Literatura, Política e Resistência! As Mulheres dos Estudos Literários

Ontem, dia 26 de outubro de 2018, tive a honra e a alegria de participar de um encontro do Mulherio das Letras. Esse grupo de mulheres, que se auto-organizou em 2016/2017 para dar voz à literatura lida e escrita por mulheres, é um dos movimentos mais lindos que já vi acontecer no Brasil. E poder estar pessoalmente com essas tantas mulheres foi uma experiência que iluminou minha jornada e renovou minha fé na vida. Então, eu gostaria de compartilhar aqui com vocês o que eu apresentei lá ontem. Eu queria dizer para todas nós, mulheres, que sabemos que nossa luta nunca foi fácil, mas que nossa força renascerá sempre que precisarmos ser resistência. Às vésperas do segundo turno das eleições brasileiras, eu queria lembrar cada mulher que eu conheço, e cada mulher que vocês conhecem, de que floresceremos quantas vezes forem necessárias! Meu amor por todas vocês <3

 

Flash mob pela democracia em Perugia

 

As Mulheres dos Estudos Literários

Cláudia Tavares Alves

 

Outubro Literário: Mulherio Europa em verso e prosa

Università degli Studi di Perugia – Italia

26/10/2018

 

Bom dia. Gostaria de agradecer ao cuidado da organização, sempre tão prestativa, e à escuta de vocês aqui hoje. Pensando em como eu poderia começar esta apresentação, me dei conta de que seria possível partir de muitos pontos diferentes para abordar o tema das Mulheres nos Estudos Literários. Eu poderia, por exemplo, começar me apresentando, dizendo que sou doutoranda na Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, que estudo literatura há 11 anos, e que atualmente estou na Itália fazendo um estágio de pesquisa sobre o escritor Pier Paolo Pasolini. Ou eu poderia começar dizendo que tenho um blog de divulgação científica sobre Literatura, o Marca Páginas, vinculado a um portal de blogs da Unicamp, e que nele mantenho uma série de publicações que se chama, justamente, as Mulheres dos Estudos Literários. Eu poderia também citar alguma escritora mulher que se dedicou a pensar sobre seu próprio fazer literário ou a teorizar a produção literária existente, e daí pegar um gancho para pensar a relação das mulheres com a Literatura. Quem sabe eu poderia ainda começar pela situação caótica e horrenda que estamos vivendo em nosso país e como, enquanto mulheres brasileiras, temos visto nossos direitos mais básicos serem ameaçados por um candidato à presidência. E que pouco importa não estarmos fisicamente no Brasil nesse momento de instabilidade política, continuamos sendo brasileiras onde quer que estejamos.

Apesar dessas tantas possibilidades, escolhi começar minha apresentação dizendo que hoje estou aqui não só como Cláudia Tavares Alves, mas também como alguém que conversou e ouviu companheiras da área dos Estudos Literários e que, por isso, acredita que tem algo a dizer sobre o assunto. Estou aqui como uma mulher que foi silenciada e que viu serem silenciadas diversas outras mulheres ao longo desses 11 anos de estudo e pesquisa. Estou aqui como alguém que teve que lidar durante todo esse tempo com a sensação de incapacidade, de inferioridade e de não merecimento por ocupar os lugares que ocupa e que sabe que, infelizmente, seu caso não é único nem isolado. Por isso, ainda que falando em nome de outras mulheres, é difícil não conjugar esses verbos na primeira pessoa do singular: essas experiências foram sentidas no meu corpo, na minha pele, na minha mente. E mesmo que elas não tenham acontecido exclusivamente comigo, como pude confirmar com os depoimentos que recolhi, é sempre difícil despir-se das próprias experiências individuais para falar em nome de alguma coletividade.

Mas talvez a primeira e mais importante coisa que preciso dizer antes de desdobrar esse ponto é que, de todos os inícios que imaginei, nenhum deles poderia ser imparcial ou apolítico. Estar aqui hoje, ao lado de mulheres extremamente fortes e capacitadas, é um gesto político que não podemos perder de vista. Hoje, na Itália e no Brasil, somos vozes políticas que ressoam, que lutam, que resistem. Um encontro de mulheres para falar sobre Literatura em suas diversas manifestações só pode ser um gesto político e, nesse sentido, precisamos nos lembrar de que estamos reunidas hoje por nós mesmas, e também pelas outras tantas mulheres que não puderam estar aqui.

E pensando nas Mulheres dos Estudos Literários, não consigo evitar a ideia de que temos feito tantas coisas apesar de. Apesar do machismo, dos espaços reduzidos, do silenciamento, da insegurança, do pouco incentivo e investimento, hoje temos uma rede de mulheres lendo, escrevendo, traduzindo, estudando, produzindo conhecimento de alta qualidade. Se historicamente precisamos lembrar que nosso lugar foi por muito tempo reservado a trabalhos domésticos, hoje, pelo contrário, somos maioria no Ensino Superior[1]: ocupamos 57,2% das vagas das universidades brasileiras. Esse número, entretanto, não corresponde ao número de professoras universitárias: nesse caso, somos ainda 45,5% do total de docentes de Ensino Superior em nosso país. Um número bastante baixo se pensarmos que, na Educação Básica, 80% são de professoras do sexo feminino.

Esses números foram divulgados pelo INEP (Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa), em 2016, e, para além dos dados quantitativos, tive contato com uma série de depoimentos que me fizeram perceber como não foram tantas as professoras mulheres que em geral tivemos na graduação no que se refere a crítica, teoria e história literária. Mesmo sendo uma área ligada a Letras, na qual majoritariamente vemos mulheres se graduando, a Literatura, por algum tempo, foi um território tomado por homens. Por isso foi e ainda é bastante comum que professoras sejam referenciadas, em geral, apenas como professoras, enquanto que os professores homens podem ser professores, escritores, intelectuais, renomados e reconhecidos por seus sobrenomes.

E o que dizer ainda das mulheres que foram e são sutilmente apagadas da história? Penso, por exemplo, em quantas de nós chegamos a ler Gilda de Melo e Sousa ou Viviana Bosi, grandes pensadoras e professoras universitárias de Literatura. Com certeza, não na mesma proporção com que lemos Antonio Candido e Alfredo Bosi. É claro que não estou aqui diminuindo a importância desses críticos literários devido ao seu gênero masculino, mas me pergunto há algum tempo por que será que lemos tão poucas mulheres em todas as etapas de nossa formação escolar e universitária. Me pergunto, por exemplo, por que quando me formei, em 2006 no Ensino Médio, minhas referências literárias de escritoras estavam reduzidas a Clarice Lispector, Cecília Meirelles e Lygia Fagundes Telles. Isso porque sempre fui uma aluna que gostava de Literatura, tive boas condições econômicas para adquirir livros e me interessava em ler para além das leituras obrigatórias. Quantas das minhas colegas pararam em Machado de Assis e Graciliano Ramos, e nunca souberam dos livros incríveis que foram escritos também por escritoras mulheres?

Atualmente, com as ondas do feminismo e os movimentos sociais que têm trazido para as esferas institucionais esse tipo de debate, podemos perceber um certo esforço em querer modificar esse cenário. Para pensarmos em exemplos concretos, trago a lista de leituras obrigatórias proposta pelo vestibular da Unicamp. Ele é historicamente considerado inovador e progressista no sentido de priorizar a capacidade de reflexão crítica dos candidatos. Além disso, tem sua própria lista obrigatória de leituras, a qual é uma das mais atentas às discussões atuais e busca sempre inovar e dialogar com as questões contemporâneas. Pudemos ver, recentemente, a inserção das canções do álbum Sobrevivendo no Inferno, do grupo de rap Racionais MC’s, como leitura literária obrigatória. Essa escolha, com certeza, representa uma quebra importante de paradigmas dentro do que pode ou não ser considerado Literatura.

Porém, já se deram conta de que a primeira vez que uma obra literária escrita por uma mulher esteve nessa lista foi em 2016, com o conto “Amor”, de Clarice Lispector? E por mais que exista um esforço em alterar essa situação, ela não melhora tanto assim com o passar dos anos. Antes de 2016, a lista era composta por 9 livros escritos por homens e nenhum por mulheres. Depois de 2016, a lista passou a ser composta por 12 leituras e apenas um conto escrito por uma mulher foi incorporado a ela.

Para as listas de 2019 e 2020, já anunciadas, a situação apresenta uma melhora que deve ser considerada. Dentre as 12 leituras obrigatórias, agora temos 3 escritas por mulheres. Em 2019, além do já mencionado conto de Clarice, temos o livro de poemas A teus pés, de Ana Cristina César, e os diários de Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. Para 2020, permanecem Ana Cristina César e Carolina Maria de Jesus, sai Clarice Lispector, e acrescenta-se Júlia Lopes de Almeida, com o romance A falência.

Confesso que eu não conhecia a escritora Júlia Lopes de Almeida antes da lista do vestibular e, assim como eu, acredito que muitas outras pessoas também não a conhecessem. Conversando com alguém que estudou justamente o romantismo brasileiro em sua pesquisa de Doutorado, percebi que nem mesmo ele conhecia a escritora desse período. Então, de alguma forma, a presença desse livro na nova lista de leituras obrigatórias o reinsere na história literária brasileira, à medida que reconhece a importância de um livro esquecido por grande parte da nossa historiografia literária.

Acredito que esse movimento pode ser entendido de pelo menos duas maneiras distintas, mas complementares. A primeira a partir da ideia de que existe um movimento político de inserir a leitura dessas mulheres nas listas dos vestibulares, de forma que as próprias universidades passem a pautar os conteúdos escolares e acabem gerando dessa forma uma reação em cadeia. Ao levar os livros dessas escritoras para as salas de aula do ensino fundamental e médio, ainda que pela obrigatoriedade do vestibular, mais gente estará lendo mulheres.

A outra maneira seria entender que estamos, dentro das universidades, mais atentas a esse tipo de produção literária, e que, por isso, conforme conhecemos mais Literatura produzida por mulheres, mais encontramos boa Literatura escrita por mulheres. Então, a inserção dessas escritoras se deve à qualidade estético-literária dessas obras, que estavam até então esquecidas pela crítica e pelo público leitor, enão ao gênero a que elas estão vinculadas.

A meu ver, essas duas interpretações se complementariam e de maneira nenhuma a primeira anularia a pertinência da qualidade da segunda. Vejam, é consenso que não foram só os homens que escreveram e escrevem boa Literatura. Mas se não conhecermos a Literatura feita por mulheres, se não tivermos oportunidades para lê-las, não poderíamos sequer julgar sua qualidade.

A professora e pesquisadora Regina Dalcastagnè, em parceria com o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB), tem levantado dados alarmantes, aos quais me deterei brevemente apenas para ilustrar o nível de disparidade existente. Com a pesquisa Personagens do romance brasileiro contemporâneo, foi constatado que, entre o período de 1990 e 2004, nos quase 300 romances pesquisados, apenas 27,8% das obras foram escritas por mulheres. Os 72,2% dos escritores homens eram ainda, em sua grande maioria, brancos, de classe média e habitantes do eixo Rio-São Paulo. Esse dado talvez nos ajude a entender por que, no mesmo período e baseando-se nos mesmos romances pesquisados, apenas 37,8% das personagens eram mulheres e por que cerca de 16% desses livros não apresentavam nenhuma personagem mulher significativa[2]. É ainda chocante que, em um segundo momento dessa mesma pesquisa, que compreende o período de 2005 a 2014, entre os quase 200 romances pesquisados, esses dados se alteram muito pouco: 29,4% de autoras mulheres e apenas 34,6% de personagens femininas[3].

Se as mulheres escritoras são minoria e, por isso, são pouco lidas, e ainda não são representadas nos livros que lemos, como então nos sentirmos motivadas a ocupar esse lugar de escrita e de estudo? Não nos vimos, por muito tempo, representadas nas leituras que nos foram impostas e também nas leituras que pudemos escolher. Além disso, quantas mulheres ao longo dos anos foram incentivadas a serem escritoras? Acredito que pouquíssimas. Em contrapartida, nunca tivemos tantas mulheres escrevendo e se movimentando no meio literário como hoje – e a existência do Mulherio e desse evento nos últimos anos é uma prova maravilhosa de que esse espaço existe e pode ser diferente.

