diniz, que deve ser lançado nos próximos meses pela Rádio Novelo.

Sugestões de leitura:


[1] Para acessar os posts anteriores: <https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2017/04/20/traducao-de-textos-literarios-parte-1/>, <https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2018/10/01/a-traducao-de-textos-literarios-parte-2/> e <https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2018/09/18/o-camelo-pelo-buraco-da-agulha-e-outras-historias-estranhas-de-traducao-por-stant-litore-traducao-jacqueline-placa/>.

[2] Para conferir o texto “Machado de Assis em espanhol”, por Juliana Gimenes:  <https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2017/06/24/machado-de-assis-em-espanhol-por-juliana-gimenes/>.

Lançamento do e-book “Oficinas de imaginação e escrita para a educação em Direitos Humanos”

O grupo de pesquisa Nós-Outros: linguagem, memória e direitos humanos acaba de publicar, coordenado pela professora Daniela Palma, do IEL/UNICAMP, um material didático que visa orientar a abordagem de Direitos Humanos em aulas de Língua Portuguesa dos Ensinos Médio e Fundamental II. Trata-se do e-book Oficinas de imaginação e escrita para a educação em Direitos Humanos, disponível para download gratuitamente no site institucional do projeto (link no final do texto).

Esse material está dividido em 5 oficinas de escrita, organizadas ao redor de 5 eixos temáticos principais que tratam de uma série de direitos: o direito à moradia; o direito à liberdade de expressão e à identidade cultural; o direito à migração; o direito à água e à natureza; e o direito ao luto. Por meio de um processo de imersão em cada um desses temas, a ideia é mobilizar a leitura de uma grande variedade de textos e a apreciação de outras produções culturais, como músicas, documentários e filmes, de forma a estimular, em momentos apropriados, os alunos e as alunas a escrever suas principais impressões em sua “Caderneta de escritor(a)”. O objetivo é que essas anotações constituam progressivamente um importante acervo de referências e reflexões para que, ao final de cada unidade, os/as estudantes estejam preparados para se dedicar a uma proposta de produção de texto mais extensa.

Assim está estruturada a Oficina 2, “Dos fios que trançam uma história: liberdade de expressão, identidade cultural e autoestima”, por exemplo, que irá se centrar na importância dos cabelos para discutir a liberdade de expressão e de identidade cultural à que cada pessoa tem direito. Os alunos e as alunas serão então expostos a uma série de leituras de aproximação ao tema que irão percorrer, ao longo de épocas e territórios diversos, a relação de cada povo com os seus cabelos. Dessa forma descobriremos que, no Antigo Egito, por exemplo, os cortes de cabelo estavam relacionados à hierarquia e ao gênero de quem os portava; ou ainda que as tranças nagô, ou de raiz, presentes até hoje na cultura brasileira, remetem à maneira como homens e mulheres iorubás arrumavam seus cabelos há muitos séculos.

Orna Wachman/Pixabay

Essa contextualização culminará em uma densa reflexão sobre como uma simples parte do nosso corpo representa, na verdade, uma série de possibilidades (ou impossibilidades) de manifestarmos social, política e religiosamente nossa própria identidade. A parte escrita, ao final dessa unidade, se dedicará então à produção de textos que reflitam sobre essas questões por meio de duas possibilidades: a escrita de um roteiro ou a escrita de uma canção. Caberá ao professor ou à professora a escolha de abordar apenas uma ou as duas propostas em sala de aula.

Vale notar que todas as oficinas possuem orientações para guiar os professores e as professoras durante a utilização do material, mas há também um grande apelo à autonomia dos alunos e das alunas para que eles/elas possam construir o conhecimento de forma crítica ao longo de todas as leituras e produções escritas. Além disso, as unidades contam ainda com glossários para palavras mais específicas ou complicadas, além de diversas sugestões para aprofundamento sobre cada tema, o que garante um maior suporte para compreensão dos pontos abordados.

Também é fundamental dizer que todo o material se volta à importância de imaginar e narrar. Você já parou para pensar que um dos motivos que nos fazem gostar de ler ou assistir filmes é justamente o fato de essas produções nos permitirem ter contato com experiências que, vivendo nossas próprias vidas, não seríamos capazes de ter? E será que, estabelecendo esse contato com as experiências de vida de outras pessoas, poderíamos ter mais consciência e respeito pelas diferenças? É nesse caminho que o livro aposta. Tanto pelo contato com narrativas produzidas por outras pessoas, quanto pelo estímulo de narrar as próprias experiências por meio das propostas de escrita, há ao longo de todas as unidades um reforço da ideia de que “pensar pela imaginação da experiência do outro é fundamentalmente a possibilidade de construir inversões de perspectiva”, segundo trecho da introdução “Direitos Humanos em aulas de escrita: apontamentos e orientações”. Aliás, uma dica preciosa: as páginas iniciais que antecedem as oficinas são um conteúdo excelente para nos aprofundarmos em questões que envolvem conceitualmente os temas abordados; vale a pena demorar-se na apresentação e introdução do material, bem como na rica bibliografia sugerida! Esse momento anterior à utilização do material em sala de aula é também uma oportunidade de os professores e as professoras terem um panorama mais completo e geral de como as oficinas se organizam, além de compreenderem em quais pilares teóricos se sustentam as unidades.

Em linhas gerais, podemos dizer que é pelo contato com a experiência narrada por outra pessoa que alunos e alunas serão educados a observar o mundo à sua volta e a olhar para si mesmos e mesmas enquanto sujeitos de experiências que também são ressignificadas quando colocadas em perspectiva. E assim, de forma intuitiva e sensível, mas também orientada por atividades pensadas para tal fim, é possível trabalhar conteúdos referentes aos Direitos Humanos a partir da conscientização de que esses direitos dizem respeito aos próprios alunos e alunas e aos demais seres humanos com quem compartilhamos o mundo. Aprimorar a percepção do outro é um excelente caminho para entendermos nós mesmos/as e, em uma espécie de ciclo de reações, todo mundo ganha quando estamos mais conscientes de quem somos, do lugar que ocupamos e com quem dividimos nossas vivências. Parece que nos últimos tempos uma parte de nós anda se esquecendo disso, mas sempre vale a pena lembrar: é em contato com o que sou, com o que somos, e com o que os outros são que nos tornamos, finalmente, um pouco mais humanos.

Então vamos lá, ao trabalho! E não se esqueça de compartilhar esse e-book com mais educadores, para que ele possa viajar cada vez mais longe. Obrigada!