Registro da minha apresentação por Ana Júlia Valezi

É por todos esses motivos que posso dizer que estamos diante de um movimento que se complementa e faz a roda girar, possibilitando uma mudança dessa situação. E à medida que políticas públicas, como as das listas dos vestibulares, colocam em jogo mais escritoras mulheres, mais escritoras mulheres se sentem representadas e aptas a escreverem e publicarem suas obras. E assim, felizmente, a literatura produzida por mulheres ganha força no cenário literário brasileiro.

Quanto à área dos Estudos Literários, a situação também é ainda hoje um campo de ressignificação constante. Ouvi de mais de uma amiga, assim como ouvi de mim mesma por muito tempo, que a carreira acadêmica na área de Literatura não foi sequer desejada por pensarmos que essa área não seria para nós. O que significa, então, quando mulheres nem sequer cogitam uma possibilidade profissional por acreditarem que não servem, que não se encaixam naquela posição social? Com que frequência, aliás, ocorre essa espécie de autossabotagem em que, antes mesmo de considerarmos que não teremos capacidade para alcançar algo, dizemos a nós mesmas, em silêncio, que determinado lugar simplesmente não nos pertence? A construção social é tão forte, e estamos tão imersas nas escolhas que nos seriam óbvias, que não conseguimos mais conceber o que estão nos dizendo que é impossível de realizarmos.

Mas afirmo mais uma vez que estamos aqui hoje reunidas para lembrarmos umas às outras, cada qual com sua própria caminhada, que somos sim uma rede de mulheres extremamente capacitadas para fazermos o que quisermos. Estamos ocupando espaços que até pouco tempo atrás eram pouco imagináveis porque estamos nos vendo espelhadas em outras mulheres que conseguiram, que são brilhantes, que merecem estar onde estão porque têm capacidade de sobra para ocupar as posições que ocupam. E quando vemos outras mulheres nessas posições em que gostaríamos de estar, o impossível se torna possível.

Hoje, depois de tantos anos formulando e lidando com essas inquietações, faço questão de estar atenta à produção literária e crítica feita por mulheres. Mas é fato que grande parte desse acompanhamento se dá de maneira não institucionalizada, para além do universo acadêmico. O que quero dizer com isso é que é preciso que eu faça um esforço para chegar à Literatura e à crítica literária produzida por mulheres, pois nós ainda ocupamos um espaço reduzido na academia. Uma série de iniciativas, como o próprio Mulherio, nos ajudam a acessar esse tipo de conteúdo produzido por mulheres. Além disso, a pesquisa formal, nas bibliotecas, e a informal, em passeios despretensiosos por livrarias, não me deixam perder de vista que a cada homem que tenho a chance de ler, pois seu livro está exposto na vitrine, existe provavelmente uma mulher contemporânea a ele que não teve oportunidades igualitárias de ter seu trabalho divulgado.

E com isso retorno aos nossos dias presentes e penso que, quando o trabalho das mulheres em geral é diminuído até mesmo por um candidato à presidência do Brasil – e, infelizmente, isso provavelmente não o fará perder uma eleição –, estamos diante de um cenário pouco animador. Pesquisas realizadas recentemente, em 2017 e 2018, pela agência de empregos CATHO, mostram que ainda somos pior remuneradas em todas as áreas profissionais. Mulheres com ensino superior ganham ainda hoje um salário 43,5% menor do que homens ocupando exatamente os mesmos cargos. Além disso, somos minoria em cargos importantes e de gestão, e apenas aproximadamente 25% dos cargos de presidência são ocupados por mulheres. Nem mesmo na área da Educação, onde, como já vimos, somos maioria no ensino básico, essa disparidade salarial deixa de existir: as mulheres ainda recebem 9% a menos do que os homens[4].

E obviamente nada disso está relacionado à nossa menor capacidade de atuação. Pelo contrário, as experiências de trabalho tendem a ser melhores com mulheres ocupando cargos importantes, justamente porque precisamos nos preparar muito mais para fazer o que precisamos fazer, já que sabemos que seremos mais cobradas e mais questionadas por qualquer deslize cometido. E precisamos ainda demonstrar mais seriedade e compromisso com o trabalho, pois estamos sujeitas ao assédio moral e sexual recorrentes em ambientes de trabalho, inclusive dentro das universidades.

É diante desse cenário alarmante, entretanto, que nos refazemos. Somos mulheres, conhecemos desde sempre a força que nos habita e nos encoraja. Nossa própria existência é um ato constante de resistência e, por isso, os percalços de um mundo difícil de mudar não nos assusta. Estamos cercadas de boas companhias: boas companheiras de luta, boa literatura feita por mulheres, boas professoras, pesquisadoras e estudantes que hoje configuram uma geração que se questiona sobre as reflexões que tentei apresentar aqui hoje. A geração de crianças e adolescentes meninas que vem por aí, por sua vez, está chegando ainda mais consciente de que ninguém poderá limitar sua existência.

Eu gostaria então de terminar minha apresentação com a leitura de um poema escrito pela poeta italiana Piera Oppezzo, falecida em 2009, que está recolhido no livro Donne in poesia, de 1976. Fiz essa tradução há alguns meses quando a legalização do aborto não foi aprovada pelo Senado, na Argentina. Eu queria dizer para nossas hermanas, assim como eu gostaria de dizer aqui para todas nós hoje, que nossa existência como mulheres é a nossa maior força e que é com os nossos medos, com os nossos fracassos e os nossos erros, que reconstruímos essa nossa força. Com ela, nos reinventamos e reinventamos, inclusive, nossa própria esperança de que, um dia, um mundo menos desigual floresça. Obrigada.

 

O grande medo, de Piera Oppezzo

A história da minha pessoa

é a história de um grande medo

de ser eu mesma,

contraposto ao medo de me perder de mim mesma,

contraposto ao medo do medo.

Não poderia ser diferente:

na apreensão se perde a memória,

na submissão, tudo.

Não poderia

a minha infância,

saqueada pela família,

me permitir uma maturidade estável, concreta.

Nem a minha vida isolada

me permitir algo menos frágil

do que este debater-me entre ânsias e incertezas.

À infância, eu sobrevivi,

À idade adulta, eu sobrevivi.

Quase nada em comparação à vida.

Eu sobrevivi, no entanto.

E agora, entre as ruínas do meu ser,

Alguma coisa, uma utopia imóvel, está para florescer.[5]

[1] http://portal.inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/mulheres-sao-maioria-na-educacao-superior-brasileira/21206

[2] https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2018/03/19/as-mulheres-dos-estudos-literarios-regina-dalcastagne/

[3] https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-o-autor-brasileiro/

[4] https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/mulheres-ganham-menos-que-os-homens-em-todos-os-cargos-e-areas-diz-pesquisa.ghtml

[5] https://internopoesia.com/2014/09/09/piera-oppezzo/

Literatura, Política e Resistência! A quem interessa queimar livros?, por Danielle Chagas de Lima

A quem interessa queimar livros?

O ano é 2018, século 21. Apesar da imensa distância espaço-temporal e também das diferenças entre as sociedades, vira e mexe eu me pego pensando em uma obra datada do século 2. São declarações como “Os livros que não trazem a verdade sobre o regime de 1964 têm que ser eliminados[1] e notícias como “Livros de direitos humanos são rasgados na biblioteca da UnB”[2] que me transportam à introdução da obra Agrícola, de P. Cornélio Tácito, escrita por volta do ano 98 d.C.[3]

Queima de livros. 30 ilustrações para “A História de Dom Quixote” (Fonte: The British Museum)

Tácito nasceu por volta do ano 56 e faleceu no ano 118 d. C. Ele foi um importante historiador de sua época e sua obra, que retrata o período do Império romano, nos chegou em grande parte conservada[4]. A obra da qual sempre me lembro intitula-se A vida de Júlio Agrícola (De uita Iulli Agricolae) e narra, conforme o título sugere, a biografia de seu sogro, Júlio Agrícola. Bem, tentando não me afastar demais do porquê tal livro me vem à mente, faço um breve resumo de seu contexto de produção.

Trata-se do início do principado de Trajano, em Roma, quando Tácito finalmente sente-se livre e seguro para escrever sem correr perigo por causa do conteúdo da obra que pretende produzir. No texto, antes de apresentar a personagem principal, o autor faz uma reflexão sobre a escrita da história, mais especificamente, de textos biográficos e autobiográficos. Segundo ele, desde tempos muito remotos, homenagear a vida daqueles considerados ilustres na sociedade era um costume bastante comum. Mas Tácito nos conta que, em seu ofício de historiador, durante muito tempo encontrou dificuldades para compor uma homenagem a Agrícola, um homem que julgava exemplar naquele contexto. Essa personagem central da obra viveu durante os principados de Nero e de Domiciano: dois imperadores que comumente são vistos como os mais cruéis da história do Império romano[5]. Ainda na abertura da obra, Tácito explica também sobre a impossibilidade de compor sua obra à época de Domiciano e relembra o que houve com aqueles que se atreveram a escrever:

Fyodor Bronnikov lendo a sentença de morte de Trásea Peto (Fonte: http://www.art-catalog.ru/picture.php?id_picture=11335)

Nós lemos que quando Trásea Peto e Helvídio Prisco foram louvados por Aruleno Rústico e Herênio Senecião, respectivamente, isso se tornou motivo de pena capital. E não se enfureceram só contra os próprios autores, mas também contra seus livros. Delegou-se aos triúnviros a tarefa de queimar as memórias dos mais ilustres espíritos, no comício do fórum. Certamente, pensavam ter também coibido com aquele fogo a voz do povo romano, a liberdade do senado e a consciência do ser humano. Sem contar os filósofos que foram expulsos e toda a nobre arte levada para o exílio, para que nada se encontrasse de honesto em parte alguma. Fornecemos, sem dúvida, uma grande prova de paciência, e tal como a geração antiga viu o extremo da liberdade, do mesmo modo nós vimos o extremo da escravidão e até o acordo entre o falar e o ouvir foi suprimido por meio de inquéritos. Também teríamos perdido com a voz a própria memória, se em nosso poder estivesse tanto o esquecer quanto o calar[6].

Aruleno Rústico e Herênio Senecião, seguindo a tradição literária, escreveram obras em homenagem a duas personalidades conhecidas na história romana por sua oposição à autoridade do imperador e à falta de liberdade de expressão do senado[7]. Ambos foram punidos com a morte. Seus livros, e talvez outros mais, foram queimados em público. Tudo isso porque representavam condutas de personagens que em certa medida questionavam a autoridade única do imperador e denunciavam a corrupção de seus pares. O fogo, como Tácito nos diz, também deveria silenciar a voz do povo, suas ideias, sua consciência. A liberdade de pensamento também foi censurada, expulsando-se dali os filósofos. Ou seja, havia uma grande preocupação em limitar os discursos circulantes. Pode-se dizer que a Literatura (e, consequentemente, o pensamento em circulação) só poderia representar aquilo que passasse pelo crivo do imperador[8].

Por um lado, quando eu vejo notícias como as que mencionei no início deste texto, não consigo deixar de pensar que, infelizmente, há mais de 2000 anos obras são lançadas ao fogo, a fim de apagar a pluralidade de visões em determinados momentos históricos. Nem era preciso ter ido tão longe para encontrar testemunhos desse tipo, tantas outras vezes isso já aconteceu na história da humanidade[9]. Por outro lado, eu fico feliz e me fortaleço ao pensar em como a Literatura dispõe de força, valor político e atua como resistência. Não é à toa que os livros tornam-se vítimas concretas e simbólicas daqueles que pretendem contar uma história única. Tácito passou quinze anos em silêncio para preservar sua vida. Ao primeiro sinal de abertura, não deixou de relatar o autoritarismo existente outrora e as consequências daqueles que escreviam obras livres de uma adulação ao imperador. Fez de sua obra, portanto, memória daqueles que perderam suas vidas e também resistência, ao incluir na história os nomes daqueles que mereciam ser lembrados[10].

Lucio Massari (1569-1633)

As manchetes que citei me fazem pensar nesse texto porque ali algumas palavras me chamam a atenção. Propõe-se eliminar livros que não contêm a verdade sobre um momento histórico há muito estudado e documentado. Mas qual verdade, afinal? Livros sobre direitos humanos são rasgados… a quem isso interessa nesse momento? A que tipo de políticas interessa suprimir obras, e mesmo seus autores, ao longo da História?