* Para download gratuito do e-book Oficinas de imaginação e escrita para a educação em Direitos Humanos e demais publicações do grupo Nós-Outros: http://www2.iel.unicamp.br/nosoutros/publicacoes/

* Para mais informações sobre o grupo de pesquisa Nós-Outros: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/527218

Minicontos e Minicontos Digitais: Potencialidades do Gênero para o Desenvolvimento dos Letramentos e dos Multiletramentos, por Matheus Bueno

Matheus Bueno se formou em Letras, na Unicamp, com a monografia “Minicontos e Minicontos Digitais: Potencialidades do Gênero para o Desenvolvimento dos Letramentos e dos Multiletramentos”, sob a orientação da Profa. Roxane Rojo. O texto a seguir é uma síntese de sua pesquisa, na qual ele abordou as relações entre multiletramentos e minicontos, impressos e digitais. Muito obrigada, Matheus, por sua colaboração ao blog Marca Páginas. E boa leitura!

Minicontos e Minicontos Digitais: Potencialidades do Gênero para o Desenvolvimento dos Letramentos e dos Multiletramentos, por Matheus Bueno

PRA COMEÇO DE CONVERSA

Uma coisa é certa: nos dias de hoje vivemos em um mundo cada vez mais urbanizado, globalizado e altamente tecnologizado. As novas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação – ou TDIC, como costumamos nomear – são, com efeito, uma presença inevitável em nosso cotidiano e vêm transformando nossas maneiras de ser e estar no mundo, nossas maneiras de comunicação e, principalmente, nossas maneiras de ler e escrever. Mas por que ocorrem tantas mudanças importantes no campo da leitura e da escrita? Isso se deve ao fato de que, na contemporaneidade, as novas tecnologias e as novas possibilidades digitais disponíveis não só facilitam a circulação e a produção de textos, como também fazem surgir novos tipos de textos – ou novos modos dos textos –; textos que não são apenas verbais, estáticos e impressos, mas que agora são digitais, colaborativos, interativos, hipertextuais e, sobretudo, multissemióticos, ou seja, compostos por uma multiplicidade de semioses (linguagens) para além do verbal escrito ou oral, como a linguagem imagética (imagens estáticas ou em movimento), sonora (música, efeitos sonoros etc.), digital (como objetos 3D, por exemplo) e muitas outras. A grande questão é: para que possamos compreender, interpretar e produzir esses novos textos digitais multissemióticos, precisamos desenvolver novas habilidades/competências de leitura e escrita, ou melhor, precisamos desenvolver novas práticas de letramento que, na atualidade, tornam-se multiletramentos. Se o conceito de letramento refere-se às variadas práticas sociais em que a língua escrita e o ler e o escrever estão envolvidos – tomar um ônibus ou solicitar uma carona por aplicativos de transporte, assistir ao noticiário pela TV ou acessar as notícias pelos sites de redes sociais, escrever um bilhete ou mandar uma mensagem instantânea pelo Whatsapp, todas essas são práticas em que a leitura e a escrita se fazem presentes, por exemplo –, poderemos perceber que as novas tecnologias contemporâneas fazem emergir novos tipos de texto que nos demandam novos letramentos, letramentos que, hoje, não são somente o letramento da letra (do verbal, das palavras), mas também o letramento das múltiplas linguagens (ou multiletramentos).

E A ESCOLA?

Se as escolas são por excelência as mais importantes agências de letramento – como afirma a pesquisadora Angela Kleiman (2007)[1] –, ou seja, se as escolas são as instituições que deveriam promover os letramentos a fim de formar alunos letrados que se apoderem criticamente dos usos sociais da língua escrita, como então os colégios contemporâneos poderiam se apropriar dos novos textos multissemióticos em circulação dentro e fora do ciberespaço com o intuito de desenvolver os (multi)letramentos dos estudantes, tornando-os cidadãos críticos capazes de participar efetivamente das práticas sociais exigidas pelo mundo tecnológico contemporâneo? Em aulas de língua portuguesa – disciplina responsável por discutir língua(gem) e literatura –,  como exercitar os letramentos e multiletramentos utilizando gêneros verbais impressos e gêneros digitais? Em verdade, quais são as potencialidades pedagógicas desses textos digitais? Com o objetivo de responder tais questões, elencamos em nossa pesquisa o miniconto verbal impresso e o miniconto digital multissemiótico como objetos principais de análise: acreditamos que os minicontos – estritamente verbais e também os digitais, frutos dos tempos hipermodernos –, por mobilizarem conteúdo verbal e não verbal e constituírem-se como gêneros literários, são ótimos exemplares desses novos textos que podem colaborar para o desenvolvimento dos letramentos, letramentos literários e multiletramentos dos aprendizes, permitindo que os estudantes exercitem principalmente capacidades e habilidades de fruição, compreensão e leitura crítica e que, de certo modo, possam ainda experimentar também outras esferas sociais de circulação dos textos, das ideias e das práticas letradas; no caso em questão, a esfera artístico-literária e a esfera de práticas de letramento literário.

MINICONTOS E MINICONTOS DIGITAIS: BREVES, MAS PODEROSOS

Os minicontos começam a surgir no século XX e são o resultado de um processo de miniaturização do conto, como defende o estudioso Marcelo Spalding (2008)[2]. A partir dos anos 1960, depois que o escritor guatemalteco Augusto Monterroso (1921–2003) publicou O dinossauro – considerado por muitos como o miniconto mais famoso do mundo, possuindo apenas sete palavras! –, o gênero em questão começa a ganhar notoriedade, popularizando-se ainda mais na passagem do século XX para o XXI.

Miniconto “O dinossauro”, de Augusto Monterroso

Poderíamos caracterizar o miniconto como um texto contemporâneo extremamente curto e conciso. Mesmo que não exista consenso entre os especialistas sobre o tamanho máximo ou mínimo que uma microficção deveria ter, é fato que os minicontos unifrásicos, de apenas uma frase, são de longe os mais interessantes de serem lidos, pois, apesar de breves, tais textos ainda possuem grandes cargas de narratividade e significação, impactando os leitores intensamente. São textos que podem tematizar múltiplos assuntos e contar diferentes tipos de histórias, mas que são majoritariamente conhecidos por sua natureza mais “ácida”, irreverente, inusitada, ambígua e provocadora. Segundo a Pequena Poética do Miniconto, publicada também por Spalding em 2007[3], a concisão – a representação de um momento-chave da trama –, a narratividade – a capacidade de o miniconto contar uma história –, a exatidão – a utilização minuciosa das palavras –, a abertura – a grande quantidade de implícitos, espaços em branco e lacunas narrativas que devem ser preenchidas pelos leitores conforme seus conhecimentos de mundo e suas experiências (as aberturas são os elementos que convidam o leitor à ação e por isso poderiam ser consideradas a qualidade mais instigante das microficções), e o efeito – a possibilidade de o miniconto provocar fortes reflexões e sentimentos em quem os lê – seriam as características fundamentais do gênero.

Com relação aos minicontos digitais, o interessante é observar como o gênero miniconto, antes estritamente verbal, estático e impresso, adentra o ciberespaço e, na atualidade, valendo-se das possibilidades tecnológicas e digitais contemporâneas, torna-se agora um gênero digital, colaborativo, interativo e principalmente multissemiótico, compondo projetos de literatura digital. Ao se manifestarem como literatura digital, ou seja, ao serem elaborados segundo as potencialidades oferecidas pelas TDIC, os minicontos digitais passam a nos oferecer novas estéticas textuais (novos textos com novas aparências) e também novas e diferentes experiências de leitura e fruição, reivindicando assim novos leitores/autores que saibam explorar as ferramentas de navegação e interação da web (PAGNAN, 2017)[4] e estejam aptos a compreender textos multissemióticos.

A título de exemplo, poderíamos citar o projeto de literatura digital intitulado Minicontos Coloridos. Organizado por Marcelo Spalding, o site convida o leitor-internauta a pintar seus próprios minicontos a partir da combinação de três diferentes cores (vermelho, verde e azul). Após misturar as tonalidades conforme critérios pessoais, o leitor é levado a uma nova página que revela não só a cor resultante de sua combinação, mas também um miniconto verbal escrito que se relaciona de algum modo à cor gerada. O projeto em questão é atrativo por dois motivos: além de nos proporcionar uma nova experiência de leitura – uma experiência interativa realmente marcante que permite que os visitantes “brinquem” de pintar enquanto leem –, o site também nos oferece novas experiências estéticas e de fruição na medida em que conecta e aproxima textos e cores, promovendo o exercício de uma leitura “sinestésica” em que os leitores devem analisar a maneira como as cores podem adicionar, reforçar ou alterar os sentidos das microficções. Em outras palavras, ao visitar o site idealizado por Spalding, os leitores devem analisar como o conteúdo verbal (os minicontos escritos) e o conteúdo não verbal (as cores) se relacionam, pois só através desta análise poderão interpretar as histórias dos microtextos, acessar as informações implícitas e completar as lacunas narrativas deixadas pelos minicontistas. Você consegue perceber como os multiletramentos – a leitura das múltiplas linguagens – são importantes para que o leitor experimente e mergulhe de fato na proposta digital dos Minicontos Coloridos?

Exemplo de miniconto colorido, de Marcos de Andrade

POTENCIALIDADES PEDAGÓGICAS

Sinteticamente, poderíamos concluir dizendo que trabalhar com minicontos (verbais impressos e digitais multissemióticos) em sala de aula é uma empreitada interessante porque as microficções proporcionam o desenvolvimento de nossas competências leitoras. No que diz respeito ao amadurecimento dos (multi)letramentos dos estudantes, o miniconto seria um relevante instrumento educacional uma vez que exige do leitor sofisticadas habilidades de leitura e clama por uma participação ativo-responsiva, ou seja, solicita um posicionamento ativo/crítico do aluno e permite que ele exercite muitas capacidades de leitura, como a ativação de conhecimento de mundo – capacidade essencial para o entendimento dos minicontos, pois só através desse resgate de saberes o leitor poderá completar as aberturas da história –; a análise dos elementos linguísticos (palavras, sinais de pontuação, figuras de linguagens etc.) que compõem o texto e funcionam ao mesmo tempo como itens estéticos e também como micropistas textuais que guiam o leitor até as interpretações mais coerentes; a formulação de hipóteses e de inferências (deduções e entendimentos sobre a trama); a elaboração de apreciações estéticas e de posicionamentos críticos como uma forma de responder ao texto – o leitor gosta (ou não gosta) da história? Por quê? Ele percebe as críticas e provocações realizadas pelos minicontistas? Concorda com elas? –; e, claro, a interpretação das múltiplas linguagens, no caso dos minicontos digitais.

Com relação aos letramentos literários, cremos que os minicontos (impressos e digitais) são cativantes textos contemporâneos que poderiam introduzir a literatura nas salas de aula de maneira divertida e atrativa, ampliando o repertório e as práticas literárias dos estudantes e fazendo com que se sintam motivados a ler mais dentro e também fora das telas. Por serem tão provocativos e retratarem temas tão diversos, levar os minicontos até as aulas de língua portuguesa também seria uma forma de os alunos descobrirem mais sobre o mundo e sobre si mesmos, desenvolvendo assim suas subjetividades. Sendo o miniconto um gênero extremamente breve, acreditamos ainda que introduzi-lo na escola e garantir sua leitura em sala de aula – ou seja, garantir que os alunos “degustem” diretamente as obras – seriam tarefas que poderiam ser facilmente realizadas pelas instituições, sem o pretexto de que os textos literários são muito longos para que possam ser lidos pelos alunos dentro do espaço e tempo escolares.

DICAS DE LEITURA

  1. Minicontos Impressos
  • Os cem menores contos brasileiros do século (Ateliê Editorial, 2004, organizado por Marcelino Freire
  • Ah, é? (Editora Record, 1994), de Dalton Trevisan.
  • Adeus conto de fadas (Editora 7 Letras, 2006), de Leonardo Brasiliense
  1. Minicontos Digitais

REFERÊNCIAS

[1] KLEIMAN, Angela B. Letramento e suas implicações para o ensino de língua materna. Signo, Santa Cruz do Sul, v. 32, n. 53, p. 1-25, Dezembro, 2007. Disponível em: <http://online.unisc.br/seer/index.php/signo/article/viewFile/242/196>.

[2] SPALDING, Marcelo. Os cem menores contos brasileiros do século e a reinvenção do miniconto na literatura brasileira contemporânea. 2008. 81p. Dissertação de mestrado – Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, 2008.

[3] SPALDING, Marcelo. Pequena poética do miniconto. Digestivo Cultural. 2007. Disponível em :<https://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=2196&titulo=Pequena_poetica_do_miniconto>.

[4] PAGNAN, Celso Leopoldo. Literatura digital: análise de ciberpoemas. Travessias, Cascavel, PR, Campus de Cascavel/Unioeste – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, v. 11, n. 3, p. 308-325, Setembro/Dezembro, 2017.

Beyoncé: uma aproximação ao feminismo e à literatura negra, por Cláudia Alves e Danielle Lima

Está disponível desde o mês passado, na Netflix, o documentário Homecoming (2019), dirigido e estrelado por Beyoncé Knowles-Carter. O filme, que intercala cenas de dois momentos diversos do mesmo evento, é registro de como foi a concepção e a execução do show que a cantora realizou no festival norte-americano Coachella, em 2018. Beyoncé foi a primeira mulher negra a se apresentar como atração principal do festival, um dos mais prestigiados do mundo.