O nosso mundo e a nossa história são feitos de narrativas. De pontos de vistas. São sempre tempos lamentáveis aqueles em que vozes são silenciadas, concreta e simbolicamente. Mas a literatura resiste e, por meio dela, podemos também nós sempre resistir e buscar a liberdade de pensamento e de expressão. Afinal, a “arte conversa com a liberdade que resiste dentro de nós”[11].

Em tempo: este texto é sobre livros, mas não pode deixar de lembrar e lamentar a perda de tantos registros culturais, de obras de artes e de documentos que se perderam com o incêndio de museus importantes em nosso país. Museus que, negligenciados e abandonados pelo investimento público, foram consumidos pelo fogo junto com memórias do passado. Nos últimos três anos, o Memorial da América Latina, o Museu da Língua Portuguesa e o Museu Nacional tornaram-se vítimas desse fogo institucionalizado.

[1] Fonte: https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/09/28/general-ligado-a-bolsonaro-fala-em-banir-livros-sem-a-verdade-sobre-1964.htm?cmpid=copiaecola&cmpid=copiaecola. Acesso em 09/10/18.

[2] Fonte: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2018/10/04/livros-de-direitos-humanos-sao-rasgados-na-biblioteca-da-unb.ghtml. Acesso em 09/10/18.

[3] Antes de continuarmos, é importante ressaltar que a leitura de obras antigas requer atenção a diversos conceitos e ao funcionamento próprio daquela sociedade para que não sejamos anacrônicos. Além disso, mesmo a ideia de História, como disciplina, é muito diferente daquela que temos hoje, bem como os procedimentos de sua escrita, questões que escapam ao espaço deste post. Para mais informações a esse respeito, indicamos a tradução completa e anotada dessa obra, disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/271127/1/Lima_DanielleChagasde_M.pdf.

[4] Mais sobre o autor e outros historiadores romanos em FUNARI, P. P.; GARRAFONNI, R. S. Historiografia: Salústio, Tito Lívio e Tácito. Coleção Bibliotheca Latina. Campinas: Editora Unicamp, 2016.

[5] Tácito escreveu sobre o principado de Nero na obra Anais (Annales), nos livros 13 a 16.

[6] Tácito, A vida de Júlio Agrícola, 2. Tradução do latim de minha autoria. Temos outro testemunho antigo sobre este fato: Suetônio, que escreveu a obra A Vida dos doze césares, também menciona esse ocorrido na biografia de Domiciano.

[7] Trásea Peto foi um senador romano cujo comportamento é lembrado como símbolo da oposição a Nero. Lutou por seus ideais até a morte. Helvídio Prisco foi exilado pelo imperador na mesma época. Para saber mais, indicamos os Anais e as Histórias, de Tácito.

[8] Domiciano não foi o único imperador a agir desta forma. O imperador Tibério também condenara o historiador Cremúcio Cordo, cujos escritos não lhe agradaram; sua obra foi queimada, conforme relatam Tácito (Anais, 4.34-5) e Suetônio (Vida de Tibério, 61.3).

[9] Em diversos momentos e sociedades, livros com discursos diferentes daquele dos regimes vigentes foram incinerados. O caso da biblioteca de Alexandria é bastante conhecido. Durante a Inquisição isso também ocorreu. Em 1933, livros foram queimados durante o Nazismo, na Alemanha. Mais recentemente, em 1973, Pinochet também ordenara queimar livros. Para mais eventos do tipo: https://pt.wikipedia.org/wiki/Queima_de_livros.

[10] Assim Tácito nos conta: Pois, se por quinze anos, um grande espaço de tempo da vida humana, muitos foram mortos por circunstâncias fortuitas e os mais diligentes pela crueldade do príncipe, poucos, por assim dizer, somos não só sobreviventes a outros, mas também a nós mesmos. Fomos arrebatados do meio da vida tantos anos, durante os quais viemos em silêncio, jovens até a velhice, velhos até quase o próprio fim de sua geração. Mas eu não lamentarei ter composto, mesmo com tom grosseiro e rude, a memória da servidão passada e o testemunho dos êxitos do presente (Tácito, A vida de Júlio Agrícola, 3.2).

[11] De Eliane Brum, Como resistir em tempos brutos, aqui: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/08/opinion/1539019640_653931.html.

Literatura, Política e Resistência! Árvore da memória, de Rosmarie Waldrop (introdução e tradução de Marcelo Lotufo)

Rosmarie Waldrop é uma importante poeta norte americana. Nascida na Alemanha pouco antes da Segunda Guerra Mundial, passou sua primeira infância em meio a bombas e doutrinação ideológica nazista. Pequena demais para concordar ou discordar, viu tudo com um certo distanciamento. Adulta, retornou ao tema buscando entender, assim como toda a sua geração, o que se passara na Alemanha de seus pais; como a naturalização do horror nazista fez com que o Holocausto se escondesse atrás da rotina e da burocracia.  Waldrop mudou-se para os Estados Unidos durante o pós-guerra, onde se casou com o também poeta Keith Waldrop. Na América, ela abandonou a língua alemã e passou a escrever em inglês, reforçando o distanciamento que precisava para revisitar o seu passado de forma crítica e consciente.

Ilustração por Pierre Mornet

Parte dos seus poemas versa sobre a necessidade de investigarmos as camadas históricas da nossa sociedade, enfrentando memórias e acontecimentos que preferiríamos ignorar. Em um momento no qual discursos de ódio parecem se normalizar no Brasil, além de um apoiador confesso da tortura e da ditadura militar (algo impensável há alguns anos) liderar as pesquisas para presidência da república, revisitar o passado parece um exercício mais do que necessário; parece um dos únicos caminhos para salvarmos a nossa democracia e repensarmos o pacto democrático que a sustentou desde o fim da ditadura.

Árvore da memória

Rosmarie Waldrop, no livro Split Infinites

Tradução Marcelo Lotufo

 

E EM SEGUNDO LUGAR, na Alemanha

Meu primeiro dia na escola , setembro de 1941, dia show de bola. O tempo não passava, mas era conduzido ao cérebro. Me ensinaram. A saudação nazista, brincar de flautista. Quão firmemente entrincheiradas, as velhas teorias. Já usando papel, caneta e tinta. Sim, eu disse, estou aqui.

Eu tinha seis ou sete anões, a branca era de neve, o príncipe estava em guerra. Hitler no rádio, seguido por Léhar. Sentidos impingiam-se. Apagões, sirenes, colchões no chão, visitantes ou fantasmas furtivos.

E mamãe furiosa. Sirenes. Silvos. O gato. Minha irmã gritou como nunca. Sua amiga. Com medo de olhar. O que eu sabia sobre trabalho forçado ou trabalho de parto? Dos interiores profundos do corpo? Eu tinha aprendido a  andar de bicicleta.

O gato preto. A neve branca, a flor azul. Uma ameaça de uma cor diferente. Movimento uniforme em velocidade inultrapassável. Nada fastidioso. Nada necessário o preenchimento de substâncias no âmago profundo.

Mãe, eu gritei, extremamente. E o lobo. Passando pela neve eu estava dentro de casa em, lã puxada sobre os meus olhos. O lobo. O menino que não gritou ‘olha o lobo’ também morreu. Aberturas crepusculares.

Testa honesta. Cabelos negros. Mãos parcimoniosamente sobre os joelhos. Uma menina polonesa. Na Alemanha? Na guerra? Movendo-se velozmente pelo ar entre nós, uma imagem contínua. Chega de medo de gato preto, sinos (assassinos, ferinos), de sirenes, silvos de bombas.

*

Uma longa vida aprendendo sobre o capítulo anterior. Que minha alma está de calça jeans, minha mãe dando à luz, meu banco de esperanças na Alemanha, leste de expectativas, oeste de ainda esperando. Na cama com um antídoto.

Comendo da árvore. Folhas caindo antes da queda. Por um buraco na memória. A fruta enruga novos problemas, mas não extingue. O pomar há muito abandonado.

(Publicado em https://traducaoliteraria.wordpress.com/2018/10/15/arvore-da-memoria-de-rosmarie-waldrop-introducao-e-traducao-de-marcelo-lotufo/)

Literatura, Política e Resistência! Em nome da cultura me retiro do Prêmio Strega, por Pier Paolo Pasolini (tradução Cláudia Alves)

A Guilherme Ivo, com quem tive a honra de compartilhar o ofício da tradução, a alegria pelas leituras e o desajuste em nosso mundo. Se hoje ouso traduzir Pasolini, é porque um dia ele me disse que eu poderia (e deveria) fazer isso.

Em 1968, o escritor italiano Pier Paolo Pasolini decidiu se retirar de um dos maiores prêmios literários da Itália (senão o maior) por não concordar com a forma como a produção literária vinha sendo tratada em seu país. Sua maior crítica estava relacionada à transformação do mercado editorial em mais uma engrenagem do complexo sistema de dominação da indústria cultural e do consumismo. Com essa atitude, o escritor mostrou estar disposto a colocar em prática uma reflexão que começava a ganhar consistência em seus escritos jornalísticos. Seu gesto de protesto reflete, por sua vez, o compromisso com suas reflexões críticas e não com um mercado editorial sedento por enjaular escritores em um sistema de produção comercial. Movido por seus “interesses culturais”, isto é, pela crença de que a verdadeira literatura só poder ser criada com total liberdade de pensamento, Pasolini se retirou de uma cadeia de produção que, infelizmente, está presente em nossa vida literária hoje mais do que nunca. Coerência de conduta: Pasolini foi um dos poucos em nossa história que teve coragem de viver sua vida com a mesma criticidade com que observava as mudanças sociais e políticas de sua época. E é por isso que seu texto abre a nova série sobre Literatura, Política e Resistência que se inicia hoje aqui no blog Marca Páginas. Porque precisamos protestar e defender, sempre, aquilo em que acreditamos, em todas os espaços da nossa existência. Boa leitura a todos!

 

Em nome da cultura me retiro do Prêmio Strega[1]

Pier Paolo Pasolini

Tradução: Cláudia T. Alves

 

A primeira reação de um observador pragmático e um pouco indiferente quando descobre que, pouco antes da segunda votação, um participante retira seu livro do Prêmio Strega é que se trata de uma ação incorreta. Pois bem, e é mesmo. Trata-se de um erro formal, e sabe-se que o acerto formal é uma das bases da convivência democrática. Ainda que isso não tenha exigido muito esforço, precisei então usar uma certa violência contra mim mesmo nessa decisão de me retirar do prêmio (formalmente, de acordo com o regulamento, a minha saída não existe na prática: meus 62 eleitores estão portanto livres para fazer o que quiserem – e sabemos que sou plenamente grato a eles por seus votos, inclusive porque 40 deles foram inesperados).

Por que usei desta violência contra o meu legalismo e o meu respeito pelas formalidades democráticas? Porque eu estava diante de um dilema: ou sair incorretamente – e isso seria ruim – ou ficar – corretamente – e isso seria pior ainda. É muito simples dizer o porquê. Mas, primeiro, quero fazer um resumo do que aconteceu nesses dias.

Como o leitor talvez saiba, na primeira votação do prêmio os candidatos estavam restritos a 5 nomes: Bevilacqua (103 votos), eu (62 votos), Cattaneo (56 votos), Barolini (52 votos) e Zavattini (37 votos). Eu tinha decidido participar do prêmio como se fosse um jogo (ou uma loteria, como disse Zavattini): para ter a satisfação infantil de ser premiado. Enfim, participei com leveza, com o gosto do risco, com curiosidade, com vaidade – talvez para agradar a minha mãe, como eu fazia quando voltava para casa, durante a primeira série, e mostrava lá da rua, ela olhando da janela, a fita verde da medalha de primeiro aluno da classe, conquistada semanalmente (ai, que hábito maldoso). Bom, aos poucos a minha leveza se mostrou ingenuidade e essa ingenuidade, cumplicidade.

É verdade que outras vezes já participei do prêmio: com Ragazzi di vita, em 1955 ou 1956, e com Una vita violenta, em 1959. Os eleitores (escolhidos arbitrariamente, e por isso digo que quem decide participar do prêmio Strega decide participar de um jogo e não de uma “competição democrática”) decretaram minha derrota de forma exemplar. Mas aqueles eram outros tempos, eram os anos 50, com a Itália ainda paleocapitalística, com o Sul, com seus subgovernos etc. etc. Hoje tudo mudou. Enquanto o Prêmio Strega era, como dizem, uma coisa de família, participar dele parecia jogar bingo com os vizinhos – ou seja, todas as pequenas bagunças, as míseras alianças, as contratações forçadas faziam parte de uma “imoralidade”, contra a qual nem valia a pena polemizar. Hoje, por outro lado, o Prêmio Strega se tornou parte integrante da chamada “indústria cultural” e se enquadra em um novo tipo de Itália burguesa, sobre a qual não paira mais a ameaça romântica e ultrapassada de uma revolução operária, a qual no final das contas não aconteceu. A “imoralidade” portanto não é mais um fenômeno parcial, no cerne de uma particularidade social (a vida literária), mas é um fenômeno total, relacionado ao conjunto da sociedade italiana.

A imoralidade que imperava no Prêmio Strega nos anos anteriores ao novo rumo da sociedade italiana não me ofendia mais do que parcialmente e eu me permitia um certo cinismo, mas hoje não mais. Quando aceitei concorrer ao prêmio esse ano, estava iludido – por culpa da minha natureza relutante em reconhecer o mal e a má fé – de que as coisas não seriam tão graves. A minha ingenuidade me fez cometer um erro; seria estúpido se eu agora não reconhecesse publicamente esse erro e não tentasse repará-lo talvez até erroneamente, isto é, cometendo uma nova ingenuidade.

Em resumo, tomei consciência dos fatos (dos quais, infelizmente, não posso e, acho, nunca poderei ter provas) que me convenceram de que o Prêmio Strega está completa e irreparavelmente nas mãos do arbítrio neocapitalístico; que aquilo que aconteceu em 1966 não foi um caso, mas um precedente: e que esse ano as coisas estão se repetindo. Devo me tornar cúmplice? Um editor certamente tem o direito de exercer as pressões que deseja, os seus interesses são do tipo industrial e, diante da concorrência, sabemos que os “patrões”, mesmo que adocicados pelo novo rumo, são capazes de qualquer coisa. Os meus interesses, pelo contrário, são de tipo cultural e, para mim, ser capaz de qualquer coisa pode significar apenas uma atitude: protestar. Assim me retiro incorretamente da segunda votação do prêmio, em protesto: protesto contra a interferência do editor industrial em um campo que considero ainda, arcaicamente, não industrial, a qual se concretiza na criação de valores falsos e na extinção de valores verdadeiros. Digo extinção porque o neocapitalismo não tem escrúpulos: a América reacionária o educa. Circulam palavras de ordem e velinas[2]. Sobre esse livro podem falar, sobre esse outro se calam; este livro ganha um prêmio, esse outro não. E ai de você, Editor de revista, se publicar boas resenhas sobre esse livro. E se você, Escritor, não fizer uma boa resenha sobre esse outro, você vai me pagar caro por isso: nenhum dos meus periódicos vai mais falar de você. Ah, e você, Literato, é amigo de outro literato? Pois bem, traia-o, se não eu não renovo seu contrato com a minha editora. Você é jurado de algum prêmio? Ótimo, me dê a cédula de votação ou entre na lista dos banidos. Vai, pegue esse dinheiro e me dê a cédula. Ah, velhos tempos, quando uma delegação de jurados do Strega ia até algum escritor (bom) para pedir-lhe que se retirasse do prêmio porque a filha de algum outro escritor (bom) precisava se casar, e então o dinheiro do prêmio ia para ela! Hoje, a indústria do livro tende a transformá-lo em um produto como outro qualquer, para puro consumo, logo não há necessidade de bons escritores. E isso responde perfeitamente à exigência da nova burguesia, que parece completamente dona da situação, das obras de entretenimento, de escape e de falsa inteligência.

Repito: não quero me tornar cúmplice desse estado das coisas de jeito nenhum. E assim como odeio a cumplicidade, odeio também o compromisso. Eu poderia continuar formalmente fingindo ser um concorrente democrático e, de acordo com Maria Bellonci, apoiando pela última vez, fosse com uma vitória ou com uma derrota apertada, o Prêmio Strega assim como ele é: isto é, um campo de operações do consumismo mais brutal. Na verdade, a senhora Bellonci me prometeu que para o próximo ano o prêmio seria reformado, garantindo um nível melhor das obras apresentadas etc.

Não. Não quero fazer parte de tal acordo. Acredito que somente um protesto completo, rigoroso e sem compromissos possa ser útil para que o prêmio, se precisar ser reformulado, seja reformulado por completo, recolocando-o integralmente em discussão. Estou convencido de que só assim poderá existir um “outro” Prêmio Strega, que garanta de fato os interesses culturais “contra” os interesses industriais. Se querem chegar a isso por meio de acordos, compromissos, silêncios, então quer dizer que a boa vontade não existe de verdade.

Para terminar, gostaria de dizer que sei que a essa altura alguém poderia perguntar por que estou sozinho, ou com poucos amigos – outros concorrentes ao prêmio, por exemplo –, a travar essa batalha, e se por acaso não existe um “sindicato dos escritores” que intervenha, com força e autoridade (em dose dupla: sindical e literária), para defender seus filiados da verdadeira “escravidão” à qual estão começando a serem reduzidos pela indústria cultural. Pois bem, essa é uma pergunta que faço a mim mesmo sem saber respondê-la, mas à qual se deve, agora ou depois, dar uma resposta.

[1] Publicado originalmente no jornal Il Giorno, em 24 de junho de 1968. Integra a coletânea Saggi sulla politica e sulla società, na coleção I Meridiani (Milão: Arnaldo Mondadori Editore, 1999), pp. 151-155. Os direções autorais do texto pertencem portanto à editora Mondadori e por isso a presente publicação da minha tradução deve ser utilizada apenas com a finalidade de leitura e estudo.

[2] Velina era uma espécie de nota emitida pelo governo fascista italiano (1922-1943) com o intuito de manipular e regular o que e como as notícias circulariam na imprensa da época. Foram proibidas em 1943, mas foram usadas até 1945.

O compromisso político de fazer ciência no Brasil hoje

Hoje o dia amanheceu chuvoso em muitas cidades, e aqui em Roma também. Andando pelas ruas, reparei em quantas pessoas carregavam seus guarda-chuvas. Não pude evitar o pensamento: nenhuma delas estava com medo de levar um tiro e morrer por causa do que carregavam. Esse post é em memória de Rodrigo Serrano, brutalmente assassinado no dia 17 de setembro de 2018 pela polícia militar do Rio de Janeiro.

O compromisso político de fazer ciência no Brasil hoje

Quem escolhe ser pesquisador em nosso país (e no mundo todo) acaba se acostumando com o questionamento recorrente sobre a utilidade prática do que faz, do seu trabalho. Nas ciências humanas, esse questionamento é talvez ainda mais frequente porque nossas pesquisas não produzem, na maioria das vezes, resultados imediatos, pragmáticos, mensuráveis pelos parâmetros da sociedade de consumo. Estudar as diversas perspectivas da representação literária ao longo dos anos na literatura brasileira não parece ter o mesmo prestígio que compreender a reprodução de uma bactéria a fim de criar um novo remédio, por exemplo. E por que será que isso acontece? Arrisco um palpite: porque, nessa sociedade, pesquisas que não geram patentes, sobretudo porque não geram lucros, não despertam muito interesse.

Sempre que posso, faço questão de começar meus textos por aí, porque acredito que precisamos lembrar – e relembrar quantas vezes pudermos – que estamos vivendo em uma época em que a formação e a reflexão de tipo humanística correm o risco de cair em desuso. Atualmente, a ideia de trabalho e produção de conhecimento está ligada a valores capitalizados, tecnocráticos, pouco ideológicos ou apolíticos, e, nesse espaço, a maturação de reflexões humanas não tem tempo suficiente para acontecer. Tudo precisa ser rápido e funcional. Já deu para perceber que a conversa é tensa, né? Mas todo esse preâmbulo é para pensarmos juntos como a ideia de produção científica se encaixa nesse contexto – e como fazer ciência, em todas as áreas, principalmente dentro de uma universidade pública, só pode ser entendido como um gesto político.

Nos estudos literários (e talvez posso afirmar que no âmbito das pesquisas sobre linguagem em geral), existe um esforço em se pensar os poderes que estão em disputa. Nosso trabalho muitas vezes se volta à desnaturalização de ideias consolidadas e de pensamentos enraizados em nossa cultura. Nesse sentido, fica difícil imaginar como uma pesquisa desse tipo pode ser considerada apolítica: estamos constantemente exercitando nossa reflexão crítica ao olhar para o mundo e estudar suas diversas manifestações ao longo do tempo.

É por esse caminho que muitos estudiosos pensam na capacidade transformadora que a própria literatura exerce. Escrever seria um gesto de colocar no papel aquilo que precisa ser revisto em nosso mundo e, a partir daí, gerar no leitor um pensamento com potencial para se tornar atitude. Estamos então em um terreno em que a literatura pode ser vista como um espaço público de politização e também de disputa de histórias. Por meio dos livros, seria possível contar uma história que sistematicamente determinadas esferas de poder quiseram (e querem) calar, assim como poderia despertar nos leitores uma reflexão. Ou seja: quanto mais a gente lê, mais a gente se depara com versões diferentes para uma mesma história e dificilmente sairemos dessas leituras da mesma forma que entramos.

Jean Paul Sartre, importante filósofo e escritor francês do século XX, publicou em 1948 o livro Que é a literatura? (Editora Ática, 2004, tradução Carlos Felipe Moisés), no qual discute, após o final da Segunda Guerra Mundial, o que, por que e para quem escrever literatura. Depois das atrocidades cometidas pelos governos fascistas e nazistas nos anos anteriores, Sartre e tantos outros intelectuais voltaram seus pensamentos em direção às ainda possíveis perspectivas de existência humana – e como o ato de pensar e escrever sobre essa existência ainda poderia ter alguma função.

Foto por Daniel Frank.

Sartre defende a ideia de que “através da literatura (…) a coletividade passa à reflexão e à mediação, adquire uma consciência infeliz, uma imagem não equilibrada de si mesma, que ela busca incessantemente modificar e aperfeiçoar” (2004, p. 217). Sua posição parece estar entre dois caminhos já bastante trilhados quando se pensa no fazer literário: a ideia de que a literatura vai salvar a humanidade, despertando-lhe a consciência necessária para isso, mas também a ideia de que essa consciência é infeliz, desequilibrada, mediada, o que significa que não necessariamente ela atingirá seu potencial de conscientização nos indivíduos.

Muito complicado? É mais ou menos pensar que ler não é sinônimo de caráter – há muitos exemplos por aí de gente que já leu muito, mas continua tendo comportamentos questionáveis. E também que nem toda literatura é questionadora e progressista, afinal é também no âmbito literário que versões opressoras da história se consolidam. O ponto principal é que, repito, parece que estamos diante do potencial de reflexão e de crítica que pode emanar da literatura. A ideia de que, com esse esforço de leitura, a coletividade pode tomar conhecimento de si mesma, reconhecer onde estão suas falhas e, a partir daí, buscar modificá-las e aperfeiçoá-las. Em outras palavras, escrever e pensar a literatura como pequenos movimentos de transformação.

O lugar que ocupamos como pesquisadoras e pesquisadores, me parece, passa também por essas mesmas questões. A ideia de produzir ciência, ou seja, de produzir conhecimento, em um país com tantas desigualdades (sociais, econômicas, culturais) como o nosso não deve estar isenta de sua potencialidade de reflexão e de transformação social. Porque são ausências políticas em momentos conturbados como os que estamos vivendo ultimamente que podem criar monstruosidades históricas com as quais certamente não queremos conviver.