Diante da oportunidade, ela soube aproveitar muito bem a ocasião para conjugar sua música e as pautas identitárias com as quais ela está envolvida. Durante todo o show, ela é acompanhada por uma banda de estudantes universitários, isto é, um tipo de banda bastante tradicional nas universidades dos Estados Unidos em que os estudantes tocam e dançam em festivais e competições. Mas a banda universitária concebida por Beyoncé para lhe acompanhar possuía uma particularidade: todos os integrantes eram estudantes negros.

Cena de Homecoming (2019)

Nos trechos do documentário em que a cantora conta como chegou a tal ideia e como foram as seleções para a montagem do espetáculo, Beyoncé explica que sua intenção era dar destaque ao fato de que jovens negros também podem ocupar esses lugares, tanto o palco de um show monumental em um grande festival de música, quanto universidades – e, obviamente, quaisquer outros espaços que eles quiserem. Ela declara, em determinado momento do filme: “Eu queria que todas as pessoas que já foram rejeitadas por causa da sua aparência se sentissem naquele palco”.

Apesar de essas questões serem centrais em Homecoming, não é novidade o envolvimento da cantora com pautas identitárias. Em 2016, por exemplo, seu álbum Lemonade tornou-se um hino da música pop. Partindo de experiências pessoais recentemente vividas por ela, Beyoncé compôs e cantou canções que exaltavam a liberdade e a força das mulheres. Sua mensagem chegou de fato a esse público, gerando uma onda de admiração por seu trabalho e reforçando a ideia de que Beyoncé é um fenômeno. Em 2017, ao participar de outro grande evento americano, o Super Bowl, a cantora levantou polêmicas por causa da performance do single Formation. Durante o show, denunciou a truculência policial contra as vidas negras, fazendo referência inclusive ao famoso partido militante americano The Black Panthers[1]. Outro momento marcante de sua recente carreira foi o lançamento da canção “Apes**t”, cujo clipe, divulgado nas redes digitais em 2018, mostra a cantora com o seu marido, o cantor e compositor Jay-Z, e bailarinas e bailarinos negros, no Museu do Louvre, na França. A crítica que perpassa todo o vídeo é em relação a esse local, expoente máximo das artes plásticas no mundo, onde se vê muito pouco da arte que representa ou é feita por negras e negros, escancarando assim para o mundo inteiro (o vídeo teve milhares de visualizações em pouquíssimo tempo) mais uma das desigualdades que existe entre pessoas brancas e negras.

Cena de “Apes**t” (2018), gravado no Museu do Louvre

Ou seja, com o passar dos anos fica cada vez mais explícito como existe um aspecto político e empoderador de pessoas negras que norteia os trabalhos que Beyoncé vem desenvolvendo. Além de compor vídeos e músicas que criticam diretamente a desigualdade de gênero e raça, ela está empenhada em mostrar ainda como é possível que pessoas negras cheguem a posições nas quais estamos acostumadas a ver somente pessoas brancas. O próprio fato de Beyoncé ser uma mulher negra e ter chegado aonde chegou já é algo que estimula e mostra, de alguma forma, que é possível que outras mulheres negras também cheguem aonde elas quiserem chegar; afinal, até pouco tempo atrás, elas nunca tinham sequer visto uma mulher negra ocupando esses lugares.

É preciso, entretanto, fazer a ressalva de que Beyoncé é parte de uma engrenagem cultural em que bilhões de dólares circulam diariamente. Isto é, a cantora é também uma grande marca que gera lucros, o que estimula o consumo de mercadorias, a exploração de mão de obra e o aumento das desigualdades sociais. Nesse sentido, critica-se a capitalização que ela acaba operando em cima das pautas identitárias que ela abraça. A teórica feminista bell hooks, em seu texto “Moving beyond the pain”[2], de 2016, já alertava para esse aspecto da obra de Beyoncé quando da explosão do álbum Lemonade. Para ela, “ganhar dinheiro não tem cor” e o que a cantora estaria fazendo seria tratar corpos negros como mercadorias, o que, historicamente, não é nem um pouco revolucionário. Além disso, a intelectual critica o feminismo de Beyoncé quando ela apenas defende direitos iguais para homens e mulheres ao invés de lutar pelo fim da dominação patriarcal e capitalista. Em outras palavras, a autora defende que é preciso problematizar a luta de gênero e raça que Beyoncé pratica se essa luta não quiser alterar o verdadeiro poder do patriarcado, o qual sustenta e perpetua as desigualdades.

A discussão proposta por bell hooks parte de questões que estão sendo debatidas pelo feminismo há algum tempo, sobretudo pelo feminismo negro. Seguindo tal viés teórico, o trabalho de Beyoncé acabaria por representar, em geral, um empoderamento da mulher negra que é vazio diante da dominação patriarcal e capitalista. Nesse sentido, hooks chama atenção para o fato de que gênero, cor, classe social e sexualidade são particularidades que precisam ser interseccionadas quando falarmos em feminismo. Essa questão extremamente importante tem sido pensada por diversas autoras negras e feministas, como Angela Davis e Audre Lorde. Elas também defendem, em linhas gerais, que só a partir do reconhecimento dessas particularidades é que será possível dizer que o feminismo é uma luta pela igualdade de todas as mulheres.

A intenção desse post é, por sua vez, além de contextualizar minimamente todas essas questões, iniciar uma série de posts sobre feminismo negro e sugerir leituras para quem quiser se aprofundar no tema. E é a própria Beyoncé que nos dá inspiração para começar essa lista de sugestões, a partir de algumas citações[3] de escritoras negras e feministas que aparecem ao longo de seu documentário. Apesar das inúmeras críticas que podem ser feitas à cantora, é preciso reconhecer que seu trabalho de representatividade e de divulgação da cultura negra tem uma potencialidade imensa. Que tal aproveitar esse incentivo para lermos mais escritoras negras?

Toni Morrison, prêmio Nobel de literatura

1) A citação que abre o documentário, “If you surrender to the air, you can ride it” / “Se você se render ao ar, você pode voar”, é da escritora estadunidense Toni Morrison, ganhadora do prêmio Nobel de Literatura, em 1993. No Brasil, vários de seus livros já estão traduzidos, inclusive o mais conhecido, o romance Amada.

2) Alice Walker é uma escritora de prosa, poesia e ensaios, também nascida nos Estados Unidos. Com sua obra mais famosa, A cor púrpura, de 1982, ela ganhou prêmios importantes, como o National Book Award e o Pulitzer. Esse livro está traduzido para o português.

3) Apesar de Danai Gurira ser mais conhecida por sua personagem Michonne, da série The Walking Dead, a atriz estadunidense também escreve peças de teatro; entre elas, Eclipsed, que foi encenada na Broadway.

4) “Without  community there is no liberation” / “Sem comunidade, não há libertação”. A frase da poeta e ensaísta Audre Lorde é um importante lembrete de que precisamos pensar e agir sempre coletivamente, pois individualmente não seremos jamais livres. Em breve, faremos um post especial sobre ela, mas já deixamos a dica de que seu livro de ensaios, Irmã outsider, está prestes a ser lançado no Brasil.

5) Outra gigante literária que aparece em Homecoming é Maya Angelou. Apesar de sua poesia ainda não estar traduzida no Brasil, sua obra-prima, Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, assim como Mamãe & Eu & Mamãe, são alguns de seus livros em prosa publicados em português. Além disso, se você quiser conhecer um pouco mais sobre sua vida e produção artística, também está disponível na Netflix o documentário Maya Angelou: And Still, I Rise.

A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie

6) Fechamos essa lista com uma indicação de ouro: Chimamanda Ngozi Adichie. A escritora nigeriana está presente tanto no álbum Lemonade, quanto em Homecoming. Em ambos, há trechos da palestra “Sejamos todos feministas”[4], de 2012, que se tornou um texto-guia para a introdução ao feminismo no mundo todo. No Brasil, a escritora é um fenômeno e seus livros podem ser encontrados facilmente. Americanah, Hibisco roxo, Meio sol amarelo e No seu pescoço, além do livro introdutório Para educar crianças feministas, são alguns dos títulos já publicados em português.

[1]  Beyoncé, dançarinas e dançarinos vestiram figurino semelhante ao que os militantes usavam nos anos 1960. Além disso, a cantora mencionou o movimento Black Lives Matter.

[2] O texto completo pode ser lido em: http://www.bellhooksinstitute.com/blog/2016/5/9/moving-beyond-pain. Uma tradução para português está disponível em: https://www.geledes.org.br/mover-se-alem-da-dor-bell-hooks/

[3] Todas as citações que aparecem no filme, não apenas as literárias, estão elencadas nessa publicação, em inglês: https://www.bustle.com/p/all-the-quotes-in-homecoming-show-beyonces-commitment-to-recognizing-great-black-thinkers-17044727

[4]  A palestra está disponível online e é possível assisti-la com legendas em português: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_we_should_all_be_feminists

Cartoneras: a publicação de livros como instrumentos de resistência

Ao longo dos últimos meses, temos visto uma série de notícias sobre a crise do mercado editorial no Brasil. Sem entrar na discussão sobre o que é real e o que é especulação nesse cenário, o fato é que grandes redes e conglomerados editoriais brasileiros (e é preciso deixar claro: sustentados muitas vezes por empresas e capitais estrangeiros) estão lidando com dívidas exorbitantes, fechamento de lojas, demissão de funcionários e muitas outras perdas pelo caminho. Com isso, nós, leitoras e leitores, também perdemos alguma coisa.

Porém, paralelamente a essa situação, existe um respiro no mercado editorial com o qual ganhamos muito mais e que, por isso, merece nossa atenção. Pequenas editoras independentes têm ocupado os espaços literários em nosso país com livros de qualidade, produzidos segundo uma lógica totalmente diversa daquela praticada por editoras de grande porte. E é através da existência desse outro cenário editorial que as Cartoneras têm ganhado cada vez mais destaque, com uma proposta de publicação baseada em critérios bastante originais.

No início dos anos 2000, em Buenos Aires, na Argentina, surgiu a cooperativa Eloísa Cartonera com o objetivo de encontrar alternativas à crise econômica que ocorria no país e, ao mesmo tempo, tornar a literatura mais acessível para a população. Foi assim que se concretizou a ideia de utilizar papelão, recolhido nas ruas da cidade por catadoras e catadores de papel, para criar livros costurados e pintados à mão individualmente. O papelão, que a princípio seria descartado como lixo, ganha novo significado e se transforma em capas coloridas e únicas para livros impressos a um custo reduzido. Dessa forma, tal processo de confecção possibilita, além da reutilização de materiais recicláveis, a comercialização de livros por preços mais baixos. Não é à toa que, em pouco tempo, o projeto adquiriu importância e reconhecimento e publicou, além de escritoras e escritores estreantes, nomes renomados da literatura argentina, como Ricardo Piglia e César Aira.

Antologia do poeta brasileiro Haroldo de Campos, publicada em edição bilíngue pela Sarita Cartonera (Lima, Peru), em 2005

Foi em 2006, por ocasião da 27a Bienal de São Paulo, cujo tema era “Como viver junto”, que a experiência de Eloísa Cartonera finalmente chegou ao Brasil e começou a se estabelecer aqui graças ao trabalho de Lúcia Rosa. Em 2007, a partir da parceria entre Lúcia, Peterson Emboava e outros integrantes da cooperativa argentina, surge enfim a Dulcinéia Catadora, editora pioneira na editoração cartonera em nosso país.

Dulcinéia Catadora está localizada em uma cooperativa de reciclagem, na cidade de São Paulo. Já publicou cerca de 130 títulos e vendeu mais de 12 mil exemplares, conforme números informados no site da editora. A equipe também tem realizado oficinas em outros ambientes, divulgando e reunindo cada vez mais apoiadores. No catálogo de publicações, entre livros de poesia, contos e teatro, vemos nomes de autores estreantes, que graças à editora puderam ter seus trabalhos publicados pela primeira vez, assim como estão presentes grandes figuras da literatura brasileira contemporânea, como Alice Ruiz, Plínio Marcos e Manoel de Barros.

Tive a oportunidade de conversar, por e-mail, com Lúcia Rosa no final do ano passado, quando ela me contou um pouco mais sobre o coletivo. Lúcia explicou que a editora norteia suas atividades seguindo valores como “troca, sustentabilidade, luta contra a invisibilidade, compartilhamento do sensível, acesso à literatura e construção de vias alternativas para a divulgação de autores não inseridos no mercado editorial tradicional”. Por se sustentar em ideais como esses, ela afirma que a Dulcineia Catadora é “um coletivo com uma ação ativista”.

Segundo essa perspectiva, o livro é então tratado como um “instrumento de resistência”, que foge da “produção em larga escala, cada vez mais sem sentido,  resultado de uma produção fria, massificante”. De acordo com Lúcia, essa atitude de resistência também molda o processo de seleção dos títulos que serão publicados, afinal prioriza-se o experimentalismo de quem escreve, mais do que a preocupação por vender livros: “como o lucro não é nosso objetivo, ficamos livres para divulgar autores que não desenvolvem uma literatura de fácil apelo”.

Fonte: dulcineiacatadora.com.br

Movida por essa possibilidade de ressignificação do objeto livro, a escritora ítalo-brasileira Francesca Cricelli publicou pela Dulcinéia Catadora, no início deste ano,  sua primeira prosa, Errância. No livro são narradas suas experiências de deslocamento e viagem, tema que pauta suas experiências pessoais e literárias desde que se mudou para a Itália quando ainda era criança. Na entrevista que realizamos em dezembro do ano passado, Francesca contou como aceitou o convite para publicar esse livro por uma editora cartonera antes de publicá-lo por uma editora não artesanal. Ela acredita que “usar materiais recicláveis nos ajuda a ter uma consciência maior”, o que altera a experiência de publicação: “conhecer pessoalmente quem fabricou e editou o seu livro é algo que transforma a relação com o objeto”.