E assim chegamos ao Brasil do ano de 2018, onde ainda é preciso debater machismo, racismo, homofobia e tantos outros preconceitos enraizados na nossa história. Esse debate, que perpassa todas as esferas públicas de produção de conhecimento (e por isso também todas as universidades, programas de pós-graduação e institutos de pesquisa), não pode ser diminuído ou silenciado, pois estamos disputando a história que se fará daqui por diante. A reflexão humanística, que deveria ser uma guia aos estudos literários e também às demais ciências, reafirma sua importância nesse processo como aquela que não nos deixa esquecer os momentos em que a humanidade se viu ameaçada por seu próprio desenvolvimento e capacidades destrutivas. Posicionar-se politicamente em todas as esferas que nos cabem é então reconhecer a função pública que cada indivíduo carrega em si e estimular a reflexão crítica em todas as frentes imagináveis. Resistir em todos os espaços que ocupamos: esse é o compromisso científico e político do qual não podemos nos isentar.

 

Estudos Literários: existirmos, a que será que se destina?

Sempre imagino começar uma aula de Literatura perguntando aos alunos o que se estuda nas outras aulas. Matemática? Números, equações, formas geométricas. Biologia? Reino animal, reino vegetal, corpo humano. História? Grécia, Império Romano, Independência do Brasil, Segunda Guerra Mundial. E então perguntar para a classe: e Literatura? Esperaria respostas como livros, escritores, histórias. Mas acho que poderíamos complementar e dizer ainda tudo o mais que se aprende nas outras aulas, afinal números, corpos e guerras, por exemplo, são temas bastante recorrentes também na Literatura.

Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro (acervo pessoal)

Esse exercício de imaginação sempre me fez acreditar que ali naquele contexto escolar seria possível mostrar aos alunos que, em uma aula de Literatura, podemos passar, em maior ou menor medida, pelos conteúdos de todas as outras disciplinas. Nesse grande guarda-chuva, não haveria limites para imaginar quais temas existem e podem ser trabalhados na escola. Tudo que é humano é passível de ser literário.

De alguma maneira, quando explico o que são os Estudos Literários, tento percorrer esse mesmo trajeto. Se a Literatura nos permite criar em cima de tudo o que é humano, os Estudos Literários se abrem como uma área capaz de propor os mais variados tipos de exercícios de reflexão a partir da Literatura e de seus desdobramentos.

Existimos como uma área científica, então, nessa perspectiva: produzindo os mais diferentes conhecimentos possíveis de serem pensados a partir de obras literárias e de tudo o que pode existir ao seu redor. Na prática, isso significa pensar e questionar desde o contexto histórico em que um livro foi escrito até a biografia de quem o escreveu, passando pelas mais diversas características de forma e estilo do próprio texto, ou ainda pelas teorias literárias que se constituem a partir de um conjunto de textos.

Pensemos em um grande clássico da literatura brasileira como Dom Casmurro, por exemplo, escrito no século XIX por Machado de Assis. Esse livro é certamente uma das obras mais analisadas até hoje pelos Estudos Literários no Brasil e também no exterior. E como pode tanta gente ainda ter tanta coisa a dizer sobre um texto de 200 e poucas páginas? A começar por sua construção literária, Dom Casmurro é um dos enredos mais instigantes da história da Literatura. Em seu universo, é possível estudar desde as escolhas linguísticas operadas por Machado até as maneiras como os sentimentos humanos e as subjetividades das personagens são construídas literariamente. Por outro lado, é também uma representação muito interessante de um certo Rio de Janeiro dos anos de 1800 e em certa medida do próprio contexto brasileiro da época. Além disso, há a oportunidade de investigar a biografia de Machado de Assis e suas trajetórias de leitura e reflexão, que ganharam novos contornos em suas próprias criações. Finalmente, as infinitas possibilidades que surgem das relações com outros livros, outros escritores, outros tempos e também com outras línguas, graças à área de traduções literárias. Sem esquecer, é claro, dos diálogos com outras Artes, como Cinema e Teatro, algo que também tem ganhado espaço nos Estudos Literários.

Com tais ideias em mente, muito se pode discutir ainda sobre os Estudos Literários em si serem ou não considerados um ramo das Ciências Humanas e, consequentemente, fazerem parte dos interesses da Divulgação Científica. Ora, mais do que responder a essa pergunta de forma pragmática, parece ser mais interessante instigar a reflexão crítica: por que Estudos Literários seriam ou não uma Ciência? Que tipo de produção de conhecimento está atrelada a essa questão ou por que essa dúvida é feita de maneira mais atenuada, com menos desconfiança, quando se trata de pesquisas das áreas de exatas e biológicas? Ou ainda, a quem interessa um certo tipo de sociedade em que fazer Ciência e produzir conhecimento é algo diretamente relacionado à utilidade prática que tais pesquisas terão, o que excluiria a princípio o tipo de pesquisa feita nos Estudos Literários?

Deixo essas dúvidas sem respostas porque nem eu mesma as tenho, mas fato é que nós, pesquisadoras e pesquisadores de Estudos Literários, existimos. Somos uma área de pesquisa presente nas universidades, nas bibliotecas, nos institutos de pesquisa, ou seja, em instâncias institucionais de renome, onde são produzidos conhecimentos. Estamos compartilhando esses espaços com muita resistência, já que socialmente os conhecimentos produzidos pelas Ciências Humanas ainda são muito desvalorizados; principalmente quando se espera das Ciências uma aplicabilidade instantânea, o que não condiz com o que é feito nos Estudos Literários. Nossa tentativa, portanto, é não sermos sufocados pela grande pergunta “mas pra que serve o que você está fazendo?”.

Porém, quando confrontada com ela, gosto de responder e, mais do que isso, de acreditar que estamos pensando e repensando as formas que o ser humano encontrou para estar no mundo, sobretudo por meio de suas mais diversas manifestações literárias e linguísticas – e isso não é pouca coisa. Para mim, parece que é um bom destino para uma área de conhecimento e, em certa medida, para todas as ciências existentes. E você, concorda?

* Publicação original em http://scienceblogs.com.br/ensaios/2018/08/estudos-literarios-existirmos-a-que-sera-que-se-destina/

A universidade para além de seus muros: estudos de poesia italiana fora da Academia, por Helena Bressan

O blog Marca Páginas recebe hoje a contribuição de Helena Bressan Carminati (helenabcarminati@gmail.com), estudante de Letras-Italiano da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Por conta da minha própria pesquisa de doutorado, entrei em contato com um grupo de estudos chamado NECLIT (Núcleo de Estudos Contemporâneos de Literatura Italiana), da UFSC. Sempre admirei o trabalho deles e fiquei ainda mais feliz quando soube que lá também tem gente pensando em formas de transpor as barreiras acadêmicas que, muitas vezes, nos seguram dentro das universidades. Então, quando conversei com a Helena, foi natural convidá-la para dividir aqui no blog seu depoimento sobre o projeto de extensão Geografia e Cultura Italiana por meio da Poesia, que busca discutir poesia com quem não está necessariamente ligado à universidade (um assunto sempre considerado muito difícil por quase todo mundo, mas que é ao mesmo tempo uma das formas mais maravilhosas que o ser humano encontrou para se expressar). Os resultados são incríveis e agradeço muito a oportunidade de compartilhá-los aqui. Esse projeto merece ser conhecido e nos inspira a continuarmos nossos trabalhos de divulgação dos estudos literários. Agradeço a Helena e a equipe NECLIT. E que nunca nos falte poesia!

A universidade para além de seus muros: estudos de poesia italiana fora da academia, por Helena Bressan Carminati

Quando conheci a Cláudia, pelas redes sociais, começamos a conversar e ela me convidou, muito gentilmente, para escrever a respeito do projeto Geografia e Cultura Italiana por meio da Poesia. De imediato, fiquei empolgadíssima e comecei a pensar sobre isso. O que teve início como um projeto de extensão, em 2016, deu origem a um minicurso na XII Semana Acadêmica de Letras da UFSC, em 2018, e gostaria então de compartilhar com vocês um pouco dessa minha experiência.

Em 2016, com o apoio do Edital PROBOLSA/UFSC e a coordenação da Professora Patricia Peterle, do departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da UFSC, o objetivo principal do projeto era oferecer um panorama da geografia e da cultura italiana para a comunidade não acadêmica, buscando ampliar o conhecimento de aspectos relativos à cultura e à língua italiana e disseminar a poesia italiana contemporânea. Tivemos a ideia então de trabalhar esses conteúdos a partir de poemas selecionados para que pudéssemos apresentar, ao mesmo tempo, alguns poetas, as características de suas poesias e também algumas cidades italianas que os inspiraram a escrever. Assim, o público alvo era composto principalmente por pessoas que tinham interesse pela literatura, língua ou cultura italianas, mas que não necessariamente estavam vinculadas a universidades ou ao meio universitário. Naquele momento, tínhamos justamente a intenção de divulgar a poesia italiana para pessoas de fora desses contextos, por isso propusemos um projeto de extensão que, por definição, tenta transpor os muros da universidade e compartilhar os conhecimentos que são produzidos dentro da academia.

Os módulos do projeto aconteceram a cada 15 dias, nos meses de junho, agosto, setembro e outubro daquele ano, e foram organizados e ministrados por duas ou três pessoas, no Círculo Ítalo Brasileiro (CIB), no centro de Florianópolis. Cada módulo teve duração de 4 horas e foi estruturado da seguinte forma: introdução sobre um autor e sua poesia, suas principais características, a cidade escolhida como tema dos poemas, de forma a situarmos o público em relação ao que estávamos tratando, além da leitura da versão italiana e da tradução dos poemas selecionados (geralmente, dois poemas por módulo) para, em seguida, propor uma discussão em conjunto (ministrantes e participantes), acompanhada finalmente da análise dos poemas. A análise era enfim um dos momentos mais interessantes e importantes do módulo, pois quem o estava ministrando procurava deixar a participação do público bastante livre, enfatizando sempre que a análise e a interpretação de poesia estão sujeitas a novos olhares e a diferentes possibilidades de leitura, principalmente se mantivermos em mente que não há apenas uma resposta correta para as perguntas que surgem durante esse processo.

Acredito que esse foi um dos fatores essenciais que contribuíram para que tivéssemos um feedback positivo por parte dos participantes, pois eles percebiam que, mesmo não estando na universidade e/ou não estudando aquele determinado assunto, tinham capacidade de fazer suposições, dar suas opiniões, analisar os poemas e se expressar para um grupo maior sobre um tema geralmente temido pela maioria das pessoas, como é a poesia. Era um momento de troca, em que falávamos e escutávamos o que todos tinham para compartilhar.

Estabelecer relações entre a geografia e a cultura italiana, partindo da leitura de textos poéticos, foi e continua sendo desafiador por alguns motivos. Um deles talvez seja o de tirar o texto literário da sala de aula e ver como ele pode falar e ser recebido por leitores menos especialistas, mas com sensibilidades diferentes, visto que pensar a geografia e a poesia de uma cidade implica também pensar a sua própria cultura, os habitantes que nela vivem e seus comportamentos. Também por isso os participantes se mostravam tão interessados, pois, ao mesmo tempo em que mostrávamos a eles realidades diferentes, a todo momento relacionávamos aquilo ao nosso contexto aqui no Brasil. Por exemplo, no primeiro minicurso sobre a Roma da poeta Patrizia Cavalli, discutimos sobre as diferentes concepções de praça para um italiano e para um brasileiro, o que gerou pensamentos e argumentos bastante interessantes e diversificados. Um deles foi que aqui no Brasil temos a praça como um espaço público utilizado para lazer, geralmente bastante arborizado, com bancos, parques para crianças, enquanto que na Itália a praça constitui-se historicamente como um lugar de fala, um espaço de lutas em que são feitas as manifestações políticas, e, em sua maioria, possuem fontes ou monumentos em seu centro, também como uma forma de criar aquele ambiente que faz parte da vida social dos cidadãos. Assim, pudemos dialogar a respeito dessas diferenças que fazem de cada país um lugar particular.

Para que esse tipo de diálogo com o público fosse possível, escolhemos algumas cidades já conhecidas, e também outras um pouco menos, como foi o caso da Milão periférica do escritor Milo de Angelis, que escreveu poemas a partir de sua experiência como professor no Presídio de Segurança Máxima de Milão, chamado Opera. Para escolher tais autores, fizemos um mapeamento de poetas que no século XX e XXI trataram e tratam em seus textos da cultura local, do espaço urbano, das periferias, e acabamos escolhendo Patrizia Cavalli, Giorgio Caproni, Franco Fortini, Milo de Angelis e Umberto Saba e as respectivas cidades de Roma, Gênova, Florença, Milão e Trieste.