Francesca declarou ainda que acredita na importância de sermos “cupidos da leitura”, facilitando o “enamoramento entre leitor e livro”. Para a escritora, é essencial estarmos atentos à formação de leitores e, nesse sentido, Lúcia aposta na aproximação através do trabalho artesanal que envolve cada publicação cartonera: “para chegar às mãos do leitor os livros precisam ir além, somando linguagens; precisam ter como diferencial aquela fatura artesanal, cuidadosa, criativa e pessoal que marca as produções independentes”.

Errância, de Francesca Cricelli, publicado por Dulcinéia Catadora em 2018

O processo de fazer esses livros chegarem às mãos dos leitores se torna assim um movimento que também passa a ser ressignificado, mostrando que o encontro entre leitores e livros não se dá apenas em ambientes virtuais ou livrarias tradicionais. Para que isso possa acontecer, Francesca considera importante a “itinerância editorial” possibilitada pela existência de feiras e eventos literários que modificam a cena atual da literatura no Brasil. “Há uma proliferação de eventos literários em que a venda dos livros acontece em paralelo; acho que estamos há um tempo inventando novas formas de existirmos no campo editorial”, declara a escritora. Nesses ambientes, ela destaca ainda como é possível encontrar momentos “de alegria e efusividade, pois compram-se os livros, conhecem-se autores e editores”, resultando em trocas diretas entre as várias etapas que fazem parte da publicação de um livro.

A experiência das cartoneras tem ainda conquistado novos territórios, por exemplo, viajando por outros continentes e motivando pesquisas em universidades. A pesquisadora Liz Gray, doutora em Literatura Comparada pela Brown University, defendeu recentemente sua tese sobre as poéticas de intervenção na América Latina, pensando como as crises econômicas causadas pelo modelo neoliberal de produção e consumo acabaram por motivar nos países latino-americanos justamente o surgimento de práticas alternativas de ativismo, as quais estão relacionadas à arte e à literatura. Parte de sua pesquisa se volta à produção cartonera, inclusive às iniciativas brasileiras, como a de Dulcinéia Catadora.

Além disso, pude assistir, em 2018, a uma apresentação da professora e pesquisadora Paula de Paiva Limão, da Università degli Studi di Perugia, na qual foi abordado o tema das editoras cartoneras. Paula mencionou encontros e eventos realizados recentemente na Europa e nos Estados Unidos, nos quais a produção cartonera foi o tema central, o que demonstra a disseminação desses projetos ao redor do mundo. Outro ponto analisado por Paula foi como existe uma característica que unifica essa prática em todas as experiências analisadas por ela: as Cartoneras criaram espaços onde circulam a voz e o trabalho de mulheres. Desde as catadoras de papelão, relegadas às margens da sociedade não apenas por seu gênero mas também por sua classe social, até a escritoras e editoras, que participam da publicação desses livros, observamos o envolvimento de mulheres que assumem uma posição essencial na editoração cartonera.

Projetos como esses, entre tantas outras iniciativas menores e independentes que têm surgido nos últimos anos, mostram que uma outra forma de existência é possível, em alternativa ao sistema dominante que vê na publicação de livros uma oportunidade de lucrar com o consumo de literatura. É uma luta desproporcional tentar medir forças com o capital e com o consumismo, mas não podemos deixar de participar de uma batalha só porque ela vai ser difícil de vencer. Seguimos!

Para saber mais sobre as Cartoneras:

Um passeio pelas sensações do Inferno n’A Divina Comédia, por Laís Pereira

O Marca Páginas abre espaço para receber a contribuição de Laís Pereira, graduada em Letras e graduanda em Estudos Literários pela Unicamp, sobre um campo de pesquisa conhecido como Materialidades da Comunicação. Laís traz ainda um trecho do poema italiano A Divina Comédia para mostrar como essa teoria pode ser aplicada à análise de uma obra literária.

Esse é mais um exemplo do tipo de pesquisa que tem sido desenvolvida no Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, na área dos Estudos Literários. Obrigada, Laís, por sua contribuição e boa leitura a todas e todos!

 

Um passeio pelas sensações do Inferno n’A Divina Comédia

Laís Souza Toledo Pereira

 

Você já sentiu um arrepio escutando alguma música, mesmo sem entender muito bem o que estava sendo cantado ou apenas tocado? E ao ouvir alguém recitar um poema ou ler algum romance, você já sentiu algo parecido? Existem textos que te deixam alegre ou triste sem você saber explicar exatamente o porquê?

O escritor italiano Dante Alighieri (1265-1321)

Quando pensamos no estudo de um texto literário, geralmente imaginamos que o pesquisador vai lê-lo e propor uma  interpretação a ele, ou seja, vai investigar e analisar um ou vários sentidos desse texto. Em muitos casos, talvez na maioria deles, é isso que acontece mesmo. No entanto, um pesquisador alemão chamado Hans Ulrich Gumbrecht propôs, na década de 1980, uma nova forma de olhar para esse método interpretativo. Segundo Gumbrecht, pesquisadores de ciências humanas poderiam, mais do que apenas interpretar textos literários, músicas, filmes, pinturas etc., também se preocupar com os efeitos que essas obras causariam no corpo de leitores e espectadores (como um arrepio), assim como com as sensações que não conseguimos captar ou explicar apenas por meio da linguagem (por exemplo, não saber dizer o motivo de um texto nos deixar alegres ou tristes).  

Foi com essa proposta que Gumbrecht fundou, no departamento de literatura comparada da Universidade de Stanford, o campo teórico ou a linha de pesquisa das Materialidades da Comunicação. O próprio termo materialidades é uma referência a esse universo do que é material, concreto, físico, distanciando-se do que seria considerado mais abstrato, como a busca pelos sentidos. Essa ideia indica quais são os interesses dessa outra forma de compreender as coisas do mundo, apontando para uma mudança de paradigma nos estudos culturais e literários. Porém, se a busca pelo sentido não é o objetivo principal desse novo campo teórico, como então relacioná-lo às obras de arte?  