As ministrantes dos módulos eram alunas de graduação e pós-graduação da UFSC que aceitaram fazer parte desse projeto, o qual tinha ainda uma bolsista principal responsável pela organização geral dos módulos. Além disso, destaco a importância de um projeto de extensão como esse e tantos outros que acontecem nas universidades e que permitem para a comunidade fora das universidades o acesso a diferentes conteúdos ditos “acadêmicos”, a divulgação das pesquisas científicas feitas pelos alunos e o contato com pessoas diferentes, possibilitando criar diálogos fora da Academia, o que é tão relevante no momento que vivemos hoje.

Fazer parte desse projeto me fez enxergar possibilidades de uma vida acadêmica fora da “Academia” e, mais, me fez perceber que todo o conhecimento produzido por nós estudantes se torna muito mais interessante quando compartilhado. Apresentar a poesia italiana para um público não universitário foi desafiador e gratificante, pois ao mesmo tempo em que eu estava ali para transmitir conhecimento, nossos encontros eram uma grande troca. O público percebeu que poderia estudar poesia e compreendê-la, pois a palavra poética toca a alma humana, e foi exatamente isso que tentamos fazer ao propor esse projeto. Nesse sentido, acredito que o movimento de ir além dos muros da universidade é essencial para ultrapassarmos limites e partilharmos os conhecimentos.

 

Para que serve a literatura?, por Mario Barenghi (tradução Cláudia Alves)

Para que serve a literatura?*

Mario Barenghi 

A meu ver, questionar-se sobre “o que é literatura?” ou “o que é um texto literário?”, como Giovanni Bottiroli[1] fez, não é a maneira mais adequada de encarar o problema do ensino de literatura na universidade, muito menos na escola. A questão colocada não deveria ser ontológica, mas sim funcional. Vale interrogar-se sobre o escopo da literatura, o que quer que isso seja: sobre sua razão de ser. Para que serve? Para que nós a usamos? Com quais motivações? E com quais objetivos e vantagens? Tendo que dar uma definição genérica, tomo emprestada a fórmula que o linguista israelense Daniel Dor[2] usa para definir a linguagem.

A literatura é uma técnica de “instrução da imaginação”, que não serve simplesmente para “comunicar”, mas para fazer viver experiências simuladas. Por meio de uma prática de simulação socialmente compartilhada (portanto, diferente da fantasia individual), o leitor tem a possibilidade de ampliar sua própria complexa experiência existencial: de clareá-la e de enriquecê-la, de articulá-la e de ampliá-la, adquirindo assim novos instrumentos para enfrentar os desafios da vida real.

Também podemos formular essa ideia em termos moralmente mais comprometidos. O final das obras literárias deveria servir para nos ajudar a viver. Servem para viver: assim soa o título de um ensaio inteligente de Bruno Falcetto (subtítulo: Por uma educação com uso de literatura)[3]. Para viver, ou para sobreviver, ou para nos fazer viver melhor, como escreveu Tzvetan Todorov em um livro de 2007, A literatura em perigo[4]; e como reiterou Antoine Compagnon, no mesmo ano, em sua aula inaugural ao Collège de France, Literatura para quê?[5], a literatura serve para nos fazer mais felizes. Ou menos infelizes. E para nos fazer melhores: mais sábios, mais conscientes, mais sensíveis, mais perspicazes (aqui, Compagnon cita uma célebre passagem do ensaio “O miolo do Leão”, de Calvino); em geral, mais preparados para interpretar o mundo que nos circunda, o mundo humano in primis. Como consequência, melhor inseridos no ambiente que nos é próprio: mais hábeis em compreender nossos semelhantes, suas ações e suas atitudes, assim como as dinâmicas das relações que nos ligam a eles; mais preparados para compreender o sentido e o peso das palavras, nossas e dos outros.

Mas atenção: a literatura não produz esses efeitos de maneira automática. Pelo contrário, pode acontecer que ela não os produza de maneira nenhuma. Não apenas e nem tanto porque, além da grande literatura, exista também a literatura ruim, mas sobretudo porque (o caso dos textos sagrados ensina) não existe livro bom de que não se possa fazer mau uso, do mesmo jeito que não existe utensílio (ferramenta, equipamento, competência ou conhecimento) de que não possam se aproveitar os “estúpidos” e os “bandidos”, para usar duas categorias de Cipolla, de Allegro ma non troppo[6]. Podemos nos consolar, talvez, ao pensar que o contrário também é verdadeiro: de um livro medíocre pode se fazer um uso positivo. Fato é que o ensino de literatura deveria seguir esse escopo: aumentar as possibilidades de que, na experiência literária dos alunos, os efeitos considerados profícuos, desejáveis, esperados prevaleçam aos considerados negativos. (…)

Pode-se ensinar literatura? Nisso Bottiroli tem razão: “o que um professor de Letras pode fazer é criar condições para que seja possível uma experiência estética. Não pode impô-la, mas pode favorecê-la”. E tem também razão ao sustentar que o professor não deve criar obstáculos. Eu diria, mais drasticamente, que deveria evitar criar danos: primum non nocere[7], de acordo com o aviso dourado da Escola Médica Salernitana. Concordo menos quando Bottiroli coloca em oposição a atenção dada aos “textos” e a atenção dada aos “contextos”, denunciando as consequências nefastas do “contextualismo” (“o contextualismo mata a literatura”). Com certeza, tratar um texto da mesma forma que um simples documento de qualquer outra coisa, reduzindo-o a um suporte para investigações de ordem histórica, psicológica, social, “cultural”, significa sufocá-lo. Danos não menos graves, todavia, foram produzidos – principalmente na escola, até onde sei – pelo abuso de noções e grades elaboradas pela teoria literária. Não se lê um romance para aprender o que significam as palavras “prolepse” e “analepse”.

O que está matando a literatura, na minha opinião, é a indiferença nos enfrentamentos por parte dos leitores. Eu não diferenciaria tanto “artefato” e “objeto virtual” (termos com os quais Bottiroli se refere ao “conjunto das interpretações possíveis”), mas sim “texto” e “obra”, onde obra é o texto concretamente reativado pela leitura: executado – no sentido musical da palavrapor um leitor ou por uma comunidade de leitores. Franco Brioschi cita várias vezes – por exemplo, no prefácio a Gli immediati dintorni: primi e secondi, de Vittorio Sereni[8] – o epigrama citado por Possídio no final de sua biografia de Santo Agostinho. A intenção do poeta latino era celebrar a função eternizante da poesia, mas esses dois versos servem bem para representar a reativação do texto e da obra pelo leitor: Vivere post obitum vatem vis nosse, viator? Quod legis, ecce loquor; vox tua nempe mea est (“Queres saber, viajante, se o poeta vive após a morte? Tu lês, e então eu digo: a tua voz é a minha”[9]). A poesia revive, ou antes, vive literalmente na leitura. Ora, se a literatura conta enquanto simulação de experiências, não se pode ignorar o fato de que cada experiência é contextual. Dito de outra maneira, quem ensina, ensina sempre a alguém: e qualquer um dos sujeitos implicados leva consigo um conjunto de contextos que não podem ser desconsiderados (ainda que seja obviamente necessário olhar com cuidado os devaneios impressionistas). (…)

Concluo. Talvez fosse possível considerar que uma certa familiaridade generalizada com a experiência literária se cumprisse na universidade de um tempo atrás. Os estudantes, pelo menos na Faculdade de Letras, nutriam um interesse consistente pela literatura: se não por todos os autores do nosso cânone histórico-literário, ao menos por muitos clássicos da modernidade. Não sei se essas circunstâncias se reproduzem hoje em alguma ilha privilegiada do arquipélago acadêmico. Pessoalmente, dou aula em cursos de graduação nos quais a literatura não é uma prioridade no pensamento dos estudantes, então não posso não colocar para mim como problema despertar-lhes interesse. Esforço-me sim para fazer com que as leituras que proponho interajam com suas consciências – entende-se com isso nos modos próprios da literatura. Sei com certeza que não consigo com todos, nem – temo – com a maior parte, mas me alegro por conseguir ao menos com algum. Com todos tento, entretanto, exigir que percebam a densidade do texto literário, a gravidez no uso das palavras, a complexidade da construção do discurso, a importância dos temas tratados. Tudo isso não será suficiente para que ocorra uma experiência estética verdadeira; mas se nesse ínterim eu conseguir não suscitar um desgosto excessivo, uma reação de repulsa pela literatura em geral, poderá valer, quem sabe, como pressuposto ou plataforma para experiências futuras. Não é muito, mas é melhor do que nada.

* Tradução do excerto por Cláudia Alves. Texto na íntegra em: http://www.doppiozero.com/materiali/cosa-serve-la-letteratura. Mario Barenghi é crítico literário e professor de literatura italiana contemporânea na Universidade de Milão.

[1] Disponível em italiano, La letteratura se iniziassimo davvero a estudiarla: http://www.doppiozero.com/materiali/la-letteratura-se-iniziassimo-davvero-studiarla.

[2] Em inglês, The Instruction of Imagination: Language as a Social Communication Technology (2015): http://www.oxfordscholarship.com/view/10.1093/acprof:oso/9780190256623.001.0001/acprof-9780190256623?rskey=4hjRbX&result=2.

[3] Em italiano, “Servono per vivere: verso un’educazione all’uso della letteratura”, no volume La didattica della letteratura nella scuola delle competenze (2014): http://www.edizioniets.com/scheda.asp?n=9788846739445.

[4] Disponível em português. A literatura em perigo, trad. Caio Meira, Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

[5] Disponível em português. Literatura para quê?, trad. Laura Taddei Brandini, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. Sugestão de leitura dada aqui no blog, no post https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2016/06/07/afinal-por-que-pensar-sobre-literatura/.

[6] Em italiano. Allegro ma non troppo con Le leggi fondamentali della stupidità umana (1988): https://www.ibs.it/allegro-ma-non-troppo-con-libro-carlo-m-cipolla/e/9788815019806.

[7] “Em primeiro lugar, não fazer mal.”

[8] Em italiano. Gli immediati dintorni. Primi e secondi (2013): https://www.ibs.it/immediati-dintorni-primi-secondi-libro-vittorio-sereni/e/9788842819394.

[9] Tradução do italiano: “Vuoi sapere, viandante, se il poeta vive dopo la morte? Tu leggi, ed ecco io parlo: la tua voce è la mia”.

Resistir é preciso: a(s) literatura(s) e a(s) ditadura(s), por Lua Gill

Resistir é preciso: a(s) literatura(s) e a(s) ditadura(s), por Lua Gill

Não foi a primeira vez que a Cláudia, idealizadora/editora/cuidadora desse blog, tão bonito, e entusiasta da divulgação científica dos estudos literários, me convidou para escrever aqui. Devo começar dizendo que, a partir de certo momento da minha vida acadêmica, passei a me sentir cada vez mais formatada para um tipo único e padronizado de escrita e, com medo e me sentindo insegura, neguei tentar qualquer outra estrutura. É nesse contexto que me desafio para essa tarefa – ainda que entenda as minhas limitações diante dela. Por outro lado, o convite da Cláudia me pareceu dessa vez irrecusável: contar a minha participação em um evento acadêmico sobre literatura, a III Jornada de Crítica Literária: Literatura e Ditaduras, ocorrido na Universidade de Brasília (UnB) nos dias 4 e 5 de junho de 2018.

Não teria como falar desse evento sem olhar rapidamente para o presente brasileiro, em que as ressonâncias e as consequências do recente passado autoritário parecem cada vez mais fortes. Nas décadas de 1960 e 1970, a América Latina foi tomada por diversos regimes militares. As estruturações e as formas de atuação foram diferentes em cada país, bem como as respectivas transições para a democracia. No caso do Brasil[1], que viveu sob uma ditadura militar de 1964 a 1985, pouco se discutiu e se acolheu das reivindicações de memória e de justiça desde a redemocratização. Nunca levaram os torturadores à Justiça, por exemplo. Não se desmilitarizou a polícia. As famílias não foram efetivamente reparadas pelos mortos, torturados e desaparecidos até hoje. Não se debateu ampla e publicamente o que aconteceu nos 21 anos de ditadura – mesmo quando tínhamos uma presidenta que era ex-guerrilheira ou mesmo depois da abertura de uma Comissão Nacional da Verdade[2] para averiguar o que havia acontecido naquele período.

Já hoje, o sentimento geral é de angústia e de paralisia diante da política. Há dois anos, a primeira presidenta mulher eleita do Brasil sofreu um impeachment. Durante este processo, vimos um pré-candidato à presidência homenagear, em televisão aberta, um reconhecido torturador da ditadura militar brasileira. Desde então, nos sentimos atacados por todos os lados e vemos nossos direitos mais básicos serem ameaçados. Foi aprovada uma PEC que congelou os gastos públicos (inclusive de saúde e educação, por exemplo) por vinte anos e sofremos ataques complicadíssimos à cultura, aos direitos trabalhistas e das mulheres, de LGBTs, e de negros e negras. Há alguns meses, na cidade do Rio de Janeiro, foi decretada uma nova intervenção militar e foi nesta mesma cidade que a quinta vereadora mais votada do município, Marielle Franco, defensora dos direitos humanos, foi brutalmente assassinada, junto de seu motorista, Anderson Gomes. Por fim, recentemente, durante uma das maiores greves dos últimos anos, vimos pedidos explícitos e irresponsáveis de “intervenção militar”, que começaram a pipocar pelo Brasil todo.

Foto por Lua Gill.

E o que tudo isso tem a ver com o evento que assisti em Brasília? Ou como se relaciona com esse blog? A jornada da UnB teve como objetivo principal debater exatamente como a literatura tem pensado e refletido sobre as ditaduras, especialmente as da América Latina e, principalmente, a do Brasil. E por que “voltamos” a debater isso, décadas depois da redemocratização desses países? Por tudo que tem acontecido atualmente, mas também porque, ao contrário do que alguns querem nos fazer acreditar, a literatura e a crítica literária não são isentas, imparciais, mas podem e devem nos fazer tomar partido, nos posicionar.

Para não dizer que não falamos das flores, a ascensão do conservadorismo, antes e agora, não veio sem resistência, inclusive no campo da crítica literária atual, sobre a qual quero discutir aqui. Desde que comecei a pesquisar sobre as relações entre literatura e ditadura, em 2013, o tema vem crescendo, se expandindo, ainda mais nos últimos dois anos (o que, evidentemente, não se dá por acaso): autores e críticos literários têm se debruçado sobre esse assunto na medida em que tentam também entender e atuar no presente. As produções e as críticas artísticas têm debatido o apagamento histórico, apontando para a necessidade de uma política de memória e dando voz àqueles que não tiveram o seu testemunho ouvido.

O evento em Brasília foi um exemplo grandioso dessa atenção. O local escolhido para a realização da jornada, isto é, a UnB, por si só já diz bastante. Nessa universidade, professores e alunos resistiram amplamente durante o regime militar. Tão perto da Esplanada dos Ministérios e do Palácio do Planalto, hoje ela se abre novamente para novas formas de resistência da crítica literária, especialmente graças ao Grupo de Estudos em Literatura Contemporânea Brasileira – referência nessa temática para o Brasil inteiro –, da UnB, por meio dos professores Regina Dalcastagnè, Rejane Pivetta e Paulo César Thomaz. Não por acaso, o primeiro curso sobre o Golpe de 2016 foi proposto e houve tentativa de censura na mesma universidade. Por tudo isso, foi, para mim, um privilégio ter a oportunidade de estar com pesquisadores, escritores e professores extremamente reconhecidos e competentes em seus trabalhos, ver e ouvir pessoas que li, dar rosto a quem saía apenas das palavras impressas, além de ter a possibilidade de realizar uma troca efetiva sobre o meu tema de pesquisa (o que não é tão comum para a maioria das pesquisas de estudos literários feitas em nosso país).

O próprio evento, na sua organização, se estruturou de forma extremamente democrática, destacando-se de outros eventos dos quais já participei. Estiveram lado a lado, nas falas, nas mesas e na organização, pesquisadores e professores da área, estudantes de graduação e de pós-graduação e autores de romance e poesia, muitos deles testemunhas vivas do tempo da ditadura. Outra coisa que me chamou a atenção foi a presença massiva, nas mesas, de mulheres, as quais totalizaram mais de 70%, o que também não costuma ser comum em eventos desse tipo.

É muito recorrente ouvirmos pessoas justificarem a ditadura brasileira dizendo que a perseguição atingiu apenas um grupo de pessoas: uma certa classe média, branca, intelectual, do sudeste do Brasil, “comunista e terrorista”, como se isso o justificasse. Se, por um lado, o número de mortos da CNV mantém esse dado, tal definição é bastante redutora e problemática. Devemos lembrar, como mostraram as falas no evento, que o regime militar afetou o Brasil como um todo e principalmente grupos minoritários, subjugados politicamente (há um cálculo de algo como 8 mil indígenas mortos durante a ditadura e mil camponeses, para além do número de 434 mortos, apresentado e mantido pela CNV). Durante as falas, pude ouvir outras perspectivas e testemunhos desse tempo, a exemplo de Sonia Bischain, uma das fundadoras do Sarau da Brasa, a qual relatou o contexto de produção literária e resistência na periferia paulista durante o regime; a pesquisadora e poeta negra Lívia Nathalia, que apresentou a produção negra contemporânea e denunciou o genocídio da juventude negra de ontem e de hoje; a escritora indígena Eliane Potiguara, que demonstrou o histórico de escravização e perseguição das diversas etnias indígenas e o esforço pela manutenção da cultura e da língua; a apresentação do livro “O fuzil e as flechas”, no qual o jornalista Rubens Valente recupera mais um capítulo apagado da história da ditadura civil-militar brasileira e analisa mais de 80 entrevistas de indígenas, sertanistas, indigenistas e antropólogos; ou ainda a apresentação da pós-graduanda Leocádia Chaves, sobre o testemunho do período ditatorial de uma transexual, Ruddy Pinho.

Além dessas novas e extremamente ricas perspectivas para o debate contemporâneo de recuperação da memória, guardarei com carinho três outras falas: Maria Pilla, autora de Volto semana que vem (2015); Maria José Silveira, autora de O fantasma de Luis Buñuel (2004) e A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas (2002); e Pedro Tierra, autor de Poemas do povo da noite (1979). Todos eles são escritores e ex-guerrilheiros. Os seus testemunhos sobre as perseguições, a clandestinidade e as torturas que sofreram, e o processo posterior de elaboração e de testemunho, através da literatura, foram emocionantes e serviram de inspiração, principalmente para mim (e imagino que para grande parte do público presente) que não teve que lutar para ter seus direitos mais básicos garantidos.

Programação do evento Literatura e Ditaduras.

Depois dessa experiência, convido os leitores a acompanharem as produções que virão desses pesquisadores e autores citados, inclusive por meio das falas desse evento, que devem ser publicadas em breve. Hoje, mais do que nunca, precisamos reforçar a defesa da Universidade pública, do investimento à pesquisa (também de crítica literária), da autonomia universitária e da liberdade de expressão. Os atos de debater com nossos amigos, colegas, irmos a eventos, fazermos as nossas pesquisas são essenciais nesse contexto. Hoje, nosso trabalho também se dá como uma forma de resistirmos. Isso não é pouco. Não é hora de omissões. Como no passado, as futuras gerações dependem disso e do nosso compromisso com a memória e com a justiça.

Da minha parte, fica o agradecimento à UnB e aos professores organizadores, pela acolhida, pela atenção ao tema e pela organização de um evento tão importante para o debate atual, político e literário. Senti, ao fim dos dois dias, um sopro de esperança diante das angústias sentidas. Resistimos juntos. Assim como Maria José Silveira apontou, a resistência partia, e ainda parte, de uma profunda crença de que o afeto, a solidariedade e a felicidade, enfim, devem ser coletivos e de todos.

Deixo por fim uma breve lista de romances que tematizam a questão e que, entre outros, valem a pena serem lidos:

Em câmara lenta (1979), de Renato Tapajós

Memórias do esquecimento (1999), de Flávio Tavares

Não falei (2004), de Beatriz Bracher

Soledad no Recife (2009), de Uraniano Mota

Azul-corvo (2010), de Adriana Lisboa

Nem tudo é silêncio (2010), de Sônia Bischain

K. – relato de uma busca (2011), de Bernardo Kucinski

Volto semana que vem (2015), de Maria Pilla

Antes do passado (2015), de Liniane Haag Brum

Ainda estou aqui (2015), de Marcelo Rubens Paiva

A resistência (2015), de Julián Fuks

Outros cantos (2016), de Maria Valéria Rezende

[1] Um breve histórico sobre a ditadura civil-militar brasileira: iniciou-se em 1964, quando as Forças Armadas, apoiadas por parte da sociedade civil, perpetraram o golpe contra o governo eleito do presidente João Goulart. O Regime Militar chegou ao seu ápice em 1968, quando entrou em vigência o Ato Institucional nº 5, conhecido como AI-5, que intensificou o poder dado aos governantes para punir arbitrariamente toda e qualquer pessoa que fosse considerada “inimiga do regime”. Nesse momento, o estado de exceção passou a controlar efetivamente não só as instituições, como também as pessoas, em seus cotidianos privados e em suas relações sociais e públicas. O número de mortos, desaparecidos e torturados é enorme.

[2] A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi instituída em 2012 pela então presidenta Dilma Rousseff e teve como objetivo investigar os graves desrespeitos dos direitos humanos cometidos entre 1946 e 1988. Em 2014, a Comissão entregou seu relatório final depois de entrevistar agentes envolvidos, organizar audiências públicas e pesquisar, em diferentes contextos e lugares, as perseguições do período militar. Entre as conclusões, está o fato de que as detenções ilegais e arbitrárias, como tortura, violência sexual, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres, foram uma prática generalizada e de política estatal, caracterizando-se como crimes contra a humanidade.

Vai ter Racionais na universidade sim! Entrevista com Alan Osmo

Quem tem acompanhado a imprensa e as redes sociais nas últimas semanas certamente viu uma novidade que movimentou as discussões na área dos estudos literários: o álbum Sobrevivendo no inferno (1997), do grupo de rap Racionais MC’s, passou a fazer parte do vestibular da Unicamp. A inclusão desse álbum na lista de leituras obrigatórias mexe com muitos pressupostos, teóricos e sociais, e traz tanto para as escolas, quanto para as universidades, questões que são importantíssimas de serem debatidas.

É interessante pensar que o rap também vem sendo estudado na academia e, para falar sobre isso, convidei Alan Osmo para uma entrevista. Ele gentilmente aceitou o convite e se dispôs a partilhar conosco aqui no blog seu ponto de vista sobre o assunto. Alan é graduado em Psicologia e em Letras pela USP e é mestre em Psicologia, também pela USP. Atualmente, faz doutorado no programa de Teoria e História Literária do IEL-Unicamp, com a pesquisa “A literatura tomada de assalto: testemunho e resistência em produções periféricas de São Paulo”, sob orientação do Prof. Márcio Seligmann-Silva.

Marca Páginas: A Comvest, comissão que organiza o vestibular da Unicamp, anunciou recentemente a inclusão do álbum Sobrevivendo no inferno na lista de leituras obrigatórias do vestibular 2020. Essa atitude abre precedentes para uma série de mudanças, como a ruptura de certas barreiras sociais que isolariam o rap nas periferias, o qual passa a ser acolhido em ambientes escolares e acadêmicos historicamente ocupados pelas classes média e alta. Que tipo de impacto você acredita que uma ação como essa pode ter na nossa sociedade?