Hans Ulrich Gumbrecht

Para responder a essa pergunta, o pesquisador desenvolveu a noção de atmosfera, partindo da palavra alemã Stimmung. E, apesar de essa não ser uma palavra tão assustadoramente grande quanto outras palavras do idioma, esse é um termo complexo, já que, dentro dele, há dois sentidos que a simples tradução para a palavra atmosfera, em português, não consegue captar. Gumbrecht sugere, tendo em mente a tradução do termo para o inglês, que uma forma de entender o conceito de atmosfera seria juntar os significados das palavras mood e climate. Mood se referiria a uma sensação interior, um humor interno, um estado de espírito individual e subjetivo de difícil delimitação. Já climate, por outro lado, indicaria um fenômeno externo, algo objetivo, que está ao redor das pessoas e exerce alguma influência coletiva e física sobre elas. Assim, o pesquisador delimita que o seu interesse de pesquisa é em relação a essas atmosferas absorvidas pelas obras de arte e aos efeitos que elas podem causar no nosso corpo (ideia a que ele dará o nome de efeitos de presença).

Esses conceitos podem parecer complicados, mas é interessante notar como a gente já acaba usando, às vezes sem perceber, ideias parecidas com eles no nosso cotidiano. Acontece quando dizemos, por exemplo, que um conto ou um filme de terror tem uma atmosfera sinistra ou um clima tenso, já que não há ali um elemento específico e isolado que explique o sentido dessa sensação. Outra situação similar acontece quando dizemos que um cantor ou uma atriz tem presença de palco. Novamente, com essa expressão queremos dizer que fomos tocados de alguma forma e, mesmo que não saibamos explicar muito bem o que aconteceu para sermos tocados, percebemos que o nosso corpo foi afetado por sensações causadas pela obra e por sua execução.

Vejamos então um exemplo concreto para nos ajudar a entender melhor essa ideia no campo dos estudos literários. Você já ouviu falar do poema A Divina Comédia? Ele foi escrito por Dante Alighieri por volta do ano de 1300 e, segundo estudiosos e críticos, teria sido um texto fundador da noção de homem moderno, por deslocar o centro das discussões intelectuais de um universo de controle e certeza, ligado a Deus e à religião, para um homem questionador, insubmisso, para quem o mundo é instável e repleto de dúvidas éticas. Na obra, o escritor criou, de acordo com sua autoria, um Inferno, um Purgatório e um Paraíso, e distribuiu nesses espaços pessoas famosas – como escritores e papas – e também pessoas que ele chegou a conhecer pessoalmente. No livro, essas esferas inventadas seriam visitadas pelo próprio Dante, ainda em vida, transformando o escritor no personagem protagonista de sua obra. No Inferno e no Purgatório, ele seria guiado pelo poeta clássico Virgílio. Posteriormente, no Paraíso, estaria acompanhado de sua amada, Beatriz. Dessa forma, o livro é dividido em 3 partes, que por sua vez estão organizadas em 100 cantos no total.

Vamos então conhecer um trecho do Inferno visitado por Dante e pensar como a ideia de atmosfera pode nos ajudar a propor uma possível leitura para a obra italiana. De acordo com a tradição católica, o Inferno foi criado pela queda de Lúcifer, um anjo rebelde que foi expulso do Paraíso por querer construir seu trono acima de Deus. A queda desse anjo teria dado ao Inferno um formato de funil e o próprio Lúcifer ficaria, a partir de então, no centro da Terra. Dante seguiu essa tradição de representação ao compor o seu Inferno e dividiu a imagem do funil em círculos, somando nove no total. Seguindo uma hierarquia conforme a gravidade dos pecados, o poeta colocou em cada círculo um tipo de pecador, sendo que os piores pecadores são aqueles localizados mais próximos ao 9º círculo.

Ilustração do Inferno por Gustave Doré

Pensando nessa classificação, acredito que seja possível dizer que Dante atribuiu a cada círculo uma atmosfera diferente e, mais do que isso, a atmosfera (climate) de cada um desses lugares é de alguma forma parecida com o estado de espírito (mood) dos pecadores que se encontram ali. Para tornar isso mais claro, vejamos, por exemplo, o que acontece no segundo círculo do Inferno, apresentado no Canto V do livro. Nesse círculo, estão os pecadores luxuriosos e pode-se dizer que é nele que começa realmente o Inferno[1]. Os versos desse canto, que vão do 25 ao 45, são comumente conhecidos como “os da tempestade e os luxuriosos” ou da “ventania”. No trecho a seguir, podemos visualizar melhor essa ideia:

 

Os tristes sons começo a perceber

Do lugar aonde eu vim, onde queixume

E muito pranto vêm me acometer

 

Vim a um lugar mudo de todo lume

Que muge como mar que, em grã tormenta,

De opostos ventos o conflito assume.

 

A procela infernal, que nunca assenta,

Essas almas arrasta em sua rapina,

Volteando e percutindo as atormenta.

 

Quando chegam em face à ruína,

Aí pranto e lamento e dor clamante,

Aí blasfêmias contra a lei divina.

 

Entendi que essa é a pena resultante

Da transgressão carnal, que desafia

A razão, e a submete a seu talante.

 

Como estorninhos que, na estação fria,

Suas asas vão levando, em chusma plena,

Aqui as almas carregam a ventania,

 

E a revolver pra cá e pra lá as condena;

Nem a esperança lhes concede alento,

Não já de pouso, mas de menor pena.

 

A atmosfera desse trecho tem justamente a ver com essas formas pelas quais ele ficou conhecido, isto é, uma atmosfera de tempestade, de agitação, de perturbação. O climate em que os pecadores estão envolvidos corresponde por sua vez ao mood deles, e as almas nesse local são arrastadas para cá e para lá por uma tempestade, uma ventania. São levadas por uma força que elas não conseguem controlar, da mesma forma como o nosso espírito é arrastado quando arrebatado por uma paixão e a razão se submete aos desejos.     

Essa atmosfera de perturbação também reforça a dúvida que Dante apresenta, no Canto V, ao conversar com Paolo e Francesca, um casal de amantes impossibilitados de viver esse relacionamento em vida devido às suas relações familiares. São, por causa desse amor proibido e do pecado do adultério, condenados como luxuriosos e passam a viver na ventania do Inferno. É possível perceber que Dante, por sua vez, não condena facilmente os luxuriosos diante dessa narrativa, diferentemente do que faz com os indiferentes[2]. Por isso nós, leitoras e leitores, nos vemos diante de alguns questionamentos suscitados por sua descrição: as pessoas que cometem traições merecem mesmo uma penitência tão dura? O pecado delas poderia ter sido simplesmente amar? E esse amor, não poderia ser entendido então como uma virtude, inclusive criadora da vida? Mesmo na concepção cristã, para que os indivíduos deem vida a outros indivíduos, isto é, para procriarem, é a força do amor de Deus que deve entrar em seus corpos e estimular uma ação. Por que então não entender o amor que motiva essas traições ambíguas como um amor ao mesmo tempo humano e sublime?

Ilustração de Francesca e Paolo por Gustave Doré

Dante coloca as questões, mas não dá as respostas. Entretanto, foi suscitando dúvidas como essas e criando atmosferas e sensações (talvez mais do que delimitando significados nítidos para os sentimentos e os ambientes descritos) que, com A Divina Comédia, não apresentou um texto moralista (no mau sentido da palavra), mas sim contribuiu para alterar a forma como a humanidade era entendida. Mais do que isso, foi um dos fundadores, na literatura, da ideia do homem moderno; esse homem em crise, questionador do mundo e de si, instável e cheio de dúvidas éticas, pois não estaria mais submisso à rigidez da lógica divina. A humanidade, enfim, como a entendemos hoje. E é graças a novos métodos de análise, como o das Materialidades da Comunicação, e à grandeza de uma obra como essa que ainda hoje temos muito o que pensar e dizer sobre literatura.

[1] Antes, Dante havia passado por uma espécie de antessala do Inferno – um lugar especialmente horrível onde estão os indiferentes –  e pelo Limbo – um lugar mais bacana, onde estão pessoas virtuosas que não são punidas, mas que também não podem entrar no Paraíso por não terem sido batizadas. Virgílio, por exemplo, habita um castelo que fica dentro desse círculo, junto de outros grandes pensadores.

[2] O filme As Pontes de Madison, dirigido por Clint Eastwood e protagonizado por ele e por Meryl Streep, é inspirado nessa cena de A Divina Comédia e, na minha opinião, capta bem essa atmosfera tempestuosa, mais de dúvida do que de condenação, que envolve a relação entre os amantes. Vale a pena assistir, mas não se esqueça de separar um lencinho.  

Sugestões de aprofundamento

  • A Divina Comédia, de Dante Alighieri [Tradução, comentários e notas de Italo Eugenio Mauro; prefácio de Otto Maria Carpeaux. São Paulo: Editora 34, 2016].
  • Atmosfera, ambiência, Stimmung: sobre um potencial oculto da literatura, de Hans Ulrich Gumbrecht [Tradução de Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC Rio, 2014].
  • Em 2018, foi publicada uma entrevista da Dra. Luciana Molina Queiroz com o Prof. Hans Ulrich Gumbrecht na Revista Remate de Males do IEL (Unicamp): https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8652568
  • Em 2017, o Dr. Matheus de Brito deu uma entrevista ao Prof. Fábio Durão no programa Pesquisa em Pauta, pela TV Unicamp, na qual ele fala sobre sua tese de doutorado acerca das Materialidades da Literatura: https://www.youtube.com/watch?v=dPntdvQmjCM 

Literatura, política e resistência! “Isso que passa hoje na nossa cara”, de Janaina Pessoa

Isso que passa hoje na nossa cara é um negócio assim de cair
o cu da bunda
As gentes me ligam chorando
as gentes choram sem lágrimas
e eu – comigo mesma,
agarrada
no Ibope
no Datafolha
na boca de uma urna
agarrada
aos meus pequenos pertences
aos meus pequenos rastros e certezas
e olho bem de longe
que é pra doer menos e acaba que dói igual
Porque o que eu sei é isso que a gente sabe
e o que os outros não veem
Aquela travesti morta ontem
Aquela menina espancada e marcada
Aquele índio – aquele negro – aquele abecê das minorias em risco
aquela novela ridícula coitadinha aquela ladainha

E aquela outra metade do povo delirante
andando rápido em marcha fúnebre
caindo caindo caindo
nessa espiral de ódio que sufoca intermitente a travesti já morta ontem
e de novo hoje
Em lancinantes coreôs verdearamelas
Eles gritam nomes sujos de sangue dos vermelhos, esse nosso sangue bandeira

Pequena pausa para o
(Parágrafo 64: existe comunismo no mundo e que perigo o comunismo no mundo a Venezuela o comedor de criancinha o kitgay o kitkat o homem do saco eles vêm roubar seu quarto e sala na Tijuca vêm cagar na sua sala eles não têm dentes e eles comem caviar, não, não estamos confusos, não, isso é culpa da Dilma e do pt, esses comunistas)
Fim da pequena pausa

Mas nossa metade também delirante de um medo concreto
pois que risco corre esse sujeito na cidade,
essa roleta russa que é sair de casa sendo?
Nossa metade delirante que não juntou os trapos dos seus planos de país
e ao invés
correu sôfrega atrás de um plano de poder de pt de sifudê
Nossa metade delirante que escolheu não falar a língua das multidões
e anda surda pelas ruas sujas do RJ do SP
andam de mãos dadas ou em cirandas incansáveis na Lapa e falam
-heteronormativo-
como se fora
feijão
na boca do povo

E olha
não é
O povo é uma entidade mágica
faz coisas que desconhecemos
escreve sua história difusa em código morse
atrás de geladeiras compradas em 12 vezes
sem juros ou
Jogam caxangá com pepitas verdes e cada pedra é um jogral que se decora
e cada jogral é uma época e cada mão uma revolução ou
o povo escreve a história dele no chão de barro,
madeira, ferro, mosca, cão passa em cima e mija, jumento, chuva, asfalto,
vem menino e reescreve com cuspe, a história da vida aperreada dele
ou
escreve suas sagas em filigranas de ouro, no meio do oceano.
Qualquer coisa que eu diga aqui é verdade porque tudo é já
mentira.

Perdemos o que nessa escalada violenta, você perdeu o quê?

Eu queria ter uma última coisa pra dizer
Mas eu não tenho
só leio o que vocês leem
só sei o que vocês sabem
só vejo o que vocês veem
Nada a acrescentar: palavras repetidas, inúteis, bobinhas.
Mas vou dizer sem ter o que dizer mesmo:
estamos perdidas, irmãs. Perdidas e mal pagas.

Exaustas da suavidade das nossas escolhas
Exaustas da tacanhice das escolhas dos outros
Exaustas e mal começou
Mas também enxutas limpas coração de leão
E o andrade
esse minino,
esse minin bom bonito bom
E eu
cheia de desiderio no meu cuore
No meio da Itália, no meio desses estranhos
Cheia de desiderio de democracia
E vem essa infecção esse câncer essa seiva essa seta me fuder
no meio do meu desiderio
me Fuder de pau mole
e chamam a isso de suruba
mas na suruba todo mundo goza
e aqui nisso aqui que eu vejo da tela do meu computador,
tem um ou dois, o resto finge rindo um riso amarelo de oprimido
enquanto uma multidão tenta entrar no motel com foices e flores
Era isso.
Domingo eu voto.

PS: Esse poema foi escrito e lido pela querida Janaina Pessoa, e emocionou todo mundo no encontro do Mulherio das Letras que aconteceu em Perugia – Itália, no dia 26 de outubro de 2018. Domingo, dia de eleição, dizemos com poesia aquilo que gostaríamos que fosse ouvido e ecoado hoje por todo o Brasil. Obrigada, Janaina, por compartilhar a força das suas palavras com a gente. Resistimos!