Alan Osmo: Acho importante destacar que o rap, assim como o funk, é bastante ouvido em diversas classes sociais, não ficando, portanto, restrito apenas às periferias. No caso especificamente do Racionais MC’s, é bastante curioso que, mesmo entre os “playboys” (que são tematizados em diversas canções), há também muitos fãs do grupo. Acredito que o rap e o Racionais não estejam isolados na periferia, pois já possuem uma grande circulação social. Mas é claro que, pelo fato de se tratar de produções que vêm das periferias e, mais importante, de vozes que afirmam uma identidade negra e periférica, elas são vistas por parcela da sociedade, principalmente das elites, com uma série de preconceitos. Nesse sentido, cabe destacar que os ambientes escolares e acadêmicos no Brasil historicamente foram bastante fechados a produções de cultura popular, principalmente àquelas de matrizes afro-brasileira e indígena. Ao levarmos em conta que o Brasil era até poucas décadas atrás um país predominantemente analfabeto, aquilo que era considerado literatura nos ambientes escolares e acadêmicos, com raras exceções, se restringia ao que era produzido por pessoas que tinham certa circulação dentro de uma elite branca das grandes cidades, que tinham contato com o que estava sendo produzido na Europa no campo das artes e da literatura. Desse modo, a visão da literatura também passou de alguma forma a ser marcada e valorizada pelos padrões que eram definidos na Europa. Enquanto isso, no Brasil, toda uma tradição riquíssima de cultura popular, que se manifestava sobretudo na música e na dança, era desvalorizada como não sendo um objeto digno de ser estudado nas escolas e universidades. Acredito que essa escolha do disco do Racionais é uma iniciativa (ainda tímida, é verdade) no sentido de tornar aquilo que é estudado nas escolas e universidades um pouco mais representativo da diversidade brasileira e da complexidade de nossa realidade social.

Mano Brown, compositor e cantor do Racionais MC’s. Fonte: Instagram.

Marca Páginas: Ainda sobre a decisão da Comvest, vimos que muita gente questionou a credibilidade dessa inclusão, seja pela temática, que desagrada um público mais conservador, seja pela forma, já que música pode não ser vista como literatura de acordo com certa crítica tradicional. Na sua opinião, a presença desse álbum na lista de leituras obrigatórias abala as discussões dentro da academia? De que maneira o rap tem sido recebido e pesquisado nas universidades brasileiras?

Alan Osmo: É importante não deixarmos de ter um ponto de vista crítico em relação ao vestibular – à forma como ele determina aquilo que é estudado nas escolas, e ao fato de ele funcionar como um filtro social de quem vai estudar nas universidades públicas. Nesse sentido, a inclusão de uma obra que traz uma voz que representa uma parcela da população que não costuma ser abarcada sob aquilo que se legitima como “literatura” é ainda uma mudança tímida. É importante considerarmos também o novo contexto das universidades públicas, com as cotas sociais e raciais. Os alunos das universidades públicas agora representam um pouco mais a diversidade da população brasileira. Além disso, uma parcela de jovens que historicamente se viu privada de cursar o ensino superior passou a estudar em locais que antes eram quase que restritos a pessoas brancas de classe média e alta. Com uma mudança do perfil dos alunos das universidades públicas, acho compreensível o questionamento daquilo que é estudado e pesquisado nessas universidades. No caso de um curso de Letras ou Estudos Literários: por que se estudam tão poucos autores africanos, autores negros, autores indígenas? Na minha opinião, as críticas que são feitas sobre a inclusão da obra do Racionais na lista do vestibular, seja usando o argumento da temática das canções, seja usando o argumento de que se trata de música e não de literatura, partem de um ponto de vista conservador. Ora, a temática do disco do Racionais é sobretudo a violência da sociedade brasileira na década de 1990, o cotidiano vivido na periferia de uma grande cidade no Brasil, as terríveis desigualdades que geram verdadeiros abismos entre parcelas da população, o racismo e a violência policial voltados principalmente a jovens negros da periferia. Se essa temática choca, é porque nossa realidade social é chocante. Querer ignorar esses temas, estudando apenas autores que abordam outros assuntos, é também querer ignorar algo que marca profundamente a realidade social em que vivemos. E é importante destacar que a obra do Racionais aborda esses temas partindo do ponto de vista do negro morador da periferia, um ponto de vista que costuma ser bastante ignorado e silenciado por aquilo que tradicionalmente se considera “literatura”. Também considero conservador o ponto de vista que vê uma divisão nítida entre música e literatura, de modo que uma canção não possa ser vista como uma poesia. Se pegarmos a distinção de gêneros estabelecida na Grécia Antiga entre a poesia lírica, épica e dramática, a poesia lírica era aquela que era cantada e acompanhada de instrumentos musicais (o nome lírica vem do fato de ela ser acompanhada pela lira). Mesmo se pegarmos do ponto de vista de uma história da literatura mais tradicional, diversos poemas foram inicialmente feitos para ser musicados, ou então foram musicados em um período posterior. Pelo fato de um poema ser acompanhado de música, ele deixa de ser literatura? No Brasil, há toda uma tradição de canção popular que é riquíssima do ponto de vista poético e acredito ser uma grande perda para a área dos estudos literários ignorá-la. No caso do rap, é interessante destacar também que as letras que compõem o nome rap são frequentemente associadas a rhythm and poetry – ritmo e poesia. É característico desse gênero o destaque para aquilo que é falado, de modo a se enfatizar a parte poética da canção. Além disso, o rap já vem sendo objeto de diversas pesquisas acadêmicas no Brasil (principalmente em mestrados e doutorados) em distintas áreas do conhecimento: ciências sociais, geografia, educação, canção brasileira, estudos literários, linguística aplicada… Ainda assim, é bastante frequente uma certa resistência para se estudar o rap na área de estudos literários. Dificilmente é um assunto que vai ser abordado num curso de literatura brasileira, por exemplo. Torçamos para que essa inclusão da obra do Racionais na lista do vestibular da Unicamp contribua para mudar um pouco isso.

Marca Páginas: “Capítulo 4 Versículo 3” escancara a realidade das periferias da cidade de São Paulo: “60 por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais / Já sofreram violência policial”. Depois de mais de 20 anos do lançamento do álbum, de que maneira você acha possível falar sobre esse assunto? Em sua pesquisa de doutorado, como você aborda a questão da representação dessa realidade?

Alan Osmo: A forma como esses e os outros dados são apresentados no início da canção “Capítulo 4 Versículo 3” é muito interessante. São dados reais, objetivos, que poderiam estar sendo apresentados em um jornal ou na televisão. Além disso, são dados escandalosos que escancaram a violência e o racismo que caracterizam nossa sociedade. Mas o curioso é que esses dados não têm repercussão, ou não repercutem da forma como deveriam, isto é, na grande mídia e na elaboração de políticas públicas pelo governo. O racismo continua sendo negado por parcela da sociedade que acredita no mito da “democracia racial” e a violência segue sendo vista de forma simplista, como se fosse um problema de bandidos versus mocinhos. É impressionante também que esses dados apresentados na canção desse disco de 1998 seguem extremamente atuais, mesmo 20 anos depois: essas estatísticas mudaram muito pouco, ou inclusive pioraram. Seguimos com uma taxa elevadíssima de homicídios, principalmente de jovens negros. Seguimos com abordagens policiais violentas nas periferias, tendo como alvo sobretudo jovens negros, de modo que ao ouvirmos isso na canção, hoje, somos lembrados de que essa realidade pouco mudou. É como se o Racionais, na canção, jogasse na cara como nossa sociedade é hipócrita e segue ignorando esse problema, ou ao menos segue não sendo efetiva para mudar essa realidade de injustiça. Nesse sentido, cabe destacar que a canção do Racionais se insere em um contexto de luta política, sendo a música também vista como um instrumento de transformação social. Por meio do rap, são denunciadas injustiças e são reivindicadas mudanças. Por isso eu me interessei pelo Racionais, para pensar a violência no Brasil no período que se inicia na democratização pós-ditadura militar e segue até hoje. As décadas de 1980 e 1990, sobretudo, podem ser caracterizadas por um contexto de crescimento das desigualdades sociais; crescimento desordenado das grandes cidades, com condições de moradia precárias, falta de saneamento e uma quase ausência de serviços públicos; a consolidação de um mercado ilegal altamente lucrativo das drogas; e uma política sem sentido por parte do Estado de guerra às drogas. Nesse contexto, houve um grande crescimento dos índices de homicídio. É possível pensar também que, apesar de a ditadura militar oficialmente ter acabado em 1985, o aparato repressor continuou muito forte e presente, agindo sobretudo na população negra e periférica. Acredito que o Racionais, em suas canções, fala de forma eloquente sobre esse contexto. O primeiro disco do grupo, lançado em 1990, chama-se Holocausto urbano. Ou seja, logo de início eles se propuseram a falar sobre um verdadeiro extermínio que atinge parcela da população nas grandes cidades. É importante destacar que essa violência atinge de forma extremamente desigual a sociedade. Na cidade de São Paulo da década de 1990, por exemplo, enquanto havia bairros com índices de homicídio comparáveis aos dos países da Escandinávia, ou seja, baixíssimos, em outros bairros os índices eram comparáveis às regiões mais violentas do mundo. Acredito que as canções do Racionais testemunham sobre essa realidade de violência, fazendo isso a partir de um ponto de vista do jovem negro da periferia.

Marca Páginas: Por último, podemos dizer que a lista de leituras para vestibulares é uma grande influenciadora do que os jovens brasileiros leem. Em geral, o movimento é que uma obra seja cobrada pelos vestibulares e que, a partir disso, passe a integrar os materiais didáticos e a terem sua leitura cobrada em sala de aula. No caso do álbum do Racionais MC’s, porém, é possível que presenciemos, pela primeira vez, o caminho inverso; isto é, muitos jovens possivelmente já escutam e gostam da obra, independentemente da obrigatoriedade escolar. De que maneira você acredita que esse movimento inverso pode desempenhar um papel diferencial na formação desses jovens? Se pensarmos na representatividade que o rap carrega consigo, você acha que os jovens podem sentir sua realidade contemplada pelos conteúdos escolares e, consequentemente, pelo próprio vestibular?

Capa do álbum Sobrevivendo no Inferno

Alan Osmo: Eu concordo bastante com sua colocação. É muito frequente que a “literatura” ensinada nas escolas seja vista pelos jovens como algo distante e descolado de sua realidade. Desse modo, pode ser difícil se interessar por algo que diga pouco a respeito da realidade em que você vive, que fale de personagens com os quais você não se identifica, enfim, que fale de um contexto que se distancie muito, seja temporalmente, seja espacialmente daquele em que você se insere. Como consequência, a “literatura” pode acabar sendo vista como uma coisa chata e difícil. Pelo fato de muitos jovens já conhecerem e se interessarem pelo Racionais MC’s, é possível que seja um assunto mais fácil de ser abordado em sala de aula. Além disso, esses jovens podem se surpreender com o fato de que aquilo que é falado nas canções que eles gostam também pode ser considerado “literatura” e que, portanto, a “literatura” pode ser interessante e dizer respeito a algo próximo da realidade em que vivem. Além disso, há, nas canções, o ponto de vista do negro morador da periferia que dificilmente aparece em obras que se costumam estudar nas salas de aula. Isso pode propiciar que os jovens se identifiquem com os personagens de que falam as canções.

Marca Páginas: Antes de terminar, você gostaria de acrescentar mais alguma informação?

Alan Osmo: Eu gostaria apenas de destacar a importância da canção “Diário de um detento”, presente no disco Sobrevivendo no inferno, ainda mais em nosso contexto de hoje. De 1998 para cá, a população carcerária no Brasil aumentou de forma significativa, de modo que hoje o Brasil possui uma das maiores populações carcerárias do mundo. A canção “Diário de um detento” tem muita importância por falar da realidade de um presídio a partir do ponto de vista de um detento. Além disso, a canção é uma das mais importantes produções feitas sobre o Massacre do Carandiru, de 1992, em que pelo menos 111 presos foram brutalmente assassinados pela polícia militar. Já se passaram mais de 25 anos desse fato, mas ele segue sendo uma ferida aberta em nossa sociedade. No início de 2017, vimos novos massacres em diversos presídios no Brasil, em que pelo menos 133 pessoas foram mortas em 15 dias. Recentemente, no final de 2016, o julgamento que havia condenado os policiais militares envolvidos no Massacre do Carandiru foi anulado. Depois dessa decisão, o caso vai voltar para o tribunal do júri, para ser julgado novamente desde o início. Caso crimes como o do Massacre do Carandiru não sejam julgados, tendo seus fatos esclarecidos e punindo os responsáveis, podemos sempre recear que crimes parecidos voltem a acontecer. A pergunta feita no final da canção do Racionais – “Mas quem vai acreditar no meu depoimento?” – continua em aberto, lembrando que os sobreviventes e familiares das vítimas do Massacre do Carandiru ainda não tiveram o devido reconhecimento e reparação pelo crime que ocorreu